Em 1756, Maria José Francisca começou a vomitar “cóleras” e a ter fortes dores de cabeça. À tragédia daquela estranha doença veio juntar-se a morte súbita de todos os seus porcos. Para os habitantes do pequeno lugar de Vilarinho, em Mondim de Basto, não havia grandes dúvidas: a mulher de António Gonçalves Antunes estava embruxada. Apesar das certezas da vizinhança, Maria José consultou um médico. Este, considerando que não tinha como lhe valer, disse-lhe que apelasse aos “santos”, o que levou a mulher a procurar um padre exorcista. O mais próximo vivia em Agilde, Celorico de Basto. A mulher percorreu quase 30 quilómetros a pé para o encontrar.
Após uma primeira sessão, durante a qual Maria José esteve sempre inconsciente, deitada sobre uma manta, João Teixeira, o padre exorcista de Agilde, mandou-a para casa, concluindo que “não tinha diabo legítimo”. A maleita que a afetava tinha de ser outra. Durante algum tempo, Maria José sentiu melhorias, mas rapidamente voltou ao estado anterior. Regressou então a Agilde e submeteu-se a um novo exorcismo. Durante o esconjuro, um espírito que se apresentou como sendo o diabo começou a falar pela sua boca. Resistindo às exortações de João Teixeira, a entidade mandou o padre para “os infernos”. O sacerdote insistiu e conseguiu vencer o demónio, que remeteu para os confins do inferno, onde devia ficar “enquanto Deus Nosso Senhor ordenasse”. Nos seis ou sete meses que se seguiram, Maria José viveu tranquilamente, retomando a vida com normalidade. Mas, mais uma vez, os sintomas regressaram. E os porcos continuaram a morrer.
Durante cerca de um ano, Maria José viveu como podia com o mal que a atormentava. No início de 1758, em fevereiro ou março, passando pelo lugar um homem com fama de curandeiro, um vizinho pediu-lhe que a visitasse e que tentasse fazer alguma coisa por ela. João Pinto, de 37 anos, vivia em São Martinho de Vale de Bouro, em Celorico de Basto, a cerca de 20 quilómetros. Dono de umas fazendas e de alguns bois, de que cuidava com a ajuda de dois moços, era mais do que um simples lavrador. Ao contrário da grande maioria da população portuguesa na segunda metade do século XVIII, sabia ler e escrever (não existem dados concretos para este período mas, cerca de 100 anos depois, a taxa de analfabetismo em Portugal era superior a 70%) e tinha uma pequena coleção de livros religiosos. Um desses volumes continha uma oração atribuída a São Cipriano que Pinto acreditava ser boa para tudo, “principalmente para malefício”. E porque um frade lhe tinha dito que não tinha nada de mal, começou a lê-la “com boa intenção” à cabeceira de mulheres doentes.
Em casa de Maria José, o agricultor pegou no pequeno livro, que trazia sempre consigo, abriu-o e leu em voz alta a oração de São Cipriano. A doente apresentou algumas melhorias e, nos três meses seguintes, Pinto regressou duas vezes a Vilarinho para repetir a reza. Numa dessas visitas, após ler a oração, um espírito apoderou-se do corpo de Maria José e, falando através dela, ordenou que fossem depressa chamar António Gaspar, o jornaleiro que tinha incitado João Pinto a visitar a mulher, e uma vizinha, Francisca Alves, porque tinha algo a anunciar. Com o grupo reunido, o espírito fez a revelação: tratava-se do próprio Espírito Santo, que tinha descido à terra para fazer “uma reforma no Céu com as pessoas que ali estavam”.
