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ANA MARTINGO/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Presidenciais. A última chamada dos candidatos antes de o dia acabar

Os candidatos presidenciais foram desafiados a fazer a última chamada do dia para o jornalista do Observador que acompanha a comitiva. Os telefonemas foram perto ou já depois da meia-noite.

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Quando o dia acaba, os candidatos ainda têm problemas por resolver, dos mais mundanos aos mais estratégicos. Ana Gomes culpa a Vodafone por não ter televisão e evita, assim, ver Marcelo na tela. A socialista tanto conta como deu um pulo ao shopping por já não ter nada no frigorífico, como critica a estratégia de Marisa de dar a vitória antecipada ao atual Presidente. No pico do desgaste da campanha, Ventura confessa — no início da madrugada — que ainda iria ler coisas sobre Marisa, Catarina Martins e Marcelo. Diz-se incomodado com a saudação nazi no comício do Chega e admite que faria diferente se soubesse que ia haver ameaças a jornalistas. Já Marisa Matias, antes de ir dormir, confessa que sonha com mudar o mundo. Tiago Mayan Gonçalves é apanhado, numa das duas chamadas, ainda no carro, a caminho do Porto, e revela que respira melhor quando passa o Douro.

Tudo isto faz parte das confissões dos candidatos presidenciais na última chamada do dia. Os seis principais candidatos foram desafiados a atender um telefonema tardio a fechar o dia para o jornalista do Observador que está no terreno. A maioria dos candidatos concedeu esta última chamada em dois dias consecutivos. Só com Marcelo Rebelo de Sousa não foi possível gravar a chamada, embora também tenha conversado madrugada adentro com a jornalista que acompanha a campanha.

Ana Gomes. A box avariada que não deixa ver Marcelo

[Ouça aqui a última chamada durante dois dias consecutivos com Ana Gomes:]

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Ana Gomes ao telefone: “As minhas contas são ir à segunda volta”

18 de janeiro, segunda-feira. Depois de uma semana na estrada, o dia de campanha tinha sido atípico para Ana Gomes. Tinha começado pelas 8h da manhã na RTP, com o último debate entre todos os candidatos presidenciais, transmitido nas rádios, e prosseguiu com um rol de entrevistas a canais internacionais, rondas de imprensa de “perder a conta” e uma conferência online com estudantes. Terminou perto das 22h, quando saiu do hotel da Estrela, em Lisboa, onde deu as entrevistas, e chegou finalmente a casa. Foi aí, acabada de chegar a Cascais, onde vive, que nos atendeu o telefone.

— Sim?
Estou? Olá é a Rita Dinis. Como está?
— Estou bem.
Muito cansada? Isto hoje foi uma maratona de entrevistas…
— Nem sei, perdi a conta. Muitas entrevistas com jornalistas estrangeiros. E ainda tive, agora no fim, um debate com estudantes da universidade Católica.
Eu vi.
— Portanto, perdi a conta. Mas pronto, estou bem.
Está pronta para outra, então. Já está em casa?
— Já, já estou em casa. Cheguei agora e logo por azar não tenho televisão nem internet em casa. Uma avaria local, há três dias que estou sem televisão e net.
Então porquê?
— Olhe, pergunte à Vodafone, há três dias que estão para vir arranjar. Portanto, há três dias que chego a casa para tentar ver alguma coisa na televisão e tenho um ecrã a dizer “Serviço de TV temporariamente indisponível”, ia agora ligar a perguntar quando é que vinham resolver isto.
Então ainda tem de ligar para lá antes de ir dormir.
— Se calhar até me faz bem não ver nada.
Ia ver notícias ou Netflix?
— Ia ver notícias, claro. Netflix? Não tenho tempo para isso. Há que meses que não vejo Netflix.
Nesta altura de campanha não há tempo para isso.
— Não, ia ver notícias, mas pronto, vejo pelo telemóvel que tem dados portanto vou segui-las por essa via.

DIOGO VENTURA/OBSERVADOR

A televisão era importante para Ana Gomes ver as notícias sobre aquele que tinha sido o primeiro dia de campanha do adversário na corrida, Marcelo Rebelo de Sousa. O Presidente-candidato tinha ido no dia anterior aos bombeiros do Dafundo, em Lisboa, onde anunciou que o Governo iria incluir alguns bombeiros nos prioritários para a vacinação, e depois, naquela segunda-feira, tinha ido visitar o hospital de Santa Maria, muito pressionado com o agravar da pandemia.

E o professor Marcelo como é que tem visto? Já está com o pé na estrada?
— Bom, eu acho extraordinário. Ele tinha dito que não ia fazer campanha e está a fazer campanha. Está, aliás, a seguir-me. Eu ontem fui aos bombeiros de Carnaxide e ele foi hoje aos do Dafundo, há dias eu falei da falta de utilização da capacidade instalada nos hospitais militares e ele hoje também falou disso. A própria requisição civil… achei que era significativo ele estar a dizer que a responsabilidade é toda do governo quando foi ele que chamou a si a responsabilidade pela pandemia. Nada de novo no que é típico do professor Marcelo Rebelo de Sousa.
Como é que viu a ida dele ontem ao Santa Maria?
— Só soube porque alguém me disse, porque não consegui ver nada na televisão.
Porque está sem Vodafone.
— Pois, portanto nem sei o que ele lá foi fazer.

Ana Gomes tem tentado dialogar com Marcelo Rebelo de Sousa durante toda a campanha. Ora diz que o Presidente-candidato desvaloriza as eleições por não querer fazer campanha, colando-lhe o rótulo de “arrogante”, ora o culpa por ter estado ao lado dos privados e ter bloqueado a negociação do Governo, ora o culpa pelo falhanço dos processos de descentralização e regionalização. Todas as críticas são para o candidato que vai na frente na corrida, para fortalecer a ideia de que é com ele que disputa as eleições. Ir à segunda volta continua a ser o objetivo declarado. E a prova disso foi o ataque feroz que fez uns dias depois, num evento online com a JS, onde disse que era “inconcebível” e “indigno” um “socialista do partido de Mário Soares votar à direita”, num candidato que “está a trabalhar para trazer a direita de Passos Coelho de volta”. Mas ficou a falar sozinha, porque o candidato Marcelo pouco ou nada lhe responde dentro do fato de Presidente.

Naquela manhã já tinham estado frente a frente, no debate das rádios, onde, ao contrário do que acontecera no debate da televisão, na semana anterior, Ana Gomes conseguiu falar do seu tema de eleição: justiça. E fez uma coisa que ainda não tinha feito: picou a “amiga” Marisa Matias.

— Como foi o debate hoje de manha? Estava menos frio? Vi que estava de pé na cadeira…
— Pois! Porque os bancos eram os mesmíssimos [do debate anterior da RTP]. Na altura, já tinha protestado com os bancos mas eles não ligaram nada e puseram-nos os mesmos. A Marisa também esteve em pé e as moderadoras também estiveram em pé, em particular a mais pequenina, a Eunice.
E o frio, já estava mais agradável?
— Nesse aspeto sim, já estava melhor.
E o debate em si, como achou que correu?
— Olhe, talvez tenha sido o melhor de todos os debates. No outro da televisão havia um aspeto que também foi muito complicado: o som era péssimo. Eu tinha dificuldade em ouvir o Carlos Daniel porque aquilo fazia eco, e não ouvia os outros candidatos.
— Não podia contrapor?
— Exatamente, apanhava uma ou outra coisa mas foi por isso que o outro debate acabou por ser mais uma prestação de um e outro, e não foi interativo, porque eu não apanhava o que dizia a maior parte dos outros candidatos. Neste já era mais fácil e já houve hipótese de réplica.
Mesmo assim os candidatos da esquerda ainda quiseram entalá-la ali com a delação premiada, não foi?
— Claramente. Mas eu expliquei que, ao contrário do que queriam dizer, eu sempre disse que admito colaboração de criminosos com a justiça como de resto já está previsto no próprio código penal, desde que seja sob controlo judicial. Não é a delação premiada tal como é praticada no Brasil.
Disse que a Marisa Matias também é a favor desse tipo de colaboração.
— Exatamente, ela foi uma das apoiantes, no Parlamento Europeu ela faz parte do júri que atribuiu ao Rui Pinto o prémio que eu lhe fui entregar quando o fui ver pela primeira vez à prisão. Fez parte do júri que atribuiu o prémio ao Rui Pinto.
Foi uma marcação de terreno entra as duas?
— Digamos que em relação à Marisa há muita coisa que nos une mas também temos divergências, e uma coisa não percebo, que é dar por adquirido à partida que o professor Marcelo Rebelo de Sousa consegue um segundo mandato.
Porque é que acha que Marisa Matias faz isso?
— Não sei, acho que é má estratégia. Acho que só revela que o objetivo da candidatura dela é marcar terreno para o partido.

