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Era o primeiro dia do Eid al-Adha, uma das principais celebrações do Islão. Salwan Momika, iraquiano de 37 anos a viver na Suécia como refugiado desde 2018, chegou à porta de uma mesquita em Estocolmo com um megafone numa mão e uma cópia do Alcorão na outra.
“Estou a avisar o povo sueco dos perigos deste livro”, disse ao pequeno grupo que se juntou à sua volta e que incluía um amigo que filmou todo o momento. Depois, Momika colocou pedaços de fiambre dentro do livro sagrado para os muçulmanos, que também proíbe o consumo de carne de porco. Por fim, pegou fogo àquela cópia do Alcorão.
O refugiado repetiu a ação mais de 20 vezes ao longo dos dois meses seguintes, durante este verão. Por vezes, pisou o livro antes de o queimar. Noutras, cuspiu-lhe em cima. Sempre com autorização da polícia sueca, que deu luz verde às ações de Momika, tratando-as como formas de protesto político legítimas.
O iraquiano é o mais recente protagonista de uma tendência que se tem repetido na Suécia desde o início do ano, tal como na Dinamarca, e que está a ter consequências de peso. Uma embaixada foi invadida, o risco de atentados terroristas subiu, a adesão da Suécia à NATO complicou-se e até a Rússia parece estar envolvida na questão.
Ao mesmo tempo, o governo sueco, que conta com o apoio de um partido de extrema-direita, hesita em copiar a medida adotada pelos dinamarqueses — que querem criminalizar a queima de qualquer livro sagrado para uma religião — e procura soluções alternativas. Mas a situação promete continuar a ser um barril de pólvora: na noite do último domingo, Malmö foi palco de motins. E não é de todo claro o que move homens como Salwan Momika, determinado em repetir a ação de queimar o Alcorão em público uma e outra vez.
Paludan e Momika, dois atores próximos da extrema-direita
Momika não foi, porém, o primeiro.
“Rasmus Paludan, fundador e líder do partido de extrema-direita [dinamarquês] Stram Kurs, começou a sua campanha de queima do Alcorão na Suécia em 2020 e sempre foi muito claro sobre os seus objetivos”, explica ao Observador Simon Sorgenfrei, professor especialista no Islão da Universidade de Södertörn, na Suécia. O político dinamarquês, que também tem nacionalidade sueca, considera o Islão “um inimigo” e defende a deportação de todos os muçulmanos. “O melhor que podia acontecer era não restar um único muçulmano na terra”, afirmou em 2018.
Em janeiro deste ano, Paludan intensificou a sua campanha na Suécia, na sequência das reservas levantadas pela Turquia à adesão do país à NATO. Queimou um Alcorão em frente à embaixada turca em Estocolmo e depois repetiu o gesto na embaixada em Copenhaga. O seu partido está em franco crescimento na Dinamarca e pode mesmo entrar no Parlamento nas próximas eleições.
Pelo meio, tentou repetir o gesto em vários locais da Suécia, o que levou a motins durante o mês de abril. Mais de 100 agentes da polícia e civis foram feridos e mais de 40 pessoas foram detidas.
A situação parecia ter acalmado até que o iraquiano Salwan Momika surgiu em cena, no mês de junho. Descrevendo-se como “um ateu liberal”, o refugiado defendeu a queima do Alcorão como “um gesto filosófico” que se inclui dentro da “liberdade de expressão” vigente na Suécia.
Nas várias entrevistas que deu, assumiu-se como militante dos Democratas Suecos, o partido de extrema-direita com origens neo-nazis que atualmente apoia o governo de centro-direita.
A sua classificação como um simples ator dos grupos mais radicais da Suécia é, no entanto, simplista, avisa o professor Sorgenfrei. “Ele era membro dos Democratas Suecos e diz querer proteger a Suécia do Islão. Nesse sentido, os seus objetivos são semelhantes aos de Paludan e ao discurso da extrema-direita. Mas há também especulação sobre a possibilidade de ele fazer parte de uma campanha estrangeira de desinformação, com o objetivo de desestabilizar a Suécia. É demasiado cedo para termos a certeza.”
O dinamarquês Heini í Skorini, professor de Relações Internacionais e liberdade de expressão, concorda e alerta que o simbolismo de ser um iraquiano a queimar o Alcorão não pode ser ignorado: “Os radicais de extrema-direita são muito explícitos nas suas ideias. Mas creio que é diferente quando temos um refugiado iraquiano, independentemente do seu historial, a queimar o Alcorão como protesto contra o Islão”, diz ao Observador o professor da Universidade das Ilhas Faroé.
