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JOAO PORFIRIO/OBSERVADOR

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Recuperados. José Pereira acordou do coma e soube que o pai tinha morrido com Covid-19

José Pereira tem 59 anos e é empresário em Braga. Foi um dos primeiros doentes em Portugal internados com Covid-19. Deixou de conseguir andar, mas hoje já faz 20 quilómetros de bicicleta.

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É sábado de manhã. José Pereira cumpre a rotina habitual de fim-de-semana. Equipado a rigor, de calções, ténis, impermeável e capacete na cabeça, prepara a bicicleta para mais um passeio pelas montanhas que rodeiam a cidade de Braga. “Faço isto todos os fins-de-semana. Estando o tempo razoável, é ao sábado e ao domingo”, garante. Mas há cerca de um ano, era impensável que voltasse a pedalar. José esteve 19 dias em coma e, quando acordou, não conseguia sequer andar. Foi um dos primeiros doentes em Portugal internados com Covid-19.

[Pode ouvir aqui a segunda parte da reportagem Recuperados, da Rádio Observador, sobre José Pereira]

Recuperados. “Senti-me como um ciclista profissional a chegar em primeiro lugar ao topo da Senhora da Graça”

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A 8 de março, começou a ter febre e dores de cabeça. Raramente ficava doente e começou a desconfiar que fosse mais do que uma constipação. Na altura, Portugal tinha apenas 23 casos de infeção por Covid-19 confirmados. Mas o trabalho de José obrigava-o a viagens regulares ao estrangeiro e, lá fora, a ameaça de pandemia já pairava.

Por isso, consultou o médico. Inicialmente, os sintomas foram desvalorizados, mas sentia-se cada vez pior. Por isso, ligou para a Linha Saúde 24. A 17 de março, fez o teste e o resultado foi positivo. No dia seguinte, o Hospital de Braga chamou-o para fazer exames. José foi, sozinho, a conduzir.

"Fiquei mais sensível aos problemas dos outros e a coisas que vejo na televisão", admite o empresário de Braga

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O que recorda dessa primeira ida ao hospital?
Entrei às 10 e meia da manhã no Hospital e às 11 e meia da noite já estava em coma induzido. O que me contam os médicos e enfermeiros é que o meu nível de oxigénio estava muito inferior ao meu valor normal.

Lembra-se de quando os médicos lhe comunicaram que teria de ser entubado?
Não. Nada! Tenho memória de ter entrado no hospital. Depois tenho um flash de estar na cama da enfermaria, onde me puseram uma máscara de oxigénio. Vim a saber depois que liguei para casa a dizer que tinha almoçado e que estava tudo bem. Mas, sinceramente, não me lembro de mais nada.

Quanto tempo esteve em coma?
19 dias. E ainda estive mais uma semana sem estar lúcido a maior parte do tempo…

E quando acordou? Do que é que se lembra?

Foi um choque. Não conseguia falar, não conseguia andar, tinha um braço paralisado, tinha colado a omoplata por estar muito tempo deitado na mesma posição… E quando acordei, vi-me rodeado de corpos estranhos. De um momento para o outro, vejo pessoas todas mascaradas, vestidas com os fatos de proteção. Como liguei aquilo aos sonhos que tinha tido durante o coma, pensei mesmo que estava noutro planeta. E há um pormenor que, na minha ideia, atestava que estava entregue a pessoas estranhas noutro planeta — nas batas, os nomes eram escritos à mão, com um marcador. E eu pensei: “Isto é impossível! É uma clínica de vão de escada!”

“Liguei-me ao mundo. E descobri um mundo virado do avesso!”

Não foi nenhuma alucinação. No Hospital, médicos e enfermeiros estavam equipados dos pés à cabeça com fatos que pareciam de astronautas. Com o equipamento, a comunicação era praticamente impossível e reconhecer quem estava atrás das viseiras e das máscaras era uma missão difícil. Por isso, os profissionais de saúde escreviam os próprios nomes nas batas, à mão, com caneta.

A confusão de José aumentava porque achava que conseguia falar e não entendia que os médicos não respondessem às perguntas dele. Não era real. O máximo que fazia na altura era balbuciar sons sem qualquer sentido.

Aos poucos, foi recuperando a consciência. Depois de sair dos cuidados intensivos, foi transferido para os cuidados intermédios, onde esteve 10 dias, até passar para um quarto de pressão negativa e começar a fazer fisioterapia e terapia da fala.

Agora José gere as duas empresas a partir de casa: uma de cestaria, outra de telecomunicações

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Pouco a pouco, conseguiu voltar a falar e a ter vontade de saber o que se passava lá fora. Quando foi autorizado a ter telemóvel, começou a ler as notícias. “Liguei-me ao mundo. E descobri um mundo virado do avesso!”.