O debate tinha sido às 9h da manhã, e ao final da tarde, numa conversa online com jovens da Católica, Ana Gomes voltaria à carga no argumento contra a “amiga” Marisa. É que o eleitorado da esquerda é importante, e a dispersão pode prejudicar a candidata socialista, que tem centrado o discurso nas causas ambientais, feministas e no combate às desigualdades socialistas. Mas essa “contabilidadezinha” deixa para os outros, como já tinha dito na primeira conversa telefónica com o Observador, na véspera. No último telefonema do dia, antes de dormir.

Ana Gomes dormia uma média de 7 horas por noite, mas confessa que agora precisa de menos horas para estar bem. “Sete horas seria o ótimo, mas desde que morreu o meu marido passei a dormir menos… agora talvez 5 horas seja o normal”, conta ao Observador. Na noite passada, contudo, tinha dormido apenas três horas e meia.

Dormiu menos porquê? Terminou mais tarde o dia?
— Estive a fazer uma reportagem com as fotografias do dia de ontem e às vezes sou naba e tenho de repetir, às vezes já tenho o tweet feito e aquilo apaga-se, enfim, acabei por me ir deitar para aí às 2h da manhã. Agora digamos que estou a dormir uma média de 5 horas, mas na última noite foram três horas e meia. Mas esta noite já durmo mais, esta noite vou-me desforrar.

O tweet, de facto, tinha sido publicado pelas 1h15 da manhã, a que se seguiram, presumivelmente por lapso, mais cinco tweets com a mesma montagem fotográfica que lhe tirou horas de sono.

A ida ao shopping para abastecer o frigorífico e o dilema do batom vermelho. “Não faço esse tipo de contabilidadezinhas”

17 de janeiro, domingo. Era o último dia da primeira semana de campanha e Ana Gomes tinha terminado a tarde a ser recebida de braços abertos pela comunidade cigana do bairro dos Navegadores, em Porto Salvo, Oeiras. Estava prestes a entrar no carro para ir para casa quando o telefone tocou.

Estou?
— Olá, Rita.
Olá, Ana. Já terminou por hoje?
— Já, acabei agora mesmo, fiz uma entrevista à CMTV, acho que sim.
Tem sido muita coisa para encaixar num só dia, não é?
— Não, esta campanha é completamente atípica, tenho a sensação de que se fosse uma campanha normal os dias eram muito mais compridos e não chegava a casa às horas a que vou chegar hoje. Ainda falta uma hora de caminho.
— Costuma dizer que a ideia da campanha é estar onde os portugueses que trabalham estão. Não tem tido comícios nem eventos tradicionais de campanha…
— Tivemos que fazer todo um reajustamento por causa das medidas deste novo confinamento. Mas não tem sido impossível manter estes encontros, vamos afinando, com o respeito pelas regras de segurança, mas às vezes é difícil. Por exemplo, você viu hoje que veio uma menina a correr ter comigo e eu não podia afastar da menina que carinhosamente veio ter comigo.
Também houve uma senhora nesse bairro dos Navegadores que a queria abraçar.
— Exatamente e eu disse logo ‘não nos podemos abraçar’ por causa da pandemia. Isso é muito inibidor, é muito constrangedor, porque é evidente que eu teria gostado de dar um abraço àquela senhora e ainda mais acarinhar a criança que veio a correr ter comigo.
— Os afetos também fazem parte duma campanha presidencial?
— Fazem sem duvida, não só da campanha como do exercício presidencial. Os afetos são importantes, mas o melhor afeto é o de cuidar, de dar seguimento as preocupações que as pessoas têm e procurar resolver os problemas que as populações têm.

Os afetos importam não só a Marcelo Rebelo de Sousa. E Ana Gomes lamenta que a “máscara” impeça mais gente de a reconhecer na rua. “Antes da pandemia toda a gente me reconhecia, o problema agora é andar de mascara. Mesmo assim devo dizer que me surpreende, ainda há dias fui ao shopping de Cascais num destes dias de manhã abastecer-me, porque o meu frigorífico…enfim, e fiquei surpreendida pelo número de pessoas que me reconheceram mesmo estando de máscara”, disse.

— Hoje não a vimos com batom vermelho, ao contrário de ontem, mas também a verdade é que não a vimos sem máscara.
— Eu raramente ponho batom vermelho. Mas há dias em que ponho. Normalmente o meu batom não é vermelho.
— É de que cor?
— De várias cores, neutras, rosas ou alaranjados…
— Curiosamente o rosa e o laranja também são cores partidárias.
— O laranja é uma cor que eu gosto particularmente porque acho que dá boas cores ao tom de pele. Mas também depende muito da roupa, eu procuro conjugar com a roupa. De facto batom vermelho ponho raramente. Mas há momentos em que acho que se justifica particularmente pôr batom vermelho, e quando há ataques ignóbeis, sexistas, acho que faz todo o sentido mostrar solidariedade, e há varias formas, algumas irreverentes e divertidas, de mostrar que esses ataques ignóbeis não causam mossa, não intimidam.
Não teme que esse movimento tenha dado um impulso extra à candidatura de Marisa nesta lógica da dispersão de votos?
— Sabe, eu acho que há questões de solidariedade e de convergência pelos direitos democráticos e humanos que ultrapassam estas contas. Eu pelo meu lado nunca faço esse tipo de contabilidadezinhas. Eu quero unir, federar, convergir, não apenas as forças de esquerda mas todas as que querem consolidar e reforçar a nossa democracia. Portanto, essas contas pequeninas deixo-as para outros.

Na véspera, em Coimbra, Ana Gomes tinha-se juntado ao movimento anti-Ventura que se simbolizou no “batom vermelho”. Começou por um tweet, depois repetiu o número ao vivo, colocando o batom num evento ao ar livre nos jardins da associação académica de Coimbra. Marcelo é que é o seu adversário, mas à falta de diálogo com o Presidente-candidato, vai procurando captar votos à esquerda mais à esquerda. A marcação cerrada aos socialistas estaria reservada para os últimos dias de campanha quando Ana Gomes entrou numa nova fase narrativa: um socialista do partido fundado por Mário Soares não vota Marcelo. Ponto. Será? A avaliar pela (pouca) quantidade de socialistas que apareceram ao seu lado nas duas semanas de reta final da campanha eleitoral, não será bem assim.

Obrigada por estes minutos, e bom regresso a casa.
— Obrigada, até amanha e obrigada também pelo vosso esforço.

Ventura. A oração matinal, os idiotas das saudações nazis e Sá Carneiro

[Ouça aqui um resumo da última chamada do dia em duas noites de campanha:]

André Ventura ao telefone: “A saudação nazi incomoda. As pessoas não percebem que não me ajudam nada”

É quase meia-noite quando André Ventura atende o telefonema do Observador. Tinha acabado de sair de um comício drive-in – o primeiro do género em Portugal – com mais de 450 pessoas, numa noite gelada em Leça da Palmeira.

Está particularmente satisfeito com o sucesso da iniciativa, ainda que tenha sentido falta do embalo dos aplausos. “O discurso para mim é também muito a energia da fala. E, ali, a energia é muito mais difícil de ver porque está frio, porque as pessoas estão dentro do carro… Não é a mesma coisa bater palmas e buzinar, é tudo diferente”, reconhece.

A voz, ainda assim, revela um cansaço indisfarçável. É segunda-feira, 18 de janeiro e o nono dia de uma campanha feita a percorrer todos os distritos do país, com muitos comícios e quase tantas contra-manifestações, com muitas ações a acabarem para lá das onze da noite, sempre em alta intensidade, sempre com discursos inflamados. Não há tempo para ser “fofinho” como chegou a dizer durante a campanha.

— Estou?
— Boa noite, como está?
— Miguel, tudo bem?
— Tudo bem. Está com a voz cansada…
— Pois, já cheguei ao hotel e já estou aqui a preparar as coisas de amanhã…

Tem sido a estratégia da comitiva de Ventura. De manhã, o petit comité reúne-se para decidir os principais pontos do dia; à noite, volta a juntar-se para estudar o que aconteceu mal e afinar o resto.

O ritual repete-se todos os dias. Ao contrário do que costuma ser prática noutras campanhas eleitoral, nunca as manhãs de Ventura são preenchidas por iniciativas políticas. O dia, para os jornalistas que acompanham a caravana, só começa algures depois do almoço e estende-se muito para lá do jantar. O candidato do Chega só se deita muito depois.