“A situação de segurança mais grave desde a II Guerra Mundial.” As ameaças internas e externas
Certo é que as ações de Momika provocaram um enorme abalo no mundo muçulmano e, por arrasto, tiveram graves consequências para a própria Suécia — de tal forma que o primeiro-ministro, Ulf Kristersson, disse em agosto que o país enfrentava “a situação de segurança mais grave desde a II Guerra Mundial”.
Jacob Kaarsbo, analista de segurança do think tank dinamarquês Europa, diz que talvez não seja tão grave, mas que não há dúvidas de que “há uma crise”. “As queimas [do Alcorão] alimentam a narrativa extremista do ‘nós vs. eles’. Grupos como a Al-Qaeda usam-nas para retratar a Dinamarca, a Suécia e o Ocidente como estando em guerra contra todos os muçulmanos”, diz ao Observador. “E dificilmente poderia vir numa pior altura em termos geopolíticos, por causa da guerra na Ucrânia. Para a Suécia, é particularmente complexo porque a Turquia ainda não ratificou a adesão do país à NATO.”
As consequências sentem-se logo a nível interno, junto da comunidade muçulmana local. Depois dos motins da primavera passada, as ações de Momika provocaram nova reação: em agosto, uma mulher foi detida por atirar um pó branco ao iraquiano durante uma das suas ações; e, este domingo, três pessoas foram detidas na sequência de agitação nas ruas de Malmö, após mais um dos protestos do iraquiano.
“Os motins deste fim-de-semana deixam claro que alguns indivíduos são suficientes para provocar muitos danos e fazer cabeçalhos. Infelizmente, acho que vamos ver mais cenas semelhantes se continuarem a queimar o Alcorão”, diz Simon Sorgenfrei. Já Mattias Wahlström, sociólogo da Universidade de Gotenburgo, considera que a reação é a prova de que protestos deste género funcionam para a extrema-direita: “Prova-lhes que esta é uma forma eficaz de criar problemas. Acho que esta nova onda de queimadas é inspirada diretamente pelas ações [do político de extrema-direita] Paludan, mas desta vez estão inseridas no contexto da adesão da Suécia à NATO — o que abriu uma janela de oportunidade para terem mais impacto e receberem muito mais atenção.”
Esse destaque fez com que as notícias das ações de Momika chegassem além-fronteiras e incendiassem o mundo islâmico.
A Organização da Cooperação Islâmica, que reúne 57 Estados de maioria muçulmana, condenou a Suécia e a Dinamarca por autorizarem os protestos “sob o disfarce da liberdade de expressão”. No Iraque — país de origem de Momika —, um protesto marcado à porta da embaixada sueca escalou, com a multidão a tentar invadir o edifício, e o governo de Bagdade a expulsar o embaixador de Estocolmo.
Não foi o único a reagir diplomaticamente. Arábia Saudita, Irão, Marrocos e Jordânia exigiram explicações aos embaixadores suecos nos seus países, com o ayatollah Ali Khamenei a declarar que, se os países apoiassem esta forma de protesto, estariam a fazer o mesmo que “equipar-se para a guerra”. O Paquistão propôs uma votação no Conselho pelos Direitos Humanos da ONU a condenar a queima do Alcorão, que reuniu 28 votos a favor, 12 contra (a maioria de países ocidentais) e sete abstenções.
Já para não falar da reação da Turquia, que à altura ainda se opunha frontalmente à adesão da Suécia à NATO (posição entretanto revertida, mas ainda não confirmada pelo Parlamento do país). “Mais cedo ou mais tarde vamos ensinar aos monumentos ocidentais de húbris que insultar os valores sagrados dos muçulmanos não é liberdade de expressão”, declarou o Presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan.
E as dores de cabeça para os dois governos escandinavos não se ficaram por aqui. Ao longo do verão, ambos os países confirmaram estar perante um maior risco de ameaça terrorista, com a Suécia a aumentar até o nível de alerta para o número quatro (numa escala de 0 a 5). “A Suécia deixou de ser considerada um alvo legítimo de ataques terroristas para passar a ser um alvo prioritário”, descreveram os serviços de segurança do país.
Jacob Kaarsbo destaca em concreto o risco colocado por um grupo em particular: “A Al-Qaeda encorajou os seguidores a atacar a Dinamarca e a Suécia. A organização enfraqueceu ao longo dos últimos anos, mas no Sahel, na Somália e no Afeganistão continua forte.” Segundo os documentos do Pentágono divulgados por Jack Teixeira (atualmente a ser julgado nos EUA), o Estado Islâmico também terá apelado a retaliação pelas queimas do Alcorão nos dois países.
