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As origens
A frase é tão longínqua quanto a história das eleições presidenciais. Sim, foi Mário Soares quem a popularizou, mas vem de Ramalho Eanes a expressão mais usada da história dos chefes de Estado: “Presidente de todos os portugueses”. E só faz sentido quando olhamos para o contexto da altura.
Estávamos a sair do PREC, em plena Constituinte, quando o 2.º Pacto MFA/Partidos dita que Portugal vai eleger diretamente o seu Presidente da República. Eanes, conta a história da própria Presidência, torna-se pouco depois, “por razões que noutras circunstâncias seriam obstáculos – o seu estatuto de militar e de independente, a sua inexperiência política – o candidato presidencial mais forte”. Ganha o apoio dos militares mais moderados, também do PS, PSD e CDS. E apresenta-se assim na campanha:
A vitória nas primeiras eleições foi clara – e pôs um ponto final definitivo no PREC. A mensagem dos cartazes, por seu lado, tenta amenizar as divisões políticas no país (que Eanes viu bem à sua frente, apanhado por confrontos a tiro em Évora durante a campanha).
Mas não durou muito, o slogan. Como chefe de Estado, Ramalho Eanes nunca se coibiu de criticar os Governos, os partidos e os seus líderes, agitando o Parlamento. Viu o primeiro Executivo cair, demitiu o segundo, formou três outros ele próprio, a partir de Belém – dois dos quais chumbados no Parlamento, um nomeado para fazer a transição até às legislativas seguintes. Em 1980, Eanes já não era o seu slogan: o PPD recusou-lhe o apoio, o PS só o faz a custo, depois de negociação de condições e com fortíssimas divisões internas, que levaram até à autosuspensão de Soares como líder do partido. Resultado? Eanes voltou a vencer, mas não tardou em ver os seus poderes reduzidos numa revisão constitucional.
O slogan, porém, recuscitaria cinco anos mais tarde, na Praça Marquês de Saldanha, em Lisboa. Foi em 1986, na noite da segunda volta das eleições mais disputadas de sempre, disputadas por Mário Soares e Freitas do Amaral. Soares tinha vencido por uma unha negra e subiu ao balcão da sede de candidatura, para falar aos seus apoiantes. Era uma multidão em júbilo, depois de uma campanha que partiu como nunca a esquerda e a direita.
“A frase estava preparada há muito”, recorda Carlos Gaspar, o homem que esteve com Eanes, estava com Mário Soares e estaria ainda com Jorge Sampaio em Belém. “Tinha como objetivo esconder uma divisão interna, entre pessoas como o eng. Álvaro Barreto, que tinham incentivado um discurso de esquerda na campanha, e outros – como eu e o prof. Joaquim Aguiar -, que pressionavam um mais moderado. Para desvalorizar essa divisão, mas também para dar um sinal ao Governo da altura [o primeiro de Cavaco Silva, minoritário] de que não estaria contra ele”, Soares regressa à frase – que lhe ficou mais colada à pele do que à de Eanes: “Serei um Presidente de todos os portugueses”.
Na verdade, acrescenta Carlos Gaspar, a frase tinha um pressuposto. “Era um mote para dizer ao PSD que o combate seria contra o PRD”, o partido que Eanes criou, a partir do Palácio de Belém, para lançar nas legislativas de 1985. Donde se conclui que Eanes foi ainda menos de todos os portugueses – e que Soares tinha uns portugueses por quem não tinha grande simpatia.
Um passaporte ou norma quase constitucional?
Soares tomaria posse em março de 1986. “E fez uma coisa única, que foi dar uma rampa à ascendência de Cavaco Silva até à sua primeira maioria absoluta”, regista Maria João Avillez, a jornalista (e cronista do Observador) que registou em três volumes de entrevista as memórias do fundador socialista. Soares loved Cavaco? Claro que não. “Logo em 1987, Mário Soares acabaria por ter um papel central em impedir a aliança que se formava entre PS e PRD para chegar ao Governo”, sem eleições. “O Presidente Soares gostava muito menos de Eanes do que Cavaco”, acrescenta Maria João Avillez.
Nessa altura, “Vítor Constâncio [líder do PS] era rival, Cavaco Silva era adversário, Eanes era o inimigo”, acrescenta Carlos Gaspar.
A partir daí, a frase “Presidente de todos os portugueses” virou “uma fórmula”, diz ainda Carlos Gaspar. O resto do primeiro mandato de Soares foi pacífico. E isso permitiu que a frase fosse sempre repetida, Presidente atrás de Presidente, candidato atrás de candidato. “É como um artigo da Constituição que não está escrito”, diz Gaspar. “E que foi obrigatório repetir” em cada campanha, a cada discurso. “É um passaporte – ninguém seria eleito se se apresentasse como Presidente de metade dos portugueses”, acrescenta Maria João Avillez.