— Mas vai preparar o quê? O discurso de amanhã?
— Não, eu não costumo escrever discursos, só tópicos. O que geralmente faço é procurar ler o que aconteceu…

— E já leu alguma coisa que vá usar amanhã?
— Sim, as medidas de confinamento que foram decretadas pelo Governo e algumas coisas que os meus adversários disseram. Mas isso tem de ficar para amanhã.
— Recordo que esta conversa só será publicada mais tarde. Pode confidenciar já o que vai levar.
— Estava a ver algumas coisas que a Marisa tinha dito, que eu tinha insultado todas as mulheres… Algumas coisas da Catarina Martins, do Marcelo que ouviu algumas coisas na rua. Estou a ler tudo isto para amanhã poder continuar. Isto é bastante puxado…

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Horas antes, ao início da tarde, Ventura participou num almoço-comício no restaurante Coral, em Viana do Castelo, para cerca de 60 pessoas. Enquanto discursava, olhou para o cartaz atrás de si, com sua imagem em grande escala, e não resistiu em dizer que já não se reconhecia — as olheiras profundas tornaram-se imagem de marca.

— Esta campanha está a ser mais dura. É geograficamente muito dispersa. Nas legislativas, também percorri uma parte do país, não era eu o candidato propriamente, só ia dar apoio. Aqui não: uma campanha presidencial é muito mais centrada na pessoa e é muito mais exigente. E não tenho conseguido descansar muito, porque quando chego ao hotel…
— Reúnem-se sempre?
— Sim, quase sempre. 

— Para discutir o quê? O que falhou…?
— O que falhou, o que é que podemos definir para o dia seguir. É uma comitiva verdadeiramente.

Na verdade, na terça-feira nem foi preciso puxar muito pela cabeça. O debate entre todos os candidatos transmitidos pelas rádios — Ventura não foi por motivos de agenda — acabou por ficar marcado pela frase de Marcelo de que não daria posse a um Governo PSD/Chega sem um acordo escrito. Ventura aproveitou para fazer croquetes e disparar contra Marcelo, Rui Rio e ainda pescar entre o eleitorado mais à direita que não se revê nem num, nem noutro.

Em parte, era já uma estratégia que o líder do Chega vinha ensaiando nos últimos dias. Ventura, e essa era uma preocupação do núcleo duro, sabia e sabe que para crescer em votos tem de alargar a sua base de apoio. E há muita gente à direita que quer dar um cartão amarelo a Marcelo.

— Aquela frase… foi um brinde que Marcelo Rebelo de Sousa lhe deu?
— Fugiu-lhe a boca para a verdade. Como eu não estava lá, disse isto para agradar às adversárias de esquerda. Não se compreende muito bem como é que vai exigir um acordo escrito quando não exigiu a este Governo. Parece que não confia em André Ventura e em Rui Rio, mas confia nestes três protagonistas. Isto mostra bem que a direita não pode votar em Marcelo Rebelo de Sousa.

— Disse ao almoço que se fosse preciso ligava ali à frente de toda a gente a Rui Rio. Já ligou ou foi só um recurso estilístico?
— Não, não! Vou esperar que Rui Rio ainda diga alguma coisa sobre isto, porque acho que isto o deve incomodar, não deve estar muito contente. Vou esperar que ele reaja. Eventualmente, ainda o contactarei. 

Uma campanha em plena pandemia tem sido o maior obstáculo de André Ventura. “É mais difícil neste contexto”, desabafa. O líder do Chega abdicou de fazer arruadas, mas tem mantido os comícios, almoços e jantares.

O de domingo, em Braga, juntou 170 pessoas e foi um dos momentos mais tensos da campanha de Ventura. Vedado à comunicação social — como todos os eventos deste género –, rapidamente começaram a surgir notícias sobre o número de pessoas presentes, a lotação do espaço, as críticas das autoridades de saúde, a verdadeira festa que estava a acontecer lá dentro (com música, sorteio de rifas, cânticos de claques).

Os jornalistas perceberam que algo ia correr mal assim que um ou outro comensal deixava a sala e se cruzava com a comunicação social. “Sois um monte de esterco”, atirou um deles. A entrada na sala onde decorria o jantar fez-se ao som de assobios, cânticos dirigidos contra a comunicação social e ameaças (“era matá-los a todos”). Daí até às saudações nazis foi um saltinho: no dia seguinte, a imagem, captada pela RTP e amplamente difundida pelas redes sociais, tornava-se incontornável.

— A noite em Braga foi um bocadinho mais sensível.
— Sim, sim…
— Se soubesse o que sabe hoje teria feito diferente?
— Sim, epá… Há coisas que reconhecemos que não correram bem. Teríamos feito muito diferente. Mas isso é com a informação que temos hoje. Com a informação que temos hoje, aquelas condições teriam sido outras e mesmo depois toda a evolução ali… Há muita coisa que a gente não controla.
— A questão da saudação nazi. Isso incomoda-o?
— Incomoda, como é evidente. Só quem não estivesse nisto a sério é que não poderia incomodar. Ou quem fosse fonte. Estas pessoas se calhar não percebem — ou se calhar percebem — que não me ajudam nada! Não percebem que por muito entusiasmados que estejam ou por muito idiotas que sejam não percebem que só estão a prejudicar. Causa-me ainda maior estupefação, mas, enfim, Miguel, o que é que eu posso fazer? Se pomos centenas de pessoas dentro de um sítio e isso acontece, o que é que a gente pode fazer?

Não é a primeira vez que acontece num comício do Chega, que tem tentado evitar a todo custo conotações com a extrema-direita violenta, apesar de ter vários elementos dessas estruturas integrados no partido — algo que Ventura já disse querer combater.

Apesar das ameaças internas, o potencial de ameaça externa é aquele que mais tem marcado esta campanha presidencial. Todos os passos de Ventura são acompanhados ao milímetro pela equipa de segurança que o protege. E isso tem custos, naturalmente.

— Vou deixá-lo descansar. Uma última pergunta: já sabe o que vai fazer amanhã de manhã? Vai fazer exercício? Não é muito de correr, já percebi.
— Por acaso até sou. Agora não o faço mais pelas questões de segurança… Agora estou a apostar em exercícios de casa, tipo passadeiras e esse tipo de coisas. Em campanha não consigo. Portanto, amanhã de manhã o que vou fazer é rezar e depois vou reunir com a comitiva para preparar o dia. Amanhã volto-lhe a ligar. Pode ser, Miguel?
— Isso mesmo. Estamos combinados.
— Até amanhã! Um abraço, Miguel, e uma boa noite. 

O dia de terça-feira começou relativamente calmo na campanha de André Ventura. A caravana do líder do Chega seguiu do distrito do Porto para Aveiro, onde, num comício meio morno, o candidato decidiu elevar a fasquia e fixar o objetivo eleitoral nos 20%.

Horas mais tarde, em Coimbra, tudo se complicaria. Ventura foi cercado por uma manifestação de quase cem pessoas que se concentraram no exterior do Mosteiro de Santa Cruz, bem na baixa de Coimbra, e viveram-se momentos de alguma tensão. Acabou por manter o comício previsto no local, mas foi praticamente abafado pelos manifestantes.

— Estou?
— Boa noite, como está? Tudo bem?

— Miguel, tudo bem? Como é que vai?
— Hoje já se vai deitar mais tarde.
— Sim, ainda estamos aqui a terminar mas falo já consigo. Tem é de ser um bocadinho mais rápido, pode ser?
— A reunião está a demorar mais tempo porquê? O dia hoje correu pior. 
— Sim, foi mais duro.
— Aquilo em Coimbra foi duro.
— Muito, pá. Sobretudo incompreensível. Como é que se organizaram para se manifestar quando nem vocês sabiam ainda das coisas? Como é que num momento eu chego à Igreja e não está ninguém e de repente estão cem pessoas? É inacreditável e reforça a nossa ideia de que algum partido está por detrás disto.
— Tem sido uma constante ao longo de toda a campanha. Imagino que lhe custe ouvir “fascista” e coisas iguais ou piores.
— Claro que custa. Mais do que isso, custa-me não conseguir fazer campanha. Todos os dias são manifestações. A mensagem acaba por ser difícil de passar nestas condições. Consegui apanhar um bocadinho dos telejornais e a tónica é sempre nas manifestações. O que é normal, eu percebo, é o que releva. Mas perde-se um bocado a transmissão da mensagem.

Muito longe de imaginar o que aconteceria dois dias depois, em Setúbal, Ventura assumia nesta conversa com o Observador que parte da reação que provoca nos outros é pela “linguagem mais firme e menos polida” que usa. “Se me perguntar: esperava isto em quase todos os distritos? Não, não esperava. Esperava no Alentejo, talvez em Lisboa, mas não esperava isto em Castelo Branco, em Coimbra, em Portalegre…”, desabafava.