O ministro da Justiça sueco, Gunnar Strömmer, confirmou inclusivamente que várias pessoas foram detidas no país durante a primavera, por suspeitas de estarem a preparar atos terroristas. Segundo a televisão sueca SVT, haverá pelo menos dois casos que teriam como objetivo retaliar pelas queimas do Alcorão.
A ligação a Moscovo — e quem sabe a Teerão
Tudo se complica ainda mais quando se soma o facto de, ainda no mês de julho, o governo sueco ter envolvido outro país na equação: a Rússia. “Atores apoiados pela Rússia estão a amplificar afirmações incorretas como as de que é o Estado sueco quem está por trás da profanação de escrituras sagradas”, declarou o ministro da Defesa Civil, Carl-Oskar Bohlin. Em curso, disse o ministro, estão “campanhas de influência” para tentar prejudicar a Suécia.
Uma ideia que, para o especialista em segurança Kaarsbo, não é descabida se tivermos em conta o historial russo nestas matérias e o facto de ter um interesse concreto. “Pode haver um envolvimento ainda mais profundo”, diz ao Observador. “A Rússia tem um claro interesse em evitar a adesão da Suécia à NATO e irá provavelmente usar todas as ferramentas que tem à sua disposição.”
Estocolmo não clarificou que provas tem dessas campanhas, mas os media suecos já tinham levantado a ponta do véu. Logo em janeiro, depois de Paludan queimar um Alcorão em frente à embaixada turca, noticiaram que, neste caso, a taxa administrativa que é paga para organizar um protesto (cerca de 30 euros) não veio da conta de Paludan, mas sim da do jornalista Chang Frick. Ora, Frick — que tem produzido conteúdos para o partido Democratas Suecos — é também um antigo colaborador da televisão russa RT.
Se as ligações do político dinamarquês Paludan não são claras, as do iraquiano Momika ainda são menos. Apesar de se assumir como ateu, várias investigações jornalísticas comprovaram que o refugiado fez parte de várias milícias no Iraque, incluindo algumas cristãs e outras apoiadas pelo Irão — o que levantou nos media suecos a possibilidade de Momika ser um agente a favor de Teerão.
Por outro lado, Momika tem deixado claro que quer pedir nacionalidade sueca, já que a sua autorização de asilo expira em 2024. E, como apontou o jornal saudita Arab News, ao queimar o Alcorão “ultrapassa a linha vermelha que garante que a sua vida é posta em risco se for forçado a regressar ao Iraque” — o que pode levar à renovação do seu pedido de asilo.
Heini í Skorini considera que é praticamente impossível dizer se a Rússia, o Irão ou até a Turquia — “a quem dá muito jeito estes protestos” — estão por trás dos movimentos de queima do Alcorão, mas considera que não há dúvidas de que podem ser aproveitados por alguns destes atores. “Há muitos interesses internacionais em jogo e é provável que haja uma interferência estrangeira neste debate, mas não sei qual o grau de envolvimento”, confessa o professor da Universidade das Ilhas Faroé.
Certo é que, no meio disto tudo, Momika colocou os Democratas Suecos em xeque ao anunciar que é militante do partido de extrema-direita. “Ele diz que tentou entrar no partido, foi aceite, mas eles não sabiam quem ele era”, explica ao Observador Daniel Poohl, jornalista da revista Expo, especializada em investigar a extrema-direita na Suécia. “Depois ele começou a queimar o Alcorão e a fazer alarido do facto de ser membro dos Democratas Suecos e isso parece ter provocado uma reação dentro do partido, que começou a investigá-lo”.
No início do mês de Setembro, os Democratas Suecos enviaram um comunicado às redações onde anunciavam ter expulso Salwan Momika do partido por não concordarem com as suas ações de protesto — muito embora um dos responsáveis do partido, Richard Jomshof, já ter dito no passado que se devia “queimar outros 100 Alcorões”.
“Acho que eles adotaram esta posição por agora estarem a apoiar o governo”, afirma Poohl, que define a posição do partido como uma espécie de “terceira via”. “Eles defendem o direito a queimar o Alcorão, mas não querem que pareça que incentivam essa estratégia, porque cria tensão política e dificulta a vida ao governo.” O objetivo do partido de extrema-direita, diz o jornalista, é apenas o de sobreviver na coligação de apoio aos Moderados (centro-direita).