No dia em que José entrou em coma, a 18 de março. Portugal tinha 642 casos confirmados de infecção por Covid-19. O novo coronavírus tinha provocado duas mortes. Um mês depois, quando voltou a “ligar-se ao mundo”, eram já 19.685 infetados no país; 687 pessoas tinham morrido.

Como dar a José a notícia da morte do pai, internado com Covid-19 um dia depois

Regressado do coma, José não encontrou apenas um país em estado de emergência. Quando recebeu o telemóvel, fez a primeira chamada para casa. “Percebi logo, pela voz da minha esposa, que alguma coisa tinha acontecido. E nem a deixei falar. Disse logo: ‘Foi o meu pai'”.

Toda a família próxima esteve infetada com Covid-19. Ao todo, 10 pessoas. Tal como José, também o pai foi internado. Deu entrada no hospital a 19 de março, um dia depois de José ter entrado em coma. Não resistiu. Morreu a 27 de março. Foi a mulher, Rosa Maria, que teve de dar a notícia a José.

Rosa Maria não sabia como devia dar a notícia ao marido. José tinha acabado de acordar do coma e ainda estava frágil. Chegou a falar com a psicóloga do hospital, que lhe disse que o ideal seria informá-lo quando estivesse em casa, mas José insistia em ter o telemóvel e, mais tarde ou mais cedo, ia descobrir.

“Sabia que ele ia ligar o telefone e começava a receber mensagens de condolências. Então peguei num saco de plástico de congelação onde pus o tablet e o telemóvel e por fora escrevi numa folha: ‘Zeca, quando receberes isto liga-me logo'”. Rosa pensava que ainda ia demorar algum tempo até que a encomenda chegasse a José. Mas passados 15 minutos, estava a receber uma chamada dele.

“Tremia toda! Comecei a dizer-lhe que nós estávamos todos bem, mas que o pai dele já tinha 83 anos… Mas já não consegui dizer mais nada. Foi ele que disse: ‘Eu já me tinha apercebido’. Deve ter sido na minha voz que ele percebeu que havia uma tragédia cá em casa”.

Foi a filha que terminou essa chamada. “Foi muito complicado para mim. Queria ser eu a dizer-lhe”, conta Rosa.

“Cheguei a falar com o psicólogo do hospital, mas não foi por aí que ultrapassei”

No hospital, depois de receber a notícia da morte do pai, José tomou uma decisão: ia cuidar de si próprio. Dedicou-se à recuperação. Na fisioterapia, fazia tudo o que lhe pediam. E quando acabava a sessão, treinava sozinho no quarto.

Qual era a sua motivação?
É a cultura do desporto – sacrifício, arranjar ânimo quando parece que está tudo perdido. Foi sempre assim que fui habituado: a ir até ao limite. E foi isso que fiz. Até não poder mais! E isso começou a dar frutos mais rápido do que os médicos esperavam. Tudo isso foi-me incentivando. E as terapeutas eram fantásticas. Eu sentia que nunca mais ia ser o mesmo e elas insistiam que eu ficava a 100%.

Também se ia abaixo?
Tive alturas em que não fui ao tapete mas andei lá perto. Quando sentimos que não podemos fazer coisas básicas — como, por exemplo, falar — começamos a pensar: “Como é que vai ser a minha vida lá fora? Muitas das coisas que me davam alegria já não as vou poder fazer”. O correr, o jogar, o nadar… Nunca pensei que ia chegar ao ponto de normalidade.

Mas não cedia ao desespero…
Nunca cedi. Tinha momentos duros… Cheguei a falar com o psicólogo do hospital, mas não era para mim. Não foi por aí que ultrapassei essas situações. Foi mesmo o querer e o facto de estar habituado a ultrapassar obstáculos. Isso é que me deu ânimo. Isso e o incentivo que recebia dos médicos e dos terapeutas.

E também, a tal cultura do desporto, do sacrifício…
Sim. Comecei a andar, a fazer caminhadas dentro do meu quarto. No início, 15 minutos já eram uma maratona!

É preciso muita paciência?
Foi uma das lições que assumi — tinha de desacelerar o meu ritmo de vida. E isto, de certa forma, ajudou-me a ver as coisas de outra maneira. Obrigou-me a ser mais lento, a pensar melhor as coisas. E também me fez ver que é mesmo preciso ter esperança.

A morte do meu pai é um assunto de que de vez em quando falo porque ainda não consegui ultrapassar. Estou a trabalhar mentalmente para isso, porque sei que preciso, mas ainda não consegui totalmente. Também... os confinamentos não ajudam muito. Neste aspeto psicológico, não ajudam nada. Essa parte do falecimento do meu pai é um assunto que vou resolver. Vai ser mais devagar do que pensava, mas vou chegar lá.
José Pereira, empresário que esteve 19 dias em coma

O objetivo de voltar a subir ao Bom Jesus de Braga

Pouco a pouco, José foi recuperando a mobilidade e a força. Começou a andar cada vez mais tempo, a mexer o braço, a falar melhor.