A questão da segurança de Ventura tornou-se um tema desta campanha. De acordo com a comitiva, o líder do Chega tem recebido várias ameaças de morte, sobretudo nos dias que antecederam a campanha e durante. E a tendência será repetir-se e agravar-se no futuro.

— Ontem, no nosso telefonema, deixámos o tema segurança no ar. É difícil fazer campanha com as ameaças de morte que diz ter recebido?
— É.

— Assusta-o?
— Não é que me assuste. Mas preocupa-me o impacto no futuro. À medida que isto vai aumentando em termos de preocupação com a segurança, o meu contacto com a população vai sendo menor. E uma das minhas formas de fazer política é o contacto, jantares com multidões… Tudo isto vai sendo dificultado neste contexto porque não sabemos onde está o perigo eventual. Isto pode ser uma questão nestas eleições mas também para o futuro.

Ventura sente-se manifestamente desconfortável com o tema. É altura de mudar de assunto e de aligeirar a conversa. Na reta final da  campanha, não faltaram referências a D. Afonso Henriques, Humberto Delgado, Francisco Sá Carneiro, à Divina Providência, aos “céus” e ao “milagre” do Chega.

O candidato foi insistindo na ideia de que tem uma “missão” e que “essa missão é salvar Portugal”, reconciliando o país com a sua grandeza histórica. Exagero? Ventura diz que não e insiste na ideia de que Francisco Sá Carneiro concordaria como muito do que diz André Ventura se estivesse vivo.

— Ontem foi comparado a Humberto Delgado, já fez referências a D. Afonso Henriques, a Francisco Sá Carneiro… Para si, podemos dizer que o céu não é literalmente o limite?
— Não, não é. Eu até li a reportagem do Observador que falava com a minha relação privilegiada com o além. 

— (Risos)
— Sim, há uma série de referências históricas que me mobilizam e que me animam…
— Mas não acha um bocadinho exagerado comparar-se a D. Afonso Henriques? 
— Não é comparar. O que eu acho é que o espírito de D. Afonso Henriques é importante em termos de luta pela questão nacional. Sou o único político a lutar pela questão da nacionalidade. Tal como D. Afonso Henriques lutou. Não estou a comparar o feito de um e de outro até porque isso seria ridículo. Um é o pai da nação.
— E o André Ventura? Como é que se vê?
— Não, não me vejo como o pai da nação, de certeza absoluta. Agora, vejo-me como alguém que quer lutar por reconquistar o país face aos interesses internos e externos. E a referência a Francisco Sá Carneiro? Não, estou a procurar nem ofender o PSD, nem os militantes do PSD. Ouço muitas vezes dizer: “Se Francisco Sá Carneiro fosse vivo, nunca se identificar com o que André Ventura diz”. Eu não sei. Francisco Sá Carneiro viveu naquele contexto histórico e até teve uma evolução. Sá Carneiro da revolução não é o mesmo Sá Carneiro quando morre e há uma preocupação em termos reformistas. Se Sá Carneiro fosse vivo identificar-se-ia com muita coisa do que eu digo hoje.

Com ou sem inspiração divina, Ventura partiu para esta campanha eleitoral com um objetivo declarado: ficar à frente de Ana Gomes. Ao longo dos dias de estrada, o discurso foi evoluindo para o ficar à frente da esquerda toda junta e, finalmente, forçar Marcelo Rebelo de Sousa a uma segunda volta

Em Aveiro, horas antes de telefonar ao Observador e do embate em Coimbra, Ventura aproveitou um comício para fixar um número mágico: 22%, o dobro do que lhe dão as sondagens. Objetivo que reiterou.

— Hoje foi a primeira vez que falou em números. Acha mesmo que consegue ter 20% no dia 24 janeiro?
— É difícil. Mas o que eu sei é que nos Açores davam-nos um número e nós tivemos praticamente o dobro. Atendendo às sondagens de 11%, nada é impossível. Podemos ser penalizados pela abstenção, o que acho é que temos de lutar por esse valor. Um valor entre 16 e 20% vai mudar o espectro político português. Ninguém acredita que pessoas que votam em mim agora, não votem no Chega se houver eleições daqui a uns meses ou daqui a um ano. Mesmo que Marcelo ganhe, estou convencido que a votação vai ser importante no segundo lugar porque pode definir o paradigma político dos próximos anos. 

Na manhã seguinte, a agência Lusa publicaria uma entrevista com Diogo Pacheco Amorim, vice-presidente do partido e grande ideólogo de Ventura, em que fixava o objetivo nos 10%. À tarde, aos jornalistas, o candidato do Chega assumiu que ficaria satisfeito com os 10% se isso significasse ficar à frente de todos os outros candidatos à exceção de Marcelo.

O certo é que os últimos dias de campanha de Ventura acabariam por ficar marcados por dias cinzentos e chuvosos e manifestações violentas. Estava em curva descendente e a máquina do Chega reconhecia-o em conversas informais. Quando conversava com o Observador, Ventura não o sabia, naturalmente.

— E amanhã de manhã, já sabe o que vai fazer?
— Vamos reunir na mesma, definir as estratégias e o resto é surpresa.

— Aqui estaremos para acompanhar essas surpresas.
— Obrigado, Miguel, até amanhã.
— Um abraço.
— Um abraço, adeus, até amanhã.

A surpresa chegou dois dias depois, em Setúbal, sob a forma de um protesto violento seguido de carga policial. Será suficiente para galvanizar as tropas e atingir o segundo lugar?

Marisa. A ‘bolhinha’ e o nome-dele-não

[Ouça aqui o resumo da última chamada do dia com Marisa Matias:]

O batom vermelho como “símbolo de uma campanha morna” e o sonho de “mudar o mundo”

Já passa das onze da noite quando Marisa Matias chega ao quarto de hotel. Na noite deste telefonema está em Braga, mas tem sido assim quase todas as noites, até porque há quase sempre um comício à noite. A campanha está a chegar ao fim e o cansaço já aperta.

— Estou? Boa noite, Marisa.
— Boa noite, Inês. Desculpe não ir ao lobbie, estou muito cansada.
— Não há qualquer problema. A ideia é mesmo essa, o último telefonema da noite. 
— Ah, boa, boa. Ainda estou aqui a trabalhar na agenda de amanhã.
— Estamos nos últimos dias de campanha, o cansaço já pesa?
— A última semana foi particularmente exigente, com a ida os Açores e Madeira, o debate entre todos os candidatos depois de um longo dia, a vinda para Braga depois do comício de Almada, não se pode dizer que tenha sido uma semana tranquila, nem com muito descanso.

As dores nas costas – após a queda no final do ano – já quase não existem. A candidata a Belém já está melhor, porém não esquece que a primeira semana de janeiro foi “muito dolorosa”. Marisa admite que os debates foram muito difíceis, com “dor permanente e desconforto”. Contudo, a partir daí “tem sido sempre a melhorar”.

— Vem sempre numa carrinha de nove lugares – agora com a pandemia vai pouca gente lá dentro – é confortável para viajar tantos quilómetros?
— Temos uma bolhinha. É muito confortável. Somos uma bolha de quatro pessoas. Com o Luís Costa, o João Curvelo e o Adriano e é confortável. A companhia é boa, as conversas também, a música também. É super confortável.
— Há um lugarzinho com uma almofada que toda a gente já sabe que é o da Marisa?
— Não tenho nenhuma almofada (risos), agora foi uma boa ideia, pena que isto esteja a acabar.

Além das costas, o que também melhorou, na visão da bloquista, foi a campanha eleitoral com a chegada do movimento #VermelhoemBelem.

— O movimento do batom vermelho começou como um insulto e tem dito que se transformou numa onda de solidariedade, acabou por dar uma força à campanha? O que é que mudou depois desse dia?
— Mudou a campanha, foi um movimento muito bonito de solidariedade e de consciencialização dos perigos e ameaças racistas, xenófobas e machistas. Todos estes movimentos precisam de símbolos, se o símbolo foi o batom vermelho que seja. (…) Uma campanha que estava muito morna, se calhar, acabou por trazer esta coisa de estarmos juntos a defender valores contra uma ameaça à democracia.

José Sena Goulão/Lusa

A ameaça à democracia tem um nome, mas Marisa Matias não o diz, ao contrário de todas as pessoas com quem se cruzou na campanha. Costuma tratar as pessoas pelo nome e por tu, mas por outro lado durante toda a campanha nunca usou o nome de André Ventura – até aqui Marisa nunca tinha dito o nome do líder do Chega, mas disse-o pela primeira vez no comício que aconteceu no dia seguinte a esta conversa.