Os vizinhos começaram a encontrar-se com regularidade em casa de Maria José. Nessas reuniões, o alegado Espírito Santo, guiado por João Pinto, foi revelando mais sobre a reforma que queria fazer no Céu e no mundo, que culminaria num dilúvio de areia. Apenas um grupo de escolhidos — o grupo de Vilarinho — estava destinado a salvar-se, refugiando-se na ermida de Nossa Senhora da Graça, no cimo do Monte Farinha, hoje conhecido por ser uma das etapas mais difíceis da Volta a Portugal em bicicleta. O fim do mundo seria precedido pelo nascimento do próprio Espírito Santo, que encarnaria no ventre de Maria José. O caminho para a salvação seria árduo, mas o Espírito Santo prometeu que recompensaria os escolhidos no Céu e também na terra, através de um “tesouro” que seria revelado perto da Senhora da Graça.
Durante o ano em que os encontros duraram, o grupo provocou medo e apreensão entre a população de Vilarinho. Começaram a circular histórias sobre os alegados poderes de João Pinto e sobre o que se passava na casa de Maria José. Tudo terminou abruptamente, quando o caso chegou aos ouvidos da Inquisição em Coimbra. O processo, que terminou com a acusação e condenação de oito pessoas, entre elas os “líderes” Maria José Francisca e João Pinto, está preservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, onde se encontra toda a documentação relacionada com a atuação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Os documentos, a que o Observador teve acesso através da transcrição feita por António Ribeiro para uma dissertação de mestrado apresentada em 2006, contam uma história surpreendente e pouco conhecida sobre um grupo de camponeses que, guiados por um lavrador letrado, julgou que conseguia escapar ao fim do mundo.
O agricultor e feiticeiro que criou um culto em Mondim de Basto
João Pinto, um cristão-velho (nome dado em Portugal aos judeus convertidos), era filho de um outro João Pinto e de Catarina da Silva. Tinha nascido em Mourões, por volta de 1723, mas residia no lugar de Moreira, na freguesia de Vale de Bouro, onde tinha uns terrenos e uns bois, que tratava com a ajuda de dois rapazes. A sua avó paterna chamava-se Ursula e os avós paternos Manuel da Silva e Vivência Pinto, do lugar da Rapozeira, também em Vale de Bouro. Homem “gordo” e de “boa disposição”, segundo a Inquisição, usava uma peruca por não ter cabelo nenhum. Católico aparentemente exemplar, ia à missa todos os domingos, rezava o terço e confessava-se “nas festas primeiras do ano”. Quando tinha tempo, lia “os seus livros espirituais”, que trazia sempre consigo. Entre estes contava-se um pequeno caderno manuscrito (que a Inquisição refere não ter sido aprovado pelo Santo Ofício), que se trataria de uma versão do Livro de São Cipriano corrompida por várias transcrições. O Livro de São Cipriano é o nome dado a diferentes coleções de feitiços dos séculos XVII a XIX atribuídas ao mártir cristão que, de acordo com a crença popular, terá sido um poderoso feiticeiro. Era neste livro que se encontrava a oração que Pinto costumava ler às mulheres doentes por crer que assim “fazia esmola”.
O caderno tinha sido oferecido ao agricultor por Clemente de Paiva, um homem abastado de Boticas de Barroso, que por sua vez o tinha recebido de um exorcista galego. Paiva explicou-lhe que o volume servia para tudo, “principalmente para malefícios”, o que terá levado Pinto a acreditar que as orações tinham algum tipo de poder. Contudo, não é claro por que razão o lavrador se concentrou numa reza em particular ou porque considerou que essa era boa para pessoas doentes, mas parece que isso aconteceu depois de a ter mostrado a dois clérigos, que a aprovaram. Um desses homens, o cura da freguesia de Vilarinho, teria inclusivamente pedido ao lavrador que a lesse a uma sobrinha que se encontrava doente. A aprovação dos religiosos parece ter tido mais peso do que as evidências da suposta eficácia da oração: posteriormente questionado pelos inquisidores de Coimbra sobre os efeitos nas mulheres a quem a tinha lido, o agricultor disse que algumas tinham ficado melhores (mas que não queriam que se soubesse), que outras nem por isso e que uma tinha acabado por morrer. Foi por causa do aparente sucesso das suas rezas que Pinto foi chamado a casa de Maria José.