As respostas diferentes de Copenhaga e Estocolmo
A presença dos Democratas Suecos no acordo parlamentar governativo pode ser parte da explicação para o facto de a Suécia estar a adotar uma resposta diferente da Dinamarca (cujo governo resulta de um acordo entre centro-esquerda e centro-direita).
Perante toda a situação, o governo de Copenhaga achou que tinha de reagir. “Tudo isto trouxe à tona memórias da história dos cartoons de 2005, quando a Dinamarca enfrentou a sua pior crise externa desde a II Guerra Mundial a propósito de 12 cartoons do profeta Maomé”, lembra Heini í Skorini.
No final de agosto, o executivo dinamarquês anunciou que vai avançar com uma lei que proíba a queima do Alcorão e da Bíblia, podendo resultar numa multa ou pena de prisão até dois anos — o regresso parcial da antiga lei contra a blasfémia, que foi abolida no país há apenas seis anos. “A principal razão pela qual a Dinamarca propôs esta lei foi pela reação internacional e por medo de retaliação, como da Al-Qaeda”, garante o professor Skorini.
A medida foi criticada pela oposição (“Parabéns, Al-Qaeda e companhia”, disse a Aliança Liberal, por exemplo) e alguns, como Skorini, consideram-na “problemática”: “É uma lei que criminaliza o tratamento impróprio de objetos religiosos. E eu consigo imaginar muitas expressões artísticas que podem vir a ser criminalizadas no futuro, não apenas sobre o Alcorão, mas também com a cruz cristã ou com as escrituras judaicas”, afirma, dando o exemplo de um protesto que ocorreu na Dinamarca por parte de uma artista que rasgou o Alcorão em defesa das manifestantes iranianas.
Para o especialista em liberdade de expressão, o governo de Copenhaga está a ir por um caminho perigoso ao ceder à pressão internacional: “Não acho boa ideia que uma democracia secular, liberal e europeia limite a sua liberdade de expressão pelo facto de alguns países no mundo muçulmano não saberem lidar com ela.”
A medida, contudo, conta com algum apoio popular. As sondagens mais recentes mostram que cerca de metade dos dinamarqueses é a favor da medida, com a outra metade dividida entre os que se opõem e os que não têm opinião.
Dados semelhantes aos dos estudos de opinião sobre o mesmo tema conduzidos na Suécia, com o apoio à proposta a aumentar ao longo dos meses, a par e passo da multiplicação dos protestos de queima do Alcorão. “Acho que a maioria das pessoas está a começar a pensar ‘Isto é mesmo preciso?’ Está a criar mais problemas do que o necessário”, aponta Daniel Poohl.
Mas, apesar disso, a reação do governo sueco não foi igual à de Copenhaga, optando por investigar alternativas a uma espécie de lei contra a blasfémia. “As sondagens preliminares mostram que a maioria dos suecos quer proibir a queima do Alcorão, mas não tenho a certeza de que seja isso que o governo quer”, aponta o professor Simon Sorgenfrei. “O governo pediu investigações, numa ação tipicamente sueca de adiar ou enterrar o problema. Vão tentar perceber se é possível travar estas manifestações com as leis já existentes (como a que proíbe o discurso de ódio, por exemplo), antes de discutir qualquer alteração à lei.”
Num país com uma longa tradição de defesa da liberdade de expressão, onde as leis contra a blasfémia foram abolidas na década de 1970, qualquer ação semelhante à dinamarquesa promete provocar debate. “É uma decisão política que pertence aos políticos. Contudo, quero sublinhar que é difícil proibir a queima do Alcorão sem arriscar proibir outras formas de protesto político e críticas a religiões”, lembra o sociólogo Mattias Wahlström.
O professor da Universidade de Gotemburgo sublinha, contudo, que estas manifestações anti-Islão “são levadas a cabo por um pequeno número de indivíduos que seguem uma lógica de provocação para criar reações”. E, por isso, à medida que a atenção mediática se desviar de figuras como Rasmus Paludan e Salwan Momika, o problema irá desvanecer-se, prevê.
“Como qualquer outro problema social, isto compete por atenção na arena mediática e é difícil manter grande destaque ao longo de muito tempo”, diz. O que não significa que as tensões subliminares que as original desapareçam. “Também por isso, prevejo que os atores de extrema-direita que agora queimam o Alcorão vão, mais cedo ou mais tarde, virar-se para outras maneiras de atrair a atenção.”