— Ele usa tantas vezes o nome dele, até na terceira pessoa… que acho que já usa as vezes suficientes. Aí o que importa é o debate de ideias e o que cada uma destas candidaturas representam. Nesta candidatura em específico o mais preocupante é o programa e as ideias que representam. Neste caso o protagonista é um instrumento mas o problema está no que defende e nas ideias que representa.
— A extrema-direita entra na campanha já tarde. Nos primeiros comícios não se falou muito do tema, mas depois tem havido uma grande insistência. Foi uma mudança de plano, como diz Marcelo passou a apostar num combate político e não na secretaria? 
— Nunca abdiquei do combate político, o facto de defender os valores democráticos e o que está na Constituição na situação especifica que fomos conversando ao longo da campanha não significa abdicar do combate político com a extrema-direita há anos, e no Parlamento Europeu cada vez mais… é o meu dia a dia. As campanhas têm dinâmicas próprias e nós não conseguimos adivinhar o que é que vão ser todos os temas centrais da campanha e a partir do momento em que o candidato da extrema-direita passou a usar e abusar da mentira, a instrumentalizar as pessoas como instrumentaliza, passou ao insulto em vez do debate programático de ideias – acho que nunca fez – acho que temos de perceber quando é que os ataques são pessoais e quando é que nos ultrapassam. Tentou atacar-me e no ataque que me fez – que foi um insulto – insultou todas as mulheres deste país e a dimensão é completamente diferente e não podemos silenciar.

Do combate político não abdica e “o silêncio depende”, “há vezes em que é melhor, outras que não”. “Normalizar não é bom e por isso é preciso intervir e não de forma silenciosa e quando há insultos que atacam comunidades inteiras, pessoas pela sua cor de pele ou mulheres eu penso que aí o silêncio é impossível de manter, até porque esses ataques são feitos com a perspetiva de gerar mais medo e ameaça”, continuou a candidata.

Nos dias que correm fazem falta os afetos, e com mudanças drásticas na forma de fazer campanha, Marisa diz sentir muita falta desse abraço que lhe é tão natural.

— A Marisa tem dito muitas vezes que se recusa a ficar em casa, que quer estar na rua com as pessoas, mas rua está muito restrita. Sente falta de um abraço?
— Sinto [falta de um abraço], claro que sinto. Há muitas situações em que um abraço faz falta. Aquela situação daquela mulher era de um desespero tão grande. Um abraço significa poder transmitir de outra forma o que sentimos e o quão empenhada estou para que se resolvam os problemas delas. Não é o abraço que vai resolver, mas por norma não me costumo esquecer das pessoas com que me vou cruzando e as histórias delas e vou procurando acompanhar, às custas disso já fiz amigos para a vida em circunstâncias muito improváveis.

Está na hora de desligar a chamada, de ir dormir, que a noite já vai longa.

— Com o que gostava de sonhar? Com o que sonha?
— Mudar o mundo. Sonho de forma muito humilde, mudar o mundo é mesmo o sonho que nos ajuda a todos e a todas.

João Ferreira. A vontade de um abraço e o voto útil empolado

[Ouça aqui o resumo da última chamada do dia com João Ferreira:]

João Ferreira ao telefone: “Força com que minha candidatura sair pesa mais do que a das que não contam para a batalha que se segue”

Aceite o pedido para a última chamada do dia, o telefone tocou apenas em dois impulsos antes de alguém atender. Do lado de lá não respondeu João Ferreira, mas Francisco Araújo que tem sido uma espécie de homem sombra do candidato presidencial ao longo de cada momento da campanha.

— Boa noite, está tudo pronto?
— Sim.
— Ok, vou passar.
— Obrigada.


– ‘tou
– ‘tou, ‘tou. Olá, boa noite novamente, agora por telefone.
– Viva, boa noite novamente.
– Agora mais abrigados do frio.

A poucos dias do fim do período oficial (sim, oficial, o candidato fez questão de recordar que não começou a campanha há uma semana, mas há “quatro meses depois da apresentação oficial da campanha”) de campanha eleitoral, o Observador quis saber qual o estado anímico de quem está na corrida. João Ferreira, que tinha deixado há poucos minutos o local da última ação do dia e uma apoiante de 78 anos a quem prometeu um abraço noutra altura, manteve um registo descontraído ao longo da chamada, pouco comum para quem só está habituado a ouvi-lo em intervenções atrás do púlpito e com pouca interação com as pessoas com quem se vai cruzando. A herança que transporta do PCP não ficou de parte, mas surpreendentemente não citou nenhum dos artigos da Constituição ou aquilo que se pede de um Presidente da República que defenda, cumpra e faça cumprir… Hum… Bom, acabámos de fazê-lo nós agora mesmo.

LUSA

Com uma campanha para o Parlamento Europeu e outra para as autárquicas já no currículo, é inevitável notar aquilo que mudou com as restrições impostas para evitar a propagação da doença.

— Falta o contacto?
— Sim, não viu a senhora a dizer que queria dar um abraço? (risos) Eu também fiquei com vontade de lho dar.
— Sente falta da informalidade? Recordo-me dos jantares de campanha, por exemplo.
— Isso claramente, sim. Aqui, sobretudo nesta fase última em que entrámos, que coincidiu a fase de campanha oficial com a entrada numa situação diferente do ponto de vista da situação epidemiológica, que se deteriorou bastante, não há espaço para a informalidade. Isso é um traço completamente distintivo de campanhas anteriores. Aqui é a formalidade máxima, no sentido do rigor máximo. Não podemos sair de um quadro que está previamente definido e preparado essa é uma preocupação constante.
— Nestas alterações todas que têm vindo a acontecer e não estando fora de hipótese que possa haver mais, de que sente mais falta?
— Sobretudo da informalidade, do à vontade com que podemos estar. Do contacto físico também. As campanhas são sempre ambientes também de emoções, de afetos. Isso tudo fica muito guardado num momento como aquele em que vivemos. Mas estão presentes também, pôde testemunhar há pouco um momento… Também há espaço para o inesperado, mas em muito menor grau.
— É uma campanha menos emocional?
— Hum… Isto não é uma campanha assética.
— Pois, era esse o meu ponto.
— Bom ela é assética do ponto de vista sanitário, mas não é assética do ponto de vista das emoções. As pessoas expressam emoções, isso sente-se.
— Sente-se? Era essa a minha questão, se chegava até si.

— Há espaço também para a emoção, mas é tudo numa escala diferente, não há ambientes de massas o que não quer dizer que sendo asséptica no que toca aos aspetos sanitários seja assética no que toca às emoções que se expressam. Não é esse o caso. Nós sentimos. Sobretudo quando sentem que uma iniciativa corre bem, que a mensagem está a passar, as pessoas sentem isso e expressam isso. “

E como ‘quem não se sente não é filho de boa gente’, João Ferreira também não deixou de se mostrar surpreendido com a reação à ida ao programa de Manuel Luís Goucha, na tarde da TVI. Frisando “as razões que compreenderá” (referindo-se ao público alvo do programa) para justificar reações tão positivas, diz que “não sabe” porque terá corrido tão bem. Terão sido os minutos iniciais de exposição — ainda que pequena — da vida do candidato que nunca deixou escapar nada? Não responde. Foi um dos silêncios maiores ao longo da chamada, sobre se as reações o surpreenderam, para depois responder que “em certo sentido sim”.

Mas como o tempo é de campanha eleitoral e os debates a dois transmitidos pelas televisões ainda estão bem presentes na memória, João Ferreira aproveitou uma pergunta sobre o debate nas rádios, no início desta semana, para assumir culpas, mas repartindo-as com os ‘moderadores’.

— Voltando ao debate, correu como esperava?
— Qual?
— O das rádios, é o que está mais presente.
— Sim. Sim, sim, acho que sim. Foi um debate sereno, acho que teve uma boa condução, acho que o tempo foi aproveitado para tocar temas diversos, muito relacionados com a intervenção do Presidente da República o que é uma coisa sempre importante também.
— Faltou essa temática da intervenção do Presidente da República nos debates a dois?
— Em geral acho que não, num caso ou noutro sim. Foram todos diferentes, em geral acho que foram úteis e que cumpriram função que é muito útil, mais ainda num quadro como aquele em que estamos. Eles foram de alguma forma desiguais, houve debates que foram mais esclarecedores que outros, mais bem conduzidos que outros, mais serenos e ordeiros que outros, mas isso é como em tudo depende dos intervenientes, incluindo quem debate e os moderadores.”