Maria José Francisca era natural da freguesia de Vilar de Ferreiros, em Mondim de Basto. Filha de André Francisco e Maria Afonso, tinha pelo menos quatro irmãos: Diogo, Domingos, Manuel, Matias e Maria. Era casada com o lavrador António Gonçalves Antunes, que repudiou. Filho do lavrador Gonçalo Gonçalves e de Maria Antónia, Antunes era também natural de Vilar de Ferreiros. O processo inquisitório não refere que o casal tivesse filhos. As testemunhas ouvidas em Coimbra descrevem Maria José como uma mulher banal, em relação à qual nada havia a apontar até ao momento em que começou a receber em casa o agricultor e curandeiro do lugar de Moreira. Ia à missa com regularidade, confessava-se e comungava, “ouvia a pregação e fazia as mais obras de cristão”. Tinha os conhecimentos básicos da doutrina e dos mandamentos da Igreja Católica.
Naquele dia no início de 1758, Maria José tinha piorado após a ceia. Quando Pinto chegou a sua casa, perguntou-lhe se havia algum remédio para o seu mal, ao que ela respondeu que a solução estava “nas suas mãos”. O agricultor leu-lhe então a oração de São Cipriano, que continuou a recitar mesmo após a manifestação do alegado Espírito Santo para impedir que o demónio se apoderasse do corpo da mulher e interrompesse a comunicação com Deus. Depois desta primeira manifestação, o espírito continuou a aparecer, em sessões organizadas ao longo dos meses seguintes em casa de Maria José com a presença de um grupo de familiares e vizinhos, que incluía o seu marido, António Gonçalves Antunes, o jornaleiro (nome que era dado aos trabalhadores que eram pagos ao dia) António Gaspar, a vizinha Francisca Álvares, um dos seus irmãos, Matias Francisco, e a sua mãe, Maria Afonso, que talvez não tivesse plena noção do que se passava.
As reuniões da congregação seguiam quase sempre o mesmo ritual. Começavam com o grupo de joelhos e com “atos de contrição e os versos de São Gregório”. Quem se achasse em pecado, devia confessar-se através de uma oração, a “trova do pecado”, que, segundo as informações recolhidas pelos inquisidores junto de várias testemunhas, ouvidas ao longo de vários meses em Coimbra, continha “cousas indignas”. Pinto, que assumiu o papel de mestre de cerimónias e de sacerdote do grupo, absolvia os pecadores “e dizia que todos se haveriam de salvar”, proclamando: “A ti absolvo pelo poderia que Deus me deu de todas as cousas, a ti absolvo pelo poderio que Deus me deu de todas as cousas, a ti absolvo da parte de Deus meu Ciprião, a ti absolvo de todas as cousas, de todos os males, pelo poder que deus me deu”.
Durante os encontros, realizados entre março e junho de 1758, o alegado Espírito Santo atribuiu a cada membro um santo: Maria José era a encarnação da Senhora da Guia, uma escolha que terá sido motivada por uma devoção local; o seu marido era o Santo António; o seu irmão Matias era São Matias; a sua mãe era Santa Ana; João Pinto era São João; e Francisca Álvares era Maria Madalena, “por ter sido mulher errada” e ter tido três filhos sem ser casada. Foi também consagrada uma figura santa aos membros que se juntaram posteriormente. Cada uma dessas pessoas haveria de receber do respetivo santo poderes que poderia usar na terra.
