“Não está nada previsto”. É assim que a direção nacional do PS reage, oficialmente, ao anúncio da candidatura da ex-eurodeputada socialista Ana Gomes, feito na edição desta terça-feira do jornal Público. Nem oficial nem oficiosamente. Além de não estarem previstos comentários oficiais no Largo do Rato, também não se avistaram quaisquer comentários oficiosos: silêncio absoluto nas hostes socialistas esta terça-feira. Dirigentes, deputados, históricos socialistas mais ou menos alinhados, ou militantes de base, (quase) todos se reservaram ao silêncio, na expectativa de esperar para ver quem dá o primeiro passo. Pedro Nuno Santos podia muito bem comandar este pelotão, mas nem isso. Falando aos jornalistas em Mondim de Basto, onde estava para inaugurar uma estrada, o ministro das Infraestruturas que jurou a pés juntos que não votaria em Marcelo Rebelo de Sousa nem que o PS abdicasse de ter um candidato próprio, remeteu-se ao silêncio: “Não vou falar sobre presidenciais, não estão no âmbito das minhas competências enquanto ministro.”
É esta a ordem que vem de cima e, até ver, Pedro Nuno desta vez está apostado em cumprir. “Os membros do Governo devem ter em relação às presidenciais um particular dever de reserva, tendo em conta aquilo que é a relação que o Governo deve manter com o próximo Presidente, com quem terá de conviver muito tempo”, disse o primeiro-ministro António Costa na última entrevista que deu ao semanário Expresso, depois de ter pedido “recato” sobre o tema, ao mesmo tempo que voltava a admitir que era provável — e desejável — que Marcelo Rebelo de Sousa se recandidatasse. “Havia um problema grave no conjunto do país” se isso não acontecesse, admitiu.
Foi, na verdade, António Costa quem, em maio, lançou a recandidatura de Marcelo Rebelo de Sousa a Belém, num gesto político que deixou o país político — e o PS em particular — em alvoroço, e o próprio Marcelo Rebelo de Sousa com cara de poucos amigos. Foi a 13 de maio, quando o Parlamento discutia não só a pandemia da Covid-19 como as transferências do Estado ao Novo Banco, com Mário Centeno de baixo de fogo, que António Costa aproveitou a ocasião da visita à fábrica da Autoeuropa, em Palmela, lado a lado com o Presidente da República, para dar uma cambalhota e lhe estender o tapete. Costa atentou na coincidência que era estarem os dois ali no último ano do mandato do Presidente, sendo que já ali tinham estado os dois no primeiro ano do mandato do Presidente, em 2016. Tudo para dizer que o que faria sentido era voltarem a estar ali os dois no primeiro ano do segundo mandato do Presidente da República… em 2021. Por essa altura, os olhos de Marcelo (por detrás da máscara) empalideceram, mas se Costa o tinha convidado para dançar, Marcelo dançou: “Eu cá estarei, cá estaremos todos — com o espírito de equipa que se formou e que nada vai quebrar (…) O que interessa é a vontade de trabalharmos em conjunto”.
Estavam desfeitos dois tabus de uma cajadada só: que Marcelo Rebelo de Sousa se recandidataria a Belém (embora só o queira anunciar em novembro), e que António Costa não teria problemas em apoiá-lo, nem que fosse através do não-apoio (que é o que mais convém a Marcelo). O problema é que, com a mesma rapidez com que Costa lançou a bomba, Costa apanhou os cacos e arrumou a casa. Uma semana depois, o PS reuniu a Comissão Política Nacional e Costa deu ordens para o partido se concentrar no “essencial”, isto é, na resposta à crise pandémica, e não nas presidenciais de janeiro.
Costa chuta presidenciais para fim do ano, mas já há quem defenda apoios
Não apoiar ninguém é, já por si, uma forma de apoio, e não é uma novidade para o PS. Nem sequer para o PS de António Costa. Foi o que aconteceu nas últimas presidenciais, de 2016, em que o PS tinha duas candidaturas mais ou menos orgânicas e não apoiou explicitamente nenhuma: por um lado, Maria de Belém Roseira, ex-presidente do partido que contava com o apoio de alguns históricos socialistas, e, por outro, Sampaio da Nóvoa, uma figura da sociedade civil que nos últimos anos se tinha juntado ao PS e que contava com o apoio inorgânico — e não declarado — da máquina socialista. Mas em 2005 aconteceu o mesmo. Apesar de Sócrates e a máquina socialista apoiarem Soares, o PS tinha duas candidaturas (a de Mário Soares e a de Manuel Alegre) e, por isso, oficialmente, não anunciou o apoio a nenhuma.