Atenção às outras campanhas? “Não é possível”. Pelo menos é o que nos conta João Ferreira. A hora já vai adiantada é certo, mas não há sinais de cansaço na voz do candidato. Das outras campanhas chegam “alguns salpicos”. “Uma ou outra coisa que vai dando para ver, mas de uma forma sistemática não é possível, não consigo”, contou. Mas mesmo não sabendo o que se passa nas outras campanhas, o facto de se gerar um apelo para o voto em Ana Gomes para impedir André Ventura de ficar em segundo lugar no resultado do sufrágio não passou ao lado da campanha de João Ferreira. Jerónimo de Sousa veio à campanha para dizer que essas suposições não passam de “truques eleitorais” e que não se pode cair neles. Que é como quem diz, não é motivo canalizar um voto em João Ferreira para um “voto útil” em Ana Gomes. Já João Ferreira disse o Observador que tem recebido “bons sinais”, sinais de que a candidatura “não está confinada” ao PCP.

— Há receio, na sua candidatura, que aconteça o voto útil em Ana Gomes para que André Ventura não fique em segundo lugar?
— Acho que é uma questão muito empolada, de forma não inocente. É completamente inédito esta suposta bipolarização em torno de um segundo lugar. O que conta efetivamente é a distribuição pelas diferentes forças, estamos a falar de uma eleição em que só conta o primeiro lugar. Não é uma prova de atletismo, tenho dito, se alguma coisa conta o peso das outras forças que não ficam em primeiro é o conjunto e não uma ou duas candidaturas tanto mais que, tenho dito, esta candidatura pela sua natureza e natureza das forças que a apoiam é uma candidatura que não desaparece depois de dia 24, seja qual for o resultado. Não é indiferente, mesmo no contexto que refere e nas preocupações que surgem, como estava a dizer, em muita gente o que verdadeiramente vai pesar é a força com que uma candidatura como a minha sair destas eleições, mais do que candidaturas no dia a seguir, desaparecem, não contam para a batalha que segue.
— Dizia que não é só a questão do segundo lugar, contabilizará a esquerda? A leitura que tem de se fazer é uma leitura de esquerda e direita, havendo três candidaturas de esquerda?

— Sim, mas que são muito diferentes entre si também. Há pouco quando lhe estava a dizer no dia 24 estava a aludir a isso precisamente. Acho que é mesmo determinante a força com que esta candidatura saia destas eleições, desse ponto de vista.
— Está confiante no resultado?
— Creio que sim, temos tido bons sinais. Para quem anunciava como perspetiva uma candidatura confinada aos limites de uma determinada fronteira partidária, acho que já se percebeu que não é essa a realidade que ali está. Acho que se percebeu que esta é uma candidatura que está a ser capaz de chegar a setores bastante diferentes. Não ignoro também a situação difícil que estamos a viver e acho que ninguém sabe muito bem qual terá o verdadeiro impacto desta situação do ponto de vista da abstenção, da impossibilidade de votos, há muita gente que mesmo que queira não vai poder votar. Não são poucas pessoas e é difícil avaliar depois o que possa ser depois as consequências disso.”

A herança do PCP para fazer frente a fascismos emergentes

João Ferreira que tinha definido uma candidatura positiva e sem entrar em “debates estéreis” viu-se obrigado a responder — ainda que nunca diretamente — a ataques que foram surgindo da campanha de André Ventura. Foi necessário arranjar uma estratégia para o fazer e nada melhor que reavivar a memória dos portugueses sobre o papel do partido que comemora dentro de poucos meses o centenário.

— Também por aí nos últimos dias tem frisado muito a herança do PCP, naturalmente, da luta pela democracia e liberdade.
— Não refiro essa herança num sentido passadista, refiro essa herança olhando para o presente e para o futuro. Vivemos tempos em que é imprescindível que aqueles que pela sua história e exemplo do presente já mostraram que estão prontos para intervir e lutar em quaisquer circunstâncias, estão prontos para defender a democracia, os direitos, as liberdades, sejam quais foram as circunstâncias.
— Estão alerta, não apenas o que já se fez, mas para o agora e futuro?

— É o agora e o futuro, exatamente. Mas há outra ideia importante também. A gente pensar sempre que no combate a esses fenómenos temos que olhar para as causas. Olhar para as causas significa olhar para aquilo que leva muita gente a aderir a esse tipo de visões, de conceções, projetos antidemocráticos. isto implica seguramente encontrarmos respostas, caminhos, políticas diferentes daqueles que têm sido seguidos. Os que têm sido seguidos geraram esta situação de descontentamento, desencanto, desesperança que depois é aproveitada e manipulada por essas forças. Não conseguimos combater essas forças sem contrapormos à desesperança, descontentamento, desalento, a esperança que vem de políticas diferentes. Não é uma esperança retórica, é a esperança que pode vir de propostas, caminhos e políticas diferentes e isso é fundamentalmente esta candidatura que tem para apresentar e não tanto outras.
— Esse desespero, que leva as pessoas a rever-se neste tipo de projetos, explica-se pela falta de ações concretas que tenham impacto direto nas suas vidas?
— Acho que é porque as pessoas têm falta de coisas essenciais para as suas vidas. Que pode ser emprego, salário, perspetiva de realização na vida, segurança e tranquilidade que não é dada pelo desemprego, pelo emprego precário, por não ter tempo para a família, por viver completamente absorvida por horários de trabalho desregulados, acho que é tudo isto, não é?”

Mas há mais a preocupar a campanha de João Ferreira, que tem feito um esforço por mobilizar os eleitores para o voto. Até porque grande parte dos eleitores tradicionais do PCP são de faixas etárias já consideradas de risco e isso pode significar menos votos no dia 24, com as pessoas a optar por ficar em casa para não correr risco de infeção. A preparação das eleições com todas as garantias de segurança tem sido mencionada por João Ferreira, admitindo que “é preocupante” a hipótese de uma elevada abstenção nas eleições presidenciais deste ano.

— Se for registada uma abstenção muito elevada, teremos um Presidente da República eleito por uma percentagem muito pequena da população, sendo que alguma dela ficou impedida de votar.
Isso é o que é preocupante, de facto. Foram criados instrumentos e possibilidades novas que são importantes embora talvez nem todos tenham funcionado como se esperaria. Tenho recebido algumas queixas de pessoas que se tentaram inscrever para o voto domiciliário, por estarem em confinamento, mas não conseguiram. Gente que tentou tentou, até passar o prazo e depois deixou de se poder inscrever. Isto eram situações que nos têm chegados e que era importante também que pudesse haver um apuramento por parte da Comissão Nacional de Eleições deste tipo de situações.
— Mas estaremos numa situação em que houve pessoas impedidas de exercer aquilo que é o seu direito.
— É um facto, mas acho que nesta fase não é o tempo também de estarmos com especulações. Acho que é de registar esse tipo de situações, encaminhá-las para quem de direito, neste caso para a Comissão Nacional de Eleições, agora acho que não vale a pena estarmos com grandes especulações. Só no domingo vamos saber e depois tentaremos perceber o que se passou.
— Daí que seja essencial mobilizar as pessoas para o voto?
— O que é essencial e que tenho procurado fazer, como deve ter visto, é transmitir às pessoas a ideia de que podem e devem votar com segurança e tranquilidade. Mesmo os grupos da população de risco que por razões óbvias vivem este período com maior preocupação, mas é possível adotarmos as medidas de proteção destas pessoas que lhes permitam exercer em segurança o que é o seu direito.
— Falta algum reforço?
— Espero que não, agora não conheço em detalhe a preparação do processo eleitoral, como lhe digo. Sei que há mais mesa de voto, que certamente estarão a ser adotadas as condições de distanciamento, mesmo das medidas de desinfeção de afastamento. Agora, não conheço em rigor a preparação do processo em todo o país.
— A mobilização para o voto é uma tarefa que cabe a cada candidato?
— Eu tenho feito esse esforço grande, tem visto isso.
— Sim, por isso é que lhe estou a perguntar se acha que têm de ser os candidatos…
— Ainda hoje fiz esse esforço até mais dirigido àquela parte da população que, por razões compreensíveis pode ter mais receio e estar mais intranquila nesta fase. Aquilo que procurei fazer é, numa zona onde há um forte peso da população mais idosa, foi procurar transmitir essas razões de confiança, segurança e tranquilidade no exercício do voto.
— Obrigada pelo seu tempo e bom descanso.
— Obrigado, bom trabalho e bom descanso também. Até amanhã.