Ficou assim marcada a imagem de que o Presidente “não seria uma força de facção, nem de partidos, representando toda a nação portuguesa”, explica Carlos Blanco de Morais (que passou por Belém com Cavaco Silva). Ao ponto de quem se apresentasse na corrida a Belém entregar o cartão partidário, procurando mostrar uma reforçada independência – um poder acima do dos partidos de que faziam parte. E é aqui que chegamos ao ponto de partida: a fórmula, a frase, significam que os ex-Presidentes foram meros moderadores? É isso que é um Presidente?
Dois presidentes: o monárquico e o ‘à Francesa’
“Há duas leituras sobre a Presidência da República”, explica Rui Ramos, historiador (e a administrador do Observador). “Uma é a do PR que substitui o Rei constitucional, lido à luz de um quarto poder – um poder sobretudo moderador. É a ideia de um Presidente que preside, não governa, num regime que é sobretudo parlamentarista”. A segunda é diferente: “É a leitura, que virá da 5ª República francesa, de um PR eleito por sufrágio universal que tem efetivos poderes e que os exerce, mais ou menos, conforme o seu arbítrio”. Começando pelo poder de dissolução da Assembleia da República e de demissão do Governo.
“Há autores que defendem que essa foi a ideia da Constituinte, ressalvada na revisão Constitucional de 1982. Que se estabeleceu um eixo entre o Presidente e o primeiro-ministro, em que uma vez prevalece um, outra vez prevalece o outro. É a ideia de um sistema mais flexível”, onde o Presidente não é neutro, nem árbitro – é protagonista.
Voltamos à pergunta: o que é isso de ser “Presidente de todos os portugueses”?
“A frase remete para a ideia de um moderador, um árbitro”, mais próxima da primeira leitura sobre o papel do chefe de Estado, anota Rui Ramos. Mas terá sido assim nestes 40 anos?
Soares, Sampaio e Cavaco: moderadores?
De Eanes já falámos, de Mário Soares falta anotar o segundo mandato. Já vimos que foi protagonista (até contra o seu partido) até à reeleição, em 1991. Depois disso, “em 1993, 1994 e 1995, interferiu com o Governo e com a oposição”.
“Quem não se lembra do Congresso Portugal que futuro”, pergunta por sua vez Maria João Avillez, indo buscar aos livros os colóquios de Soares muito críticos da segunda maioria de Cavaco Silva – mas que deixou em maus lençóis António Guterres, então líder da oposição? “Soares era o líder natural da oposição”, anota um seu ex-colaborador em Belém, que preferiu o anonimato (numa tese corroborada pela sua ex-assessora, Estrela Serrano, num livro publicado anos mais tarde).
Mas não foram fáceis para Cavaco, aqueles anos dos vetos políticos, das presidências abertas na Grande Lisboa, mostrando o Portugal pobre que o cavaquismo preferia não ver em plena crise económica. De tal forma que Cavaco respondeu: “As forças de bloqueio ao Governo têm um rosto […]: todos aqueles sectores ou políticos que, frontal ou encapotadamente, querem impedir a legislação e querem bloquear a modernização do país”.
“A ideia de Soares como moderador é contranatura”, anota Carlos Gaspar. “Acabou a proteger o seu campo político”, concorda Maria João Avillez.
O caso de Jorge Sampaio é mais difícil – pelo menos de obter consensos. Em dez anos na Presidência, Sampaio encontrou (ao contrário de Soares) governos de duas cores partidárias: o de Guterres e, depois, o de Barroso – e de Santana Lopes.
“A ideia de um Presidente com uma visão moderada da função é mais resultado do que fez Jorge Sampaio, talvez tenha sido quem mais se aproximou disso”, admite Carlos Gaspar. Um ex-colaborador de Sampaio em Belém concorda – com nuances: “Muito em confluência no primeiro mandato, embora mais escrutinador no segundo. O tipo de discursos, mais crípticos e menos afrontativos, deram a imagem de alguém moderado”.
Rui Ramos não concorda. “Jorge Sampaio começa em 1995 com a ideia de um PR parlamentarista, que ia salvarguardar-se, limitando-se a moderar. Mas mesmo na relação com António Guterres tem momentos em que foi para além disso – forçando a demissão de Armando Vara, por exemplo. E, depois, tem duas decisões centrais: o momento em que decide dar posse a Santana Lopes (levando o líder do PS a demitir-se, falando de uma decisão “arbitrária”); e quando dissolve a Assembleia da República meses depois, obrigando à demissão do Governo”.