Liderada por João Pinto e Maria José, a congregação deveria fazer uma “reforma espiritual”, tal como tinha sido relevada pelo Espírito Santo, através de três “mistérios”, que correspondiam a três figuras religiosas: Senhora da Graça, Senhora da Guia e São José. Essa culminaria na destruição do mundo através de um dilúvio não de água, mas de areia, ao qual apenas o grupo de Mondim de Basto estava destinado a escapar, refugiando-se para isso na ermida da Senhora da Graça. Por altura do apocalipse, o purgatório e o inferno desapareceriam, e as almas que estavam presas no limpo seriam batizadas por anjos para que pudessem entrar no Céu e as que estavam a padecer no inferno seriam puxadas para fora, através de um buraco, pela Nossa Senhora da Misericórdia com recurso a uma vara. O fim do mundo seria anunciado pelo nascimento do próprio Espírito Santo de uma mulher casada, que seria a própria Maria José. O nascimento foi previsto para maio de 1759, o que significa que o apocalipse deveria acontecer mais ou menos dentro de um ano.
A salvação espiritual e a salvação terrena: o tesouro do Monte Farinha e o pacto com o diabo
A dedicação com que Maria José e os seus vizinhos se dedicavam ao culto levou a que, aos poucos, começassem a descorar as suas atividades diárias e deixassem de trabalhar. João Pinto acabou por se instalar em Vilarinho, em casa da mãe de Maria João, uma mulher que as testemunhas descreveram como “muito velha” e surda. Uma vez no lugar (ou talvez até antes disso), o lavrador iniciou um relacionamento amoroso com a futura mãe do Espírito Santo, que rejeitou o marido, exigindo-lhe que a deixasse e saísse de casa. António Gonçalves Antunes acabou por regressar a Vilar de Ferreiros, de onde era natural, localidade onde se encontrava por altura do processo em Coimbra. Maria José não foi a única a envolver-se com Pinto. Também a vizinha Francisca Álvares sucumbiu aos encantos do agricultor, assim como uma das filhas de Domingas Borges, que vivia no fundo da aldeia, de acordo com o testemunho de Maria Álvares, uma mulher de 40 anos que era casada com um alfaiate. Os dois foram apanhados “no sobrado”.
A data da mudança de Pinto para Vilarinho não é certa, mas terá acontecido entre abril e agosto de 1758, mesmo a tempo de um dos episódios mais estranhos da história do culto de Mondim de Basto: a busca pelo tesouro do Monte Farinha. Em abril de 1758, Maria José anunciou à congregação que tinham de se deslocar até ao monte porque ali havia“um remédio que ali estava por mando de Nosso Senhor”. Acompanhada por João Pinto, o marido (que ainda não a tinha deixado apesar das insistências), o irmão Matias e o jornaleiro António Gaspar, a mulher caminhou até à ermida da Nossa Senhora da Graça, a 947 metros de altitude, e ordenou aos homens que cavassem um buraco debaixo de um outeiro, onde estaria o tesouro. Depois de muito cavarem, Maria José concluiu que o “remédio” tinha “fugido” — uma feiticeira, “por arte do demónio”, tinha-o escondido, explicou.
Para António Ribeiro, este episódio marcou o estabelecimento definitivo e regular do culto. Na sua tese de mestrado, publicada em 2006 pela Palimage Editores, de Braga, o investigador afirmou que o incidente corresponde também ao início de uma obsessão pela busca do tesouro do Monte Farinha, que levou os membros do grupo a firmarem pelo menos dois pactos com o diabo. O primeiro desses pactos, que terá sido motivado pela falta de resultados nas várias expedições feitas à Senhora da Graça, aconteceu em janeiro ou fevereiro de 1759, quando Pinto se encontrava há quase dez meses em casa da mãe de Maria José. O lavrador convenceu-se de que se lhe oferecesse o seu corpo e alma ao demónio por meia hora, certamente que este lhe entregaria o tão desejado tesouro. Catarina Maria, uma mulher de Portimão, tinha-lhe dito que quem queria fazer um pacto com o diabo tinha de “o fazer por escrito ou por vontade”. Como não lhe faltava vontade ou papel, o agricultor fez o que Catarina Maria lhe explicou — pôs o negócio por escrito, assinou e sentou-se à espera. Meia hora depois, sem que aparecesse o tão desejado tesouro, queimou o papel dentro de uma caixa de madeira e não pensou mais no assunto. Meses depois, durante o interrogatório em Coimbra, negou que tivesse feito o pacto, alegando que tinha inventado a história porque achou que “fazia bem à sua causa”. Questionado uma segunda pelos inquisidores, disse que, afinal, o tinha realizado, mas que apenas tinha consentido “na vontade, mas livre do perigo da alma”, e que não tinha posto o negócio por escrito.