Mayan. O cansaço, a corrida com Cotrim, o sr. Daniel, o cartaz para Ventura

[Ouça aqui a última chamada durante dois dias consecutivos com Tiago Mayan Gonçalves:]

Tiago Mayan Gonçalves ao telefone: “Esta corrida foi mais curta do que as que faço”

Na manhã de 17 de janeiro, Tiago Mayan Gonçalves correra com Cotrim de Figueiredo em Belém — para alimentar a força da corrida à presidência da República. O candidato apoiado pela Iniciativa Liberal atendeu a chamada do Observador já depois das 22h e na conversa falou-se da corrida a Belém, do outdoor afixado ao lado de um cartaz de André Ventura, do sem-abrigo Daniel que conhecera na corrida e que o abordara pedindo para falar com o candidato e do desgaste ou não sentido nesta primeira grande campanha eleitoral como protagonista (já fizera campanha com a IL e com Rui Moreira no passado).

— É a sua primeira grande campanha como protagonista político. Sente cansaço? Têm sido desgastantes estes dias?
— Tem sido novo. E a novidade traz às vezes algum cansaço. Mas na verdade não me sinto cansado. Sinto-me às vezes surpreendido com o decurso dos acontecimentos, com coisas que acontecem, mas não tenho sentido cansaço. Tenho sentido até bastante ânimo e vontade, principalmente à medida que vejo… mesmo nas ruas e nas redes sociais, a resposta das pessoas e o contacto das pessoas tem-me dado ânimo.
— Disse esta manhã que há uns meses as pessoas não o reconheciam na rua e que hoje isso acontece. É uma mudança em termos sociais, de vida…
— Claro que sim, é também uma novidade nesse aspeto. Mas estou a gostar. Penso que sou bastante sociável, portanto essa parte tem-me agradado. Acima de tudo o que vejo é que a resposta e o contacto das pessoas é sempre positivo. Isso também me deixa contente, aparentemente também estarei a fazer as coisas bem. Tenho tido sempre respostas e são sempre positivas.

Rui Oliveira/Observador

Tiago Mayan Gonçalves surgiu na pré-campanha para estas eleições presidenciais como um desconhecido de quase toda a gente. Quase dez horas antes deste telefonema, o candidato correu por uns minutos em Belém ao lado de João Cotrim Figueiredo, líder do partido que apoia Mayan e do qual o candidato foi um dos fundadores. E Cotrim notava precisamente que a falta de notoriedade do candidato apoiado pelo seu partido não fora um impedimento à sua afirmação neste período pré-eleitoral.

Dizia o líder e deputado único da Iniciativa Liberal que o candidato presidencial para muitos era “uma surpresa, uma revelação”, mas para ele não — “Vocês não conheciam o Tiago, eu já”. E defendia o seu candidato dizendo que estava “a fazer uma campanha notável”, que estava a ser “brilhante na forma como tem formulado a alternativa” ao modelo “socialista e estatizante” de PS e PSD. Na chamada, falar-se-ia mais da corrida matinal:

— Hoje correu em Belém de manhã. Foi uma corrida cansativa ou para um maratonista, como lhe chamou o João Cotrim de Figueiredo, aqueles minutos a correr são um passeio?
— Foi mais curta do que as corridas que normalmente faço. Foram as circunstâncias da campanha que o determinaram, o ter de estar convosco [jornalistas] e transmitir-vos a mensagem que queria transmitir. Não foi nada cansativa, já não corria… a campanha tem-me impedido de fazer isso com regularidade e foi bom para repor o equilíbrio psicológico e fisiológico. Em circunstâncias normais se calhar teria corrido mais.
— Costuma correr todos os dias?
— Não, todos os dias não mas pelo menos umas três vezes por semana. Ao fim de semana às vezes faço uma corrida mais longa e aquelas provas, maratonas, meias-maratonas, ali pelo menos à volta do Porto vou fazendo todas. A última que fiz foi já neste contexto de pandemia, foi a [corrida] de São Silvestre no Porto. Foi feita de forma virtual, ou seja, cada um corria sozinho mas acabava por correr os 10 km determinados. Foi a forma de poder correr a São Silvestre deste ano.

João Cotrim de Figueiredo dissera nesta manhã que Tiago Mayan Gonçalves “corre umas três horas seguidas”, elogiando os traços atléticos do corredor-político. Na chamada telefónica, Mayan garantia que Cotrim tinha força nas canetas para o acompanhar e que os dois iam mantendo o contacto “sempre que possível”. Mas notava que o político tem muito trabalho e uma agenda preenchida, por ser deputado único da IL no Parlamento, e que também ele, Tiago Mayan, ficara com poucas horas do dia disponíveis devido à campanha. No entanto, garantia: “Temos uma enorme confiança e afinidade, não nos conhecemos só de agora e não é preciso falarmos muito para estarmos em sintonia”.

Na corrida em Belém dessa manhã, uma corrida simbólica à Presidência da República mas também um alerta sobre a importância dos portugueses fazerem desporto e exercício físico para manterem a saúde física e mental, Tiago Mayan Gonçalves encontrara um homem que o abordara porque queria falar consigo: Daniel, um sem-abrigo (“moro na rua, doutor”) que dorme e vive numa carrinha por não ter tecto, que se afundou em dívidas, que não tem “nenhum apoio” — nem sequer o RSI — por não ter morada fixa. O tema seria abordado na conversa.

— Esteve a falar hoje com um senhor que o abordou na rua, que dorme e mora numa carrinha. Em termos emocionais e humanos é difícil equilibrar ali os dois papéis, ser uma pessoa que está a ouvir os problemas da vida de alguém e ser por outro lado o político que tem de falar do que defende, do que acha que deve ser feito?
— Claro. Apesar de que ali naquele contexto senti-me relativamente impotente a ouvir o que o Daniel me dizia, pelo facto de não estar a ter nenhum tipo de resposta social, ao ouvir a sua história de vida e o que o levou a estar neste momento de enorme carência. Mas ouvi também o pequeno raio de esperança ali contido, de alguém que apesar de tudo mantinha hábitos de vida regulares, não estava a cair numa espiral de desespero e no fundo queria era ter alguma oportunidade para voltar a recuperar a sua vida. E de facto o Estado tem de estar é para estas coisas. Se não, para que é que existe um Estado?
— Diz que isto do liberalismo ainda confunde muita gente por ser novo em Portugal. Defender apoios como o Rendimento Social de Inserção (RSI) e outros apoios sociais é perfeitamente conciliável com o liberalismo, é isso?

— É totalmente conciliável. O liberalismo concebe os indivíduos como pessoas livres e capazes mas para isso as pessoas têm de estar em condições de exercer essa liberdade. O liberalismo preconiza as pessoas terem acesso à saúde, à educação. A educação é um dos elementos essenciais do conceito de elevador social, que é uma das coisas que o liberalismo mais defende, a capacidade das pessoas com o seu mérito vencerem na vida. Para isso têm de estar capacitadas em termos de educação, têm de estar com saúde e têm de ter o mínimo de subsistência para não estarem escravas das suas necessidades mais básicas e não terem de pensar se vão ter um teto sobre o qual dormir, se vão ter comida na mesa no dia a seguir.

O rendimento social de inserção, dizia ainda Tiago Mayan Gonçalves, tem a sua explicação logo no nome: o objetivo essencial é “garantir uma inserção à pessoa, dar-lhe uma oportunidade de, se caiu, poder levantar-se e depois prosseguir com a sua vida”. O que o candidato tinha ouvido “do Daniel” era que “só queria poder trabalhar outra vez e começar a reerguer a sua vida mas não o pode fazer porque não tem uma morada”. E aqui, Mayan voltava a apontar agulhas à “burocracia do Estado”.

Não é o tema mais fácil para um liberal defender, porém. Tendo focado a sua campanha na defesa de um “Estado forte e eficaz onde tem de estar” mas que “saia da frente onde não tem de estar metido”, Mayan pertence a um partido que nos Açores fez um acordo com o PSD para reduzir a “subsidiodependência” e que defende a necessidade da fiscalização na concessão destes apoios. O candidato chegou a dizer em entrevista ao Observador que não era fã do termo mas continua a defender que esta redução passa por um crescimento económico — que Mayan acredita que o liberalismo pode fomentar — que diminua o número de carenciados.

Na chamada telefónica, o candidato falaria ainda das críticas deixadas nesse dia a Marcelo Rebelo de Sousa por ter ido visitar um lar onde os familiares dos residentes não podem entrar (as visitas estavam proibidas naquele momento) e antes mesmo de saber o resultado de um teste de diagnóstico à infeção pelo novo coronavírus. “O senhor Presidente da República contesta a fiabilidade de testes, o que causa um enorme dano à confiança das pessoas, e depois anda para aí a circular. Tinha feito um teste, vai a um lar e só sabe o resultado depois de sair do lar”, apontava. No mesmo dia, a campanha publicitava um novo cartaz afixado ao lado de um outdoor de André Ventura que deu muito que falar.