Deixar a sonda de alimentação foi a prova final. Enquanto apreciador dos prazeres da mesa, amante de uma boa jantarada, não imaginava sair do hospital sem conseguir comer normalmente. O primeiro teste não correu bem. Mas à segunda conseguiu. Um dia depois teve alta.

No total, José Pereira esteve 56 dias internado no Hospital de Braga. A 15 de maio, deixou o internamento e passou a ser acompanhado como doente externo, para fazer reabilitação.

Só deixou a fisioterapia em dezembro, quase nove meses depois de ter sido hospitalizado. Ainda hoje é acompanhado como doente pós-covid. Falta-lhe um exame, o último, que vai fazer com que tenha alta e deixe tudo isto para trás.

Entretanto, voltou a uma das grandes paixões da sua vida: o desporto. “Antes disto, fazia o Bom Jesus quase todos os dias. Saía daqui, corria até lá acima, subia aquela escadaria toda e regressava. São 6,5 quilómetros, mais ou menos. Então, comecei a fazer umas tentativas numas caminhadas.”

No início, foi difícil. “Da primeira vez, cansei-me rápido. Fiz um quilómetro e regressei, já com alguma dificuldade. Mas não parei. Cada vez ia mais um bocadinho. Até que houve um dia que cheguei às portas do Bom Jesus”.

E entretanto, voltou à bicicleta. Já conseguiu ir até ao Santuário do Sameiro. São 20 quilómetros a subir — não é para todos.

"O ciclismo é um ato de sofrimento pessoal. Fala-se em equipas... ajudam, mas chega uma altura em que é cada um por si. É uma luta com o nosso interior"

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

“Não é que fosse um durão, mas emociono-me mais facilmente”

José Pereira garante que voltou a ser “uma pessoa normal”. Há sempre pequenas mazelas que ficam, mas são coisas sem importância. Conseguiu recuperar e fazer quase tudo o que fazia antes da Covid-19.

O que é que sente que tenha mudado na sua vida?
Estou mais sensível. Fiquei mais sensível aos problemas dos outros e a coisas que vejo na televisão. Às vezes, até evito. Por exemplo, todos os dias os telejornais continuam com notícias da Covid e ontem estava a dar uma reportagem sobre o Hospital de Braga e eu digo: ‘Conheço este teto!’ Eu não me lembro de estar nos Cuidados Intensivos, mas os sonhos que tinha fizeram-me lembrar aquele teto. E depois, emociono-me mais facilmente. Eu não era assim. Não é que fosse um durão, mas era muito difícil comover-me. Parece que tinha uma carapaça. E agora é com facilidade que me emociono com determinadas coisas…

Por exemplo, quando vê as reportagens de outros doentes com Covid-19?
Tenho alturas em que não consigo ver. Depende de como estou. Há pouco, perguntava-me sobre as sequelas. Acho que todos nós que passámos por aquilo temos uma situação pós-traumática. Por vezes, fico num estado de tristeza. Mas isto tem vindo a diminuir. No início, havia mesmo quedas emocionais fortes.

E já conseguiu processar a morte do seu pai?
Esse é um assunto de que de vez em quando falo porque ainda não consegui ultrapassar. Estou a trabalhar mentalmente para isso, porque sei que preciso, mas ainda não consegui totalmente. Também… os confinamentos não ajudam muito. Neste aspeto psicológico, não ajudam nada. Essa parte do falecimento do meu pai é um assunto que vou resolver. Vai ser mais devagar do que pensava, mas vou chegar lá.

José tem consciência de que ainda há um caminho por percorrer. Esteve no limite. Agora diz que só lhe falta aquilo que está a faltar a toda a gente – voltar a ter a vida normal: poder estar com a família, celebrar as vitórias que conseguiu e sentar os amigos à mesa.

Até lá, dedica-se a outros prazeres da vida. Todos os fins-de-semana, pega na bicicleta e sobe às montanhas que rodeiam a cidade. Pedala até se cansar. E quando o cansaço chega, força mais um bocadinho.

Qual é que foi a sensação quando conseguiu subir novamente ao Sameiro?
Foi a sensação que tem um ciclista profissional quando chega ao topo da Senhora da Graça em primeiro lugar. O ciclismo é um ato de sofrimento pessoal. Fala-se em equipas… ajudam, mas chega uma altura em que é cada um por si. É uma luta com o nosso interior. E superar uma prova assim, depois disto tudo, é uma sensação que nem sei exprimir. Sei que é muito boa…

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