Um segundo pacto terá sido feito por sugestão de Maria José. Certo dia, a mulher comunicou ao grupo que o diabo, mandado por Deus, daria ao grupo o tesouro que estava junto do monte da Nossa Senhora da Graça. Para que a busca fosse bem sucedida, era necessário que uma pessoa fizesse um pacto com o diabo, dando-lhe liberdade para fazer o que quisesse com o seu corpo e alma. A vizinha Francisca Álvares mostrou-se imediatamente disponível e João Pinto, o único do grupo que sabia ler e escrever, pôs o contrato por escrito. Entre outras coisas, o documento dizia que, se Francisca adoecesse ou o tesouro não aparecesse, o negócio, que tinha validade até ao dia de São João (24 de junho), ficava sem efeito. O contrato não valeu de nada — o grupo voltou a não conseguir encontrar o tesouro do Monte Farinha.
Com o passar do tempo, começaram a espalhar-se rumores sobre as reuniões do culto. Dizia-se que as mulheres e homens se juntavam para ouvir João Pinto ler “um papel”. Nestes relatos, o agricultor era descrito como um poderoso feiticeiro, capaz dos atos mais extraordinários. Curioso, João Leite de Vasconcelos, de Mondim de Basto, deslocou-se a Vilarinho. Ao chegar a casa de Maria José, não encontrou Pinto. No interior da habitação, encontrava-se apenas um molho de palha. João convenceu-se que o fardo era o próprio João Pinto metamorfoseado. Tomé Martins, um lavrador de 70 anos que vivia em Vilarinho, contou aos inquisidores em Coimbra que tinha ouvido dizer que nas reuniões em casa de Maria José tinha aparecido um “homem de palha” que falava. Os poderes de João Pinto pareciam estender-se aos próprios animais — certo dia, ao voltar para casa, Manuel Penteado, encontrou duas das suas vacas viradas de pernas para o ar, com “o lombo e os cornos no chão”. Aflito, prometeu ali mesmo uma missa a Santo António, “e logo as vacas se ergueram”.
Os boatos foram alimentados pelos próprios membros da congregação, que começaram a falar livremente sobre os seus encontros com outros habitantes de Vilarinho. Sem recearem que algo de mal lhes acontecesse, deram também início a uma violenta tentativa de doutrinação. Foi nessa altura que se juntou ao grupo um outro irmão de Maria José, Diogo Francisco, que foi identificado com São Pedro na primeira sessão a que assistiu, em novembro de 1758. Ao tomar conhecimento disso, Gaspar, sobrinho do abade de Vilar de Ferreiros, meteu-se com Diogo, chamando-lhe “chaveiro do Céu” (S. Pedro guarda “as chaves do Reino dos Céus”). O irmão de Maria José levou a mal, respondendo que preferia ser “chaveiro do Céu” do que “do Inferno”. Domingos Afonso Francisco, também irmão da mulher que dizia encarnar o Espírito Santo, tentou demover Diogo de continuar a assistir às reuniões, mas este persistiu, tornando-se um dos membros mais importantes. Com o passar do tempo, passou mesmo a ver-se como um elemento-chave do grupo, reclamando para si o papel de vidente e místico, que o colocava em pé de igualdade com João Pinto e Maria José.