A estratégia é essa e continua a ser, com a diferença de que desta vez tudo indica que haverá apenas uma candidatura de dentro do PS (até ver Ana Gomes é a única) e mesmo assim o PS deverá optar por não declarar apoio para deixar caminho livre a Marcelo (que para todos os efeitos é ex-líder do PSD). Ainda na última semana, no discurso que fez na conferência nacional promovida pelo PS em Coimbra para marcar a rentrée socialista, António Costa começou o discurso logo a dizer que o ano que aí vem será marcado por “três eleições, duas das quais decisivas para o PS”: as regionais dos Açores e as autárquicas. Antes das autárquicas, contudo, há presidenciais, mas Costa deixou claro que essas não serão decisivas, nem tão pouco importantes, para o PS. Ou seja, mais um sinal claro de que o PS não terá um candidato próprio e pouco ou nada se incomodará se o atual Presidente da República se mantiver no cargo.
Isto era assim antes da ex-eurodeputada socialista dar conta da sua decisão de avançar. Muda alguma coisa? Nada. Para já, o PS prefere fazer-se de morto.
O PS apoia quem? Para já, só mesmo Marcelo…
Antes de Ana Gomes ter desfeito o tabu e anunciado a candidatura — o anúncio formal está marcado para esta quinta-feira — já se ouviam vozes da primeira linha do PS a dizer que não hesitariam a votar em Marcelo Rebelo de Sousa se as eleições fossem hoje. O caso mais evidente é o de Eduardo Ferro Rodrigues que o disse com todas as letras, em entrevista à TSF, justificando com uma sondagem que mostrava que 70% dos socialistas apoiava o atual Presidente da República. Logo, para quê contrariar a vontade das pessoas e avançar com um candidato próprio?
Depois, seguiu-se Fernando Medina, no programa de Ricardo Araújo Pereira, que elogiou Marcelo Rebelo de Sousa e não hesitou em dizer que Marcelo “seria um candidato a quem daria o [seu] apoio”, mas deixava essa hipótese no condicional. Porque faltava (na altura como agora) um dado importante: saber qual vai ser a posição e a decisão do PS, que chutou o seu congresso para depois das presidenciais mas que, antes disso, até ao final do ano, vai reunir a comissão nacional para decidir sobre este tema.
Para fechar o trio falta Ana Catarina Mendes, que, em julho, admitiu ao Observador, que nunca diria “nunca” a Marcelo. Questionada sobre se preferiria votar num candidato do PCP ou do BE se o PS não tivesse um candidato próprio, em vez de votar no candidato da direita, a líder parlamentar do PS foi perentória: “Não”. E há ainda o ex-líder parlamentar, e atual presidente do partido, Carlos César que, embora nunca se tenha atravessado por Marcelo, é conhecida a sua animosidade com Ana Gomes, sobretudo depois de uma polémica troca de galhardetes entre os dois a propósito do Benfica, que acabou com a ex-eurodeputada a apelidar César de “apparatchick“.
A divergência sobre o que deve o PS fazer neste campeonato ficou evidente, de resto, na reunião da comissão política nacional que se realizou pouco mais de uma semana depois do momento “Autoeuropa”. Foi aí que, apesar de Costa ter dito que o tema era “acessório”, tendo em conta a pandemia, houve comentários à porta fechada para todos os gostos. Por um lado, Daniel Adrião, o crítico de sempre de António Costa, centrou as suas críticas em Marcelo Rebelo de Sousa e defendeu que o PS “não se podia demitir” de ter um candidato da área socialista sob pena de “haver mais abstenção” (entre os socialistas que não se reveem em Marcelo), e, consequentemente, “isso favorecer os extremos, por peso relativo”. Mas não só: defendeu mesmo que o PS devia apoiar a candidatura de Ana Gomes (formal ou informalmente), por ser “desempoeirada”, “transparente” e lutar pela “transparência do sistema”. Mas o apoio a Ana Gomes, nessa reunião interna do partido, ficou-se por aí.
José Abrão, da FESAP, foi um dos únicos que, em sentido contrário, sublinhou nessa mesma reunião que era “desejável” que Marcelo se recandidatasse, dando, portanto, a entender que apoiaria o candidato Marcelo. E Porfírio Silva, deputado e dirigente socialista, deu voz ao meio termo: disse que o PS tinha de ter um candidato próprio, uma vez que se o PS e o PSD se unissem em torno do mesmo candidato, isso abria espaço aos extremos (leia-se, André Ventura). Porfírio Silva, contudo, deixou claro nessa altura que o candidato do PS não devia ser Ana Gomes, porque “não se combate o populismo de direita com populismo de esquerda”. Quem devia ser, então? Não disse.
