Alguém com peso político, sem ideologias e com capacidade de negociação. É assim que os representantes dos profissionais de saúde descrevem o perfil que esperam do próximo ministro da Saúde: uma pessoa que conheça o terreno — e que esse terreno não seja apenas a gestão pública ou o setor privado, mas o sistema de saúde como um todo.
Não é que bastonários e responsáveis de sindicatos tenham sido totalmente apanhados de surpresa com a demissão de Marta Temido: estavam convictos de que iria acontecer, só não sabiam quando. O primeiro-ministro António Costa admitiu que a morte de mais uma grávida aos cuidados de um hospital terá sido a gota de água para a demissão anunciada na madrugada desta terça-feira. Mas já tinha havido pedidos anteriores da ministra: o primeiro-ministro é que decidiu aceitar a demissão “desta vez”. Só não disse quais foram as outras vezes.
Decisão de Marta Temido não teve só um motivo
Emanuel Boieirio, presidente do Sindicato Nacional dos Enfermeiros, encontra outros dois motivos para a deterioração de Temido na liderança da pasta da saúde: a constituição da direção executiva do SNS e as polémicas em torno das parcerias público-privadas. “Pode ter havido dificuldades na operacionalização do novo estatuto do SNS”, analisou ao Observador: “Se tiver havido um braço de ferro com o primeiro-ministro, só um dos dois poderia vencer”.
Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, também acredita que a demissão de Marta Temido tem “raízes mais profundas”: “A ministra estava desgastada muito antes da morte desta grávida, porque António Costa não queria substitui-la”. E o bastonário da Ordem dos Médicos completa que todas as crises que Marta Temido carregou entre julho e agosto — desde a falta de médicos para preencher as escalas nos hospitais às mortes em ginecologia e obstetrícia — culminaram na decisão anunciada esta noite.
Grávida morre após transferência de hospital por falta de vaga
Miguel Guimarães não arrisca sugerir nomes para o cargo: essa é a função de António Costa, embora entenda que “a estrutura do Partido Socialista tem um conjunto de pessoas com grande qualidade para o cargo” e que, em última análise, num apontar de culpas sobre as lacunas na gestão de Marta Temido, os dedos devem virar-se para Costa.
Bastonário dos médicos gostaria de alguém do terreno que seja bom gestor de pessoas
Uma coisa é certa para o bastonário da Ordem dos Médicos: se tudo for como o primeiro-ministro antecipou na conferência de imprensa desta tarde — o líder do Executivo disse que não haveria alterações políticas, só possivelmente de “personalidade, de estilo, de energia” — isso só vai “empatar”. “Daqui a um ano teremos ainda mais problemas, daqui a dois ainda mais, até as pessoas terem todas de arranjar outras soluções”, antecipou o médico.
Mas há duas características essenciais para o novo governante, na perspetiva de Miguel Guimarães. Primeiro, tem de ter um conhecimento amplo do terreno, do que é a saúde em Portugal e dos sistemas de saúde na Europa: “É importante perceber como os sistemas podem cooperar uns com os outros. Ou então vermos que ajustamentos podemos fazer, por comparação”.
Depois, o novo ministro da Saúde tem de ser um bom gestor de pessoas e deve mesmo ter formação nessa área — algo que Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos, também valoriza. “São estes profissionais que fazem acontecer a saúde em Portugal, que salvam milhares de vidas todos os dias e que também têm problemas, como burnout, sofrimento ético, agressões no local de trabalho”, recordou Miguel Guimarães. O sucessor de Marta Temido deve, por isso, estar atento à oportunidades de inovação e ser empático. E isso é mais importante do que ter experiência governativa, salienta.
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Essa não é uma opinião unânime. A experiência governativa, preferencialmente aliada a um conhecimento profundo do terreno, é um traço que Emanuel Boieiro gostaria de ver no novo ministro.
Fernando Araújo e Lacerda Sales são nomes que reúnem consenso
Fernando Araújo e Lacerda Sales são opções viáveis por terem estas características — e convencem até quem não põe a experiência governativa como condição: o primeiro é um profissional de saúde — presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário São João — que tem experiência governativa, dos tempos em que foi secretário de Estado Adjunto e da Saúde, no primeiro Governo de António Costa. O segundo é médico ortopedista e braço direito de Marta Temido na atual equipa ministerial, enquanto secretário de Estado adjunto e da saúde.
Mas trazem um problema: “Nunca em democracia houve um ministro que tenha sido um profissional de saúde sem ser médico”, apontou o sindicalista. E “isso não pode acontecer por uma questão de privilégio, não pode ser um fator que venha a contribuir para uma falta de representatividade das outras classes nas políticas da saúde”. Nem mesmo na direção executiva do SNS, que ainda está para ser constituída.
Quem é que Boieiro escolheria mesmo, então? Alguém como Maria de Belém Roseira, que já foi ministra da Saúde e participou nas reformas na Lei de Bases que Marta Temido veio a implementar no início do primeiro mandato. Um perfil como Adalberto Campos Fernandes, que foi presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte e ministro da Saúde, mas que saiu do primeiro Governo de António Costa “em rutura” com o primeiro-ministro. Ou um académico como Pedro Pita Barros, especialista em economia da saúde, com o problema de lhe faltar peso político.
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Bastonária dos enfermeiros defende continuidade no trabalho negocial
Apesar dos atritos que a bastonária da Ordem dos Enfermeiros protagonizou com a ministra demissionária, Ana Rita Cavaco defende, ainda assim, a entrada de um governante “que dê continuidade às negociações, que conheça os dossiers”, “para não parecer que nada do que se fez até agora existe”. Mais: que não tenha preconceitos com as parcerias público-privadas. É que “os setores sociais, privados e o SNS são todos peças do mesmo tabuleiro”: “O ministro não pode escolhê-las. Tem de jogar com todas”.
E é por isto que António Lacerda Sales seria uma boa alternativa à atual ministra da Saúde para a bastonária. Não só está dentro das negociações estabelecidas entre os enfermeiros e o Governo ao longo dos últimos anos, como “é um ótimo negociador e é empático, Marta Temido não tinha nada disso”, considerou. Mas “a questão não é a pessoa em si, é a política que se vai implementar e essa responsabilidade é só de Costa”, remata Ana Rita Cavaco.