Foi Diogo Francisco que acompanhou João Pinto numa visita noturna ao padre Manuel João dos Reis, de Mondim de Basto, em abril de 1759. O objetivo era solicitar a presença do sacerdote numa festa em honra da Senhora da Misericórdia, que seria assinalada com a construção de uma capela dedicada a Nossa Senhora da Guia perto da ermida da Senhora da Graça, que colapsaria assim que a construção começasse. Para convencerem o Manuel João, os dois homens disseram-lhe que tinham sido enviados a sua casa por Deus e pela Nossa Senhora da Guia e explicaram-lhe de forma entusiasmada e pormenorizada o projeto da “reforma” pelos “três mistérios”. Revelando que o Espírito Santo havia de nascer de uma mulher no mês seguinte, antes do fim do mundo por um dilúvio de areia, Pinto e Francisco explicaram que seriam recompensados pelos seus esforços com o “remédio da Graça”, “que era o dinheiro que Deus lhe havia de dar em tanta abundância que das mangas o havia de tirar para socorrer os necessitados e para os pobres, fazendo-lhe esmola e comprar o que fosse preciso”.
No final da conversa, que durou cerca de sete horas, terminando apenas na manhã do dia seguinte, João Pinto e Diogo Francisco pediram ao padre que não contasse a ninguém o que tinha ouvido (o que lhe tinham revelado “ficava debaixo de confissão”, salientaram) e tentaram obrigá-lo a entrar para a congregação para ser o capelão, ameaçando-o com a maldição eterna. Num último esforço de persuasão, Pinto terá enviado uma carta ao pároco, da qual apenas se conhece uma pequena parte, citada nos documentos da Inquisição. Durante o interrogatório em Coimbra, o agricultor negou ter escrito a missiva, atribuindo a autoria da carta ao espírito que falava através de Maria José. Os inquisidores não acreditaram.
Nunca se viu enredo semelhante no seu “princípio ou na luxúria”
Por altura do encontro com o padre Manuel João, o caso já teria chegado aos ouvidos da Inquisição. Um comissário do Santo Ofício andaria por São Martinho de Vale de Bouro a fazer perguntas. Foi o próprio João Pinto que o lamentou ao pároco de de Mondim de Basto, confessando que tinha “chorado muitas lágrimas” por ter descoberto que o tinham denunciado. O que mais o magoava era que o povo o julgasse apenas pelo “que ouvia”, sem saber o que realmente se passava, acusando-o de querer “formar e levantar um novo Deus”, o que não era verdade. Contudo, não foi um dos seus vizinhos que o denunciou, mas o padre que tanto queria que se juntasse ao seu grupo, com a ajuda de um familiar, Caetano, que trabalhava para o Santo Ofício. Não é possível saber se a visita a Manuel João dos Reis terá sido uma tentativa desesperada de convencer um membro da Igreja de que nada de mal se passava em Vilarinho. No entanto, parece certo que Pinto teria por essa altura plena noção da situação preocupante em que se encontrava — pouco depois, abandonou o lugar, dissolvendo o grupo. Em Coimbra, explicou aos inquisidores que se apercebeu então do seu engano e que era o demónio que falava através de Maria José e não o Espírito Santo.
O agricultor não seria o único membro do culto a temer a presença da Inquisição. Imitando o líder do grupo, Francisca Álvares, que segundo escreveu António Ribeiro na sua tese de mestrado “andara pela região em puro estado de delírio a pedir missas em honra da Senhora da Guia”, saiu de Vilarinho, retirando-se para a freguesia de Santa Maria de Viade, em Celorico de Basto, onde tinha trabalhado e onde tinha conhecimentos. Evidentemente perturbada, a mulher revelou a Sebastiana de Andrade, uma viúva que vivia em Santa Maria de Viade, que “já sabia que havia de ir para as casinhas mas que lá ia morrer pela fé de Cristo e que já não tinha remédio”. Francisca regressou brevemente a Vilarinho a 11 de maio de 1759, dez dias antes de os elementos da congregação serem chamados a depor na mesa da Inquisição em Coimbra.