Então, quem apoia Ana Gomes?
Para já, só os de sempre. Francisco Assis, que atualmente ocupa o cargo de presidente do Conselho Económico e Social, esteve na base da sua candidatura quando, em janeiro deste ano, plantou a semente na opinião pública: “Acho que não há personalidade em melhores condições do que Ana Gomes para ser candidata à Presidência da República. E também acho que era bom que a esquerda democrática tivesse um candidato. Se ela se candidatar eu seguramente vou apoiá-la”, disse aos microfones da rádio Renascença. Foi com ele que, de resto, Ana Gomes almoçou na semana passada para acertar agulhas sobre os passos a dar nesta reta final de contagem de cabeças antes do avanço oficial.
Também Manuel Alegre, que em abril dizia em entrevista ao Observador ser “muito amigo” dela, deverá estar ao lado da candidata, embora esta terça-feira tenha optado por se remeter igualmente ao silêncio. É a uma outra esquerda mais à esquerda que Ana Gomes reúne os fãs. Primeiro foi Paulo Pedroso, que recentemente se desvinculou do PS, que usou as redes sociais para assumir que Ana Gomes será a sua candidata: “Temos candidata”.
Temos candidata. https://t.co/ZEOy92vCWa
— Paulo Pedroso (@paulopedroso) September 7, 2020
Depois, em declarações à Rádio Observador, foi Henrique Neto, ex-candidato presidencial que também já não tem ligações ao PS, que disse que a candidatura de Ana Gomes era “um ar fresco que surge na política portuguesa para quem não se revê no atual Presidente nem em André Ventura”. “É uma aberração que partido de Mário Soares apoie o atual Presidente sem discussão democrática”, disse ainda.
De resto, é preciso ir mais para a esquerda, saltando o BE e o PCP (que terão candidatos próprios) para encontrar apoiantes declarados de Ana Gomes. No Livre, encontramos Rui Tavares e Ricardo Sá Fernandes a assumirem-se como presumíveis apoiantes da candidata presidencial. À Rádio Observador, Rui Tavares admitiu a possibilidade de Ana Gomes disputar uma segunda volta nas eleições presidenciais e elogiou a candidatura da ex-eurodeputada por trazer “qualidade ao debate” durante a campanha. E o advogado e dirigente do Livre Ricardo Sá Fernandes fez eco da mesma ideia: “Ana Gomes pode ganhar estas eleições”, disse, afirmando que Marcelo e Ana Gomes dão garantias de que haverá “um debate de qualidade”, e de que Ventura será remetido a um resultado “marginal”.
No PS, de resto, o Observador não só não encontrou ninguém esta terça-feira que quisesse sair em defesa de Ana Gomes, como se encontrou o exato oposto. Carlos Pereira, deputado eleito pelo círculo eleitoral da Madeira e vice-presidente da bancada socialista, não teve pudor em usar as redes sociais para assumir que “não votará” em Ana Gomes.
https://www.facebook.com/carlospereira.joao/posts/3431013330275276
“Não sei o que fará o meu partido mas não apoiarei Ana Gomes. Não votarei numa candidata que está sempre do lado fácil, simplificando os argumentos para amplificar os ‘seus chavões’, ignorando deliberadamente a complexidade da vida real. Não votarei em alguém que faz do julgamento público arbitrário o seu cartão de visita . Não votarei numa pessoa que atrai votos manifestando superioridade moral a todo o custo, por vezes sem fundamento”, escreveu no Facebook. Ao Observador, o deputado não quis alongar-se mais, mas reiterou a ideia. “De acordo com o que são os meus critérios, Ana Gomes não traduz o perfil que deve ter um candidato Presidencial”, disse.
É à esquerda do PS que pode estar a chave de Ana Gomes, mas aquele que poderia dirigir essas tropas, está, para já, com o fato de ministro vestido e, como tal, deve obediência ao primeiro-ministro. “Não vou falar sobre presidenciais, não estão no âmbito das minhas competências enquanto ministro. Sou cidadão português e dirigente do PS, e nos locais certos terei oportunidade para dizer o que tiver de dizer sobre essa matéria”, limitou-se a dizer Pedro Nuno Santos esta terça-feira quando questionado pelos jornalistas. O momento certo será algures no final do ano, numa reunião — a marcar — da comissão nacional socialista. Mas uma coisa é certa, e ficou escrito na pedra: em Marcelo é que Pedro Nuno não vota. Prefere antes votar num candidato do PCP ou do BE se o PS não tiver um candidato próprio, como disse em entrevista à RTP. O PS pode não ter candidato, mas Ana Gomes é do PS. Vai dar ao mesmo?