“O processo de vetting é uma rua com dois sentidos. Foi selecionado para esta função pelo Presidente, e a administração quer que seja bem-sucedido. Logo no início do processo deve divulgar tudo o que o preocupe, desde aquela peculiaridade nos seus impostos até quaisquer questões que o possam ter levado a tribunal. Pior do que não contar, não minta nem oculte factos durante o vetting. A Administração não pode ajudá-lo se não fornecer uma imagem completa e precisa. Assim que for nomeado, o Senado, a imprensa e o público farão o trabalho de revistar todo o seu percurso pessoal e profissional. E aí, mesmo problemas aparentemente pequenos podem tornar-se preocupações públicas para si e para a administração”
A recomendação deixada na página do Center for Presidential Transition é assinada pela norte americana Heather Samuelson, conselheira que já trabalhou na equipa de transição de Obama-Biden na seleção e verificação (vetting) de candidatos aos cargos no Departamento do Estado. Nos Estados Unidos, cada vez que existem eleições, grande parte daqueles que quiserem servir o país e ocupar cargos políticos passam por um penoso processo de verificação de credenciais profissionais, interesses financeiros e questões pessoais. E nalguns casos o crivo final é do Senado. O que pode até ser embaraçoso.
Dos 0 aos 12 (problemas com governantes e saídas do Governo) em 9 meses
O primeiro-ministro, António Costa, anunciou quinta-feira, no Parlamento, que iria propor um “circuito” para a nomeação dos membros do Governo sem nunca referir a palavra emprestada “vetting”. “Eu não acho que possamos e devamos normalizar situações anómalas, mesmo que sejam casos e casinhos. Têm que ser levados a sério e, sobretudo, tem que se dar confiança de que nos levamos a sério. Por isso, não lhe direi muito hoje, mas irei propor ao senhor Presidente da República que consigamos estabelecer um circuito entre a minha proposta e a nomeação dos membros do Governo que permita evitar desconhecer factos que não estamos em condições de conhecer e garantir maior transparência e confiança de todos no momento da nomeação”.
E nessa noite mesma enviou uma proposta a Marcelo. Ao final da tarde desta sexta-feira, ainda pouco se sabia sobre o que o primeiro-ministro propôs ao Presidente da República, para escrutinar todos os possíveis nomeados para o Governo, depois da polémica da secretária de Estado da Agricultura, que não esteve no cargo mais de 24 horas — e depois de vários casos com membros do Governo que elevaram para 13 o número de demissões de governantes desde que o Executivo tomou posse, há menos de um ano. Numa edição especial do podcast Comissão Política, a propósito dos 50 anos do semanário Expresso, a ministra Mariana Vieira da Silva disse que, a ser concretizado, esse circuito de validação de futuros governantes seria “formal” e “externo” ao Governo, não passando necessariamente pelo crivo direto do Presidente da República. “A ideia não é passar o escrutínio para o Presidente, é que exista um momento antes da nomeação, exterior ao Governo, para se ter acesso a informação de que o Governo não dispõe”, concretizou a ministra da Presidência.
A polémica com a secretária de Estado da Agricultura foi um “caso ou casinho”, nas palavras do próprio primeiro-ministro, que se seguiu à demissão da secretária de Estado do Tesouro, Alexandra Reis, depois de conhecida a indemnização que recebeu da TAP, e ao consequente rombo no Ministério que tutela a companhia aérea então liderado por Pedro Nuno Santos, que também acabou por demitir-se. Uma série de escândalos que fragilizaram o Governo e que levaram António Costa a anunciar novas medidas, na tentativa de serenar os atribulados nove meses de governo de maioria absoluta.
Crónica de uma demissão antecipada por Marcelo durante a moção de censura
Um gabinete em permanência para controlar “conflitos de interesses”
“É uma questão de gestão de riscos a nível do Governo e tem que ser resolvido”, diz ao Observador um dos coordenadores do estudo “Ética e integridade na política”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Luís de Sousa, que estudou como os vários países estão a adotar medidas de auto-regulação, seja no seio dos partidos, dos governos ou dos parlamentos, para evitar o risco reputacional associado à conduta ética dos políticos no desempenho das suas funções, considera que António Costa devia criar um Integrity Officer ou mesmo uma Comissão/Gabinete próprio dentro do governo para avaliar não só os candidatos, mas que faça todo um papel diário de avaliação de impedimentos. “Os conflitos de interesses são dinâmicos”, lembra.
E para isso não precisa sequer do Chefe de Estado. “Não faz sentido pedir-lhe a ele para fazer parte do escrutínio”, afirma Luís de Sousa, que lembra que o Presidente pode até ter um papel, como o da comunicação social, de escrutinar alguma situação que lhe pareça incompatível com o exercício do cargo, mas esse escrutínio terá que ser comunicado a uma comissão, ou gabinete, que funcione no seio do Governo e que se dedique apenas a essas funções.
Nos Estados Unidos, cerca de um quarto dos 4 mil cargos preenchidos por nomeação presidencial exigem confirmação do Senado, primeiro por uma ou mais comissões, depois por votação em plenário. Significa que toda a vida do candidato, que tem que preencher extensos formulários sobre a sua vida fiscal, profissional e pessoal, vai ser exposta. Por isso, as recomendações de Heather Samuelson.
“Por vezes, pessoas que seriam servidores públicos extraordinários não passam o processo de vetting. Não significa que sejam pessoas horríveis. Mas, por vezes, as suas participações financeiras podem ter causado conflitos para que cumpram plenamente o seu papel, ou há pormenores da sua vida privada (ou na vida privada de familiares) que gostariam de manter”, privados, escreve Heather Samuelson.
“Os holofotes podem ser duros para os candidatos e os seus ente queridos. Certificar-se de que podem ser identificadas vulnerabilidades antes de ser nomeado é fundamental. É por isso que existe o processo de verificação”, acrescenta a conselheira norte-americana.
Elenco de responsabilidades começa na própria pessoa
Carla Alves, a secretária de Estado da Agricultura que pediu para sair 25 horas depois de tomar posse — depois de uma notícia do Correio da Manhã que dava conta de que as suas contas bancárias estavam arrestadas na sequência de uma investigação criminal ao marido —, devia, do ponto de vista de Paulo Sande, advogado especializado em Direito da União Europeia, ter pensado logo nisso antes de aceitar o cargo. “O elenco de responsabilidades começa na própria pessoa, que aceita o cargo, depois o primeiro-ministro.”
“