João Pinto foi ouvido pela primeira vez a 21 de maio de 1579, no edifício onde funcionou em tempos o Real Colégio das Artes de Coimbra e que é hoje ocupado pelo Centro de Artes Visuais (CAV), inaugurado em 2003. O lavrador apresentou-se de livre e espontânea vontade, esperando assim alguma benevolência da parte dos inquisidores, o que não aconteceu. Pinto contou como tinha conhecido Maria José e como o culto em torno do alegado Espírito Santo se tinha formado. Relatou também a visita ao padre Manuel João, dizendo que se tinha encontrado com ele para o convencer a ver “o que aquilo era”. No final da sessão, foi ordenado que permanecesse na cidade e que não se ausentasse sem expressa licença da Inquisição, ficando obrigado a apresentar-se todos os dias não feriados de manhã, pelas oito horas, e de tarde, pelas três.
Pinto foi novamente ouvido seis dias depois, a 25 de maio, data em que foi detido. Três dias depois, voltou à mesa da Inquisição, regressando a 2 de junho, para explicar como tinha adquirido o livro com a oração de São Cipriano e para relatar a caça ao tesouro. Negando que tivesse pedido a Maria José que fingisse estar possuída, o lavrador defendeu-se, afirmando que se tinha limitado a obedecer ao que o espírito comandava, pois acreditava que era quem dizia ser, ou seja, o Espírito Santo, e não uma coisa diabólica. O agricultor voltou a testemunhar perante os inquisidores nos dias 9 e 10 de junho, assumindo nessa data que tinha agido mal e que tinha perdido o “juízo”, o que não convenceu os juízes do Santo Ofício, que destacaram o “grande atrevimento” e confiança” que o tinha levado a achar que podia “fazer exorcismo” a pessoas que se diziam doentes, “lendo-lhes por um caderninho de letra de mão” uma “chamada oração de São Cipriano, que era boa para esse efeito”. “Se algum efeito alcançou, seria mais por indústria e ajuda do Demónio, com que ele teria feito um pacto”, declararam.
Quando Pinto foi chamado pela última vez à Mesa da Inquisição, a 10 de julho de 1759, cerca de dois meses após a sua primeira audição, o presidente do Tribunal do Santo Ofício de Coimbra, António Gonçalves Garrido, já não tinha quaisquer dúvidas sobre quem era “o autor do diabólico congresso que se erigiu em Vilarinho, em que se praticavam as mais execrandas heresias e temerárias blasfémias” — com base nos testemunhos dos habitantes de Vilarinho e no do próprio lavrador, Gonçalves Garrido convenceu-se de que Pinto, “um homem da plebe, leigo, sem saber mais do que ler e mal e escrever, nem tendo virtudes algumas, [que] com grande atrevimento e confiança se metera a fazer exorcismos”, tinha maquinado sozinho todo o “enredo”. Tão incrível era o caso que o inquisidor considerou que “nunca se viu outro semelhante, [n]o seu princípio ou na luxúria” e nas “enormes maldades”.
Ainda que não sendo totalmente isenta de culpa, Maria José teria sido levada a crer na história da sua possessão pelo Espírito Santo pelo agricultor, proferindo inúmeras blasfémias, nomeadamente “que se havia de reformar o mistério da Santíssima Trindade”. A mulher era iletrada e era pouco provável que tivesse tido semelhante ideia. Mais esperto e sabido do que os restantes habitantes, Pinto teria traçado sozinho um plano para reunir um pequeno grupo de seguidores, criando para isso uma figura mística, a própria Maria José, e uma narrativa que não só passava pela promessa da salvação eterna, como da riqueza terrena, através de um tesouro que Deus haveria de revelar no Monte Farinha.
Para António Gonçalves Garrido, a prova definitiva da culpa e suprema “malevolência” do lavrador resida no facto de ter feito um pacto com o diabo. Embora se tivesse tentado desculpar, dizendo que só tinha relatado o sucedido por considerar que ajudaria a sua causa, Pinto impressionou de forma muito negativa os inquisidores, que repetidamente o interrogaram sobre o negócio. Considerando que o agricultor não compreendia a gravidade dos atos que cometera (apesar de afirmar o contrário) e que não tinha feito “nem sincera nem verdadeira confissão”, estes decidiram que Pinto tinha de ser castigado de forma “exemplar” para que abrisse “os olhos da consideração”, se redimisse e salvasse a sua alma.