— Foi muito falado hoje o cartaz em que o Tiago aparece…
— Ah, sim.

— Aparece uma fotografia sua e promete ser o Presidente de todos os portugueses, “até dele”. E ele é André Ventura, que diz que quer ser o Presidente dos “portugueses de bem” num outdoor que está ao lado do seu cartaz.
Sim. Dele e de todos.

— Foi do Tiago a ideia de passar esta mensagem, foi a equipa? Como é que surgiu esse cartaz?
Esse cartaz é uma afirmação do que esta candidatura representa. Efetivamente quero representar uma candidatura para todos os portugueses e não tenho de gostar de todas as pessoas, de concordar com todas as pessoas, mas quero representar uma candidatura que seja inclusiva e que conceba qualquer pessoa como indivíduo, com direito a ter opiniões e posicionamentos distintos dos meus. A mensagem que queríamos transmitir era essa. Achámos importante transmitir essa mensagem porque André Ventura representa uma candidatura de divisão, de ódio, de colocar portugueses contra portugueses. O que está demonstrado por aquele cartaz que decidimos complementar com a nossa mensagem.

Tiago Mayan Gonçalves diz que Marcelo Rebelo de Sousa é o seu adversário nesta candidatura, mas é com André Ventura que disputa a maior parte dos eleitores. O eleitorado de um e do outro é bastante diferente, na dimensão (Ventura nas sondagens tem tido mais do triplo) e na proposta política e social, mas há elos em comum: tanto os eleitores de Mayan como os de Ventura opõem-se ao socialismo, não se reveem nos partidos de centro (PS e PSD), querem um rumo novo e diferente para o país e estão agastados com a “velha política”, com os “velhos partidos” e com o trajeto de Portugal nos últimos anos. Uns e outros estão alinhados no que não querem — mais do mesmo — mas não no que querem como alternativa, que é muito diferente.

No dia seguinte, Tiago Mayan Gonçalves tinha o debate conjunto de Antena 1, TSF e Renascença com todos os candidatos  — menos André Ventura, que por motivos de agenda não esteve disponível para comparecer presencialmente e foi-lhe vetada a exceção para participar por videoconferência. E Mayan deixava já duas notas sobre o debate da manhã seguinte: esperava não apanhar tanto frio como no debate televisivo com todos (“como estóico escolho não ter frio, mas há limites para isso e o debate na RTP foi um momento de algum sofrimento térmico”) e tinha um ou outro tema na agenda de que gostava de falar, como a posição dos candidatos sobre a TAP.

A viagem de carro, Marcelo “socialista”, o trio “Ana-Marisa-João” e as saudades dos jantares com amigos

18 de janeiro. Num dia mais folgado de ação de campanha, mas que ainda assim teve uma longa sessão vespertina por Zoom com empresários e associações do Algarve que durou mais de duas horas, Tiago Mayan Gonçalves aproveitava a noite para rumar a Coimbra. Na manhã seguinte, teria uma visita a um hospital em Miranda do Corvo, o hospital Compaixão, que está equipado com três ventiladores, material oncológico, outros aparelhos de equipamento médico e 55 quartos mas que continua sem abrir por falta de acordo entre o Estado e uma fundação. Seria mais um momento para criticar o “preconceito ideológico” do Governo que não quis procurar acordos com “os privados e o setor social” para ter todas as unidades hospitalares (não apenas do SNS) a responder aos “doentes Covid e não-Covid”. Por volta das 22h30, a caminho de Coimbra, atendia o Observador.

— Já estou a ouvir som não sei se é de viagem…
— Já, sim, sim. Olá Gonçalo.
— Olá, Tiago. Está a conduzir em alta voz ou foi no pendura?
Estou no pendura.

Tiago Mayan Gonçalves diz que não tem carro por “opção de vida” mas nesta campanha era muitas vezes ele que conduzia. Na altura da conversa, estava “a passar por Santarém”, à distância de uma hora e dezanove minutos do destino.

— Fica aliviado quando passa o Mondengo?
— Não, mas quando passo o Douro sinto que respiro melhor. Mas reconheço todo o meu país na sua beleza e variedade.
— Perguntava-lhe isto porque na playlist que nos enviou tinha a “Loucos de Lisboa”, não sei se era uma provocação simpática…
— Era uma ligeira provocação. Mas de bom ânimo.
— Hoje de manhã teve o debate com as rádios bastante cedo. Como é que acha que correu?
Acho que correu bem, acho que deu para demonstrar de uma forma absolutamente clara que haviam candidatos socialistas e havia a proposta que eu represento, a minha candidatura, que é manifestamente distinta no que representa. Representa o espaço não socialista e é uma proposta humanista, moderada e liberal.

— Marcelo Rebelo de Sousa é um candidato socialista?
— É. Assumidamente socialista. É o candidato do Largo do Rato e isso ficou claro por exemplo no debate que fez comigo.
— Tinha-me dito ontem à noite que gostava de falar num tema que não tinha ficado claro no debate das televisões, a TAP. Não houve perguntas nesse sentido, aí não deu para ver diferenças.
— Não. Aquilo parecia uma assembleia geral de acionistas da TAP mas eu era o único contrariado naquele contexto. Faltou foi um acionista, André Ventura. Mas de resto nesse contexto eu estava a mais, não é?
— Acha que os outros candidatos querem ser acionistas da TAP?
— Acho, acho. O problema é que querem ser com o meu dinheiro, com o seu e com o de milhões de portugueses.
— Nesse debate, qual foi o candidato que o incomodou mais, que o irritou mais?
— O que eu assisti foi a uma fusão entre Ana [Gomes], Marisa [Matias] e João [Ferreira]. Essa fusão, essa mescla realmente representa coisas que do meu ponto de vista chegam a ser irritantes.

A sessão por Zoom durante a tarde tinha sido longa: quase duas horas e meia. Mas Tiago Mayan Gonçalves garantia que não fora demasiado longa e que não fora um sacrifício: dizia até que em geral o problema era haver pouco tempo para ouvir estas pessoas, acusava o Governo de António Costa e o Presidente Marcelo de não se preocuparem em gastar duas horas e meia para ouvir quando até deviam “despender mais”.

— São 22h33 neste momento. Hoje não teve nenhum jantar comício nesta viagem de quatro rodas, não?
— Não, ainda nem jantei.
— Vai tentar o quê, uma estação de serviço, no hotel?
— Numa estação de serviço, provavelmente.

Na noite anterior, André Ventura tinha organizado um jantar-comício em Braga com cerca de 170 pessoas. Desde o início da campanha que Tiago Mayan Gonçalves vincava que faria uma campanha sem “grandes ajuntamentos, grandes aglomerados” e sem fazer “o que o comum cidadão não pode”. E o comum cidadão pode trabalhar — como ele o estava a fazer — mas não “organizar grandes jantares, grandes eventos, grandes aglomerados”.

Também na noite anterior o humorista Ricardo Araújo Pereira tinha feito uma sátira no seu programa a um tique de Tiago Mayan Gonçalves, o de ocasionalmente olhar para o lado e não de frente para as câmaras. Mayan, contudo, dizia ainda “não saber o que se passou”, só “ouvi dizer” mas prometia “tentar ver”. Garantia ter fair-play para lidar com o humor e assegurava ser “a pessoa mais crítica” de si mesmo. Em casa, tem um livro de Ricardo Araújo Pereira que lhe foi “oferecido” — e “uma oferta não se recusa”.

— Vai ter uma visita na próxima manhã a um hospital em Coimbra que nunca abriu. Vai insistir nesta questão da oferta de saúde em Portugal, de usar toda a capacidade instalada? Tem falado muito disso.
— É evidente. É lamentável que ao dia de hoje não tenhamos toda a oferta disponível a ser utilizada. Vamos ver um exemplo destes destes, de um hospital perfeitamente equipado mas que está há um ano sem abrir. É de facto lamentável. Vou chamar a atenção para esse problema.
— Não é cansativo estar desde o primeiro dia da campanha a falar disto? Continua a ser um tema na campanha, permanentemente.
— É cansativo mas alguém tem de falar disto até que estejamos a usar toda a capacidade instalada de saúde em Portugal. Enquanto não o estivermos a fazer, vou continuar a falar disso.

— Vai passar depois vários dias no Porto. O que é que tem saudades de fazer no Porto que não consiga fazer neste período de campanha eleitoral? Além de correr, disso falámos ontem.
— Correr acho que ainda está nas exceções, vamos ver… Mas tanta coisa: estar com os meus amigos, jantar, coisas que já não podiam ser feitas antes da campanha. Vamos ver quando poderão.

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