Ramos anota que, esta última decisão mostra uma interpretação “quase gaulista dos poderes do Presidente” – muito para além de um moderador, ou de um equidistante “Presidente de todos os portugueses”. Porque foi De Gaulle que, em França, se demitiu da Presidência depois de perder um referendo. “No prefácio de um livro, Jorge Sampaio explicou que a sua própria Presidência esteve em causa nas legislativas [após a demissão de Santana]: se o PSD tivesse ganho, ter-se-ia demitido”.
Pelo meio tinha ainda ficado uma polémica com Durão Barroso. Lembra-se da frase “há mais vida para além do défice”? Essa, a meio de um processo de ajustamento orçamental (o primeiro de muitos), que deixou Barroso à beira de um ataque de nervos – e que Sampaio diz que não disse exatamente assim – antes desta forma: “Há mais vida para além do orçamento”.
E, por fim, Cavaco Silva. Depois das críticas a Sócrates e do tempo da troika, depois da imprevisível solução política depois das últimas legislativas, será fácil lembrar as muitas críticas de esquerda ao Presidente de “facção” (como antes dizia o PSD de Soares, p.e.). Mas muitos lembrarão ainda os primeiros anos e a primeira entrevista, quando Cavaco elogiava as “reformas estruturais” de Sócrates. Moderador? De facção? Será já possível qualificar a última presidência?
Maria João Avillez acredita que houve dois momentos em que o Governo de Passos “teve calafrios” com declarações do ainda chefe de Estado. “Quando falou nas suas pensões – uma declaração que só pode ter implícita uma crítica às políticas do então Governo; e quando falou numa espiral recessiva”. A esquerda terá para a troca: por exemplo, a frase com que tomou posse para o segundo mandato, contra Sócrates e antes do resgate (“os indicadores conhecidos são claros. Portugal vive uma situação de emergência económica e financeira, que é já, também, uma situação de emergência social”); e outra na posse de António Costa, há dois meses (“No momento histórico que atravessamos, é uma ilusão pensar que um país como Portugal pode prescindir da confiança dos mercados financeiros e dos investidores externos e, bem assim, do apoio de instituições internacionais”).
Numa coisa todos os ouvidos pelo Observador assentem: Cavaco nunca foi um Presidente em sintonia com todo o país. Mas o mesmo pode ser dito de forma diferente: “Um Presidente tem um papel importante pelo que faz e pelo que não faz. Quando muitos pediam que demitisse o Governo de Sócrates – e não o fez; quando outros pediam que demitisse o Governo de Passos – e não o fez. Nos dois casos, Cavaco Silva também influenciou os acontecimentos assim”, defende Rui Ramos.
Mas também por ação – e nem por isso beneficiando a sua área política: “Ao propor um acordo entre PSD, PS e CDS, na crise política de 2013, que teria como resultado um governo do PS logo em 2014, Cavaco Silva teve um ato de extrema importância para todos, mesmo não tendo conseguido o acordo. Um Rei nunca chegaria tão longe”, afirma o historiador, para anotar que mesmo quando procurava fazer pontes e consensos, Cavaco assumiu um papel presidencial forte e nada consensual – porque o acordo “não interessou, verdadeiramente, a nenhum dos partidos”.
E concluindo…
A poucas horas de conhecermos o resultado das presidenciais, depois de uma campanha em que os principais candidatos procuraram posicionar-se como “moderadores”, como “equidistantes”, vale a pena reter as conclusões de quem assistiu à história dos Presidentes.
“Nenhum foi o ‘Presidente de todos os portugueses'”, diz Maria João Avillez. “Pode dizer-se que é uma frase feita, mas um Presidente nunca deixa de estar ligado ao seu posicionamento ideológico”, anota Blanco de Morais. Mas também é possível concluir, como Rui Ramos, que nunca aconteceu o inverso: um líder partidário candidatar-se a PR e dizer que vai dissolver a Assembleia, pedindo aos portugueses um novo Governo da sua área política.
“Quando falamos de um Presidente, estamos sempre numa zona cinzenta de possibilidades. Na verdade, desde Soares que os presidentes escapam às direções partidárias. Soares foi sozinho, Sampaio apresentou-se de surpresa, Cavaco nunca pediu autorização.
Parte da força política deles vem de não sabermos o que vai fazer a seguir, de ficarmos à espera do próximo discurso. Falamos muito da bomba atómica – e a bomba do Presidente não é só o poder de dissolução. Esse poder influencia só por existir. Toda a Presidência é atómica. Nem precisa de agir. Basta estar ali.”
Uma boa razão para votar?
Ilustração: Milton Cappelletti