Uma decisão foi tomada a 26 de novembro de 1759, numa reunião em que participaram dois inquisidores e cinco deputados. Todos foram unânimes em apontar Pinto como principal culpado. Tinha sido ele que “persuadira a dita Maria José, para entrar nos fingimentos do dito Espírito, e com o pretexto dele urdirem e maquinarem embuste tão abominável e esquisito, pois o réu confessa mais nos exames que escreva a carta” ao padre Manuel João dos Reis. Na perspetiva dos membros do Tribunal, Pinto era um homem “depravado” e fingido, “muito esperto, sagaz e mal inclinado”. Assim, na sentença datada de 23 de dezembro de 1759, o homem foi acusado de “introduzir erros e doutrinas formalmente heréticas, falsas, ímpias, temerárias, blasfemas e diretamente oposas aos primeiros princípios da Fé e principais mistérios dela”.
Além de João Pinto, foram condenados outros sete membros do culto de Mondim de Basto. Mas, ao contrário deste, todos aguardaram uma decisão em Vilarinho, o que sustenta a tese de que o agricultor foi sempre considerado o principal culpado. O grupo conheceu a sentença logo no dia 24 de dezembro, data em que foi realizado o Auto de Fé nas ruas de Coimbra: açoitamento, degredo, instrução nos “mistérios da fé”, necessários para a salvação das suas almas, e cumprimento de penas e penitências espirituais. Os anos e o local de degredo variaram consoante o papel que lhes foi atribuído pela Inquisição. João Pinto e Maria José receberam as penas mais pesadas: dez anos de degredo para as galés e para Castro Marim, respetivamente. Os restantes foram condenados a penas de quatro a seis anos. Não se sabe o que lhes aconteceu.
No final da sua tese de mestrado, António Ribeiro decresceu a história de João Pinto como “única e irrepetível”. A singularidade do caso deve-se ao facto de, na segunda metade do século XVIII, numa região rural e isola, um lavrador que mal sabia ler e escrever construiu e divulgou, com relativo sucesso, a sua própria interpretação da doutrina cristã, prevendo para o ano seguinte o fim do mundo não através da água ou do fogo, mas da areia.
Joaquim Fernandes, historiador, professor universitário e especialista em fenómenos sobrenaturais em Portugal, que dedicou algumas páginas do seu livro Apocalipses ao culto de Mondim de Basto, descreveu o caso como “muito suis generis”. “É uma expressão muito particular do meio rural português, que era capaz de gerar esse tipo de movimentos, que não tinham nada a ver com os movimentos no interior dos conventos, das profecias místicas no sentido religioso, baseadas nos textos e no ambiente conventual”, declarou, numa entrevista concedida ao Observador em 2021.
Na opinião de António Ribeiro, João Pinto era “o ponto de encontro de diversas visões do mundo”. Apesar de “sujeito às mesmas influências dos seus contemporâneos”, o facto de saber ler e escrever e de ter “acesso a um conjunto vasto de leituras que não estavam acessíveis a todos os homens da sua condição” distinguia-o dos outros. Foram os livros que acabaram por determinar a visão que construiu do mundo espiritual e que transmitiu aos restantes membros do grupo que reuniu à sua volta. O espírito que Maria José encarnou era, na interpretação de Ribeiro, “uma espécie de alter ego de João Pinto, veiculando ideias que germinavam na cabeça deste homem, sobre as quais ele sempre se recusou a assumir responsabilidade plena”. Pelo contrário, até ao último momento, Pinto mostrou-se convencido de que a sua ‘doutrina’ não tinha nada de errado — afinal, o seu objetivo era o mesmo de muitos outros fiéis — sobreviver ao fim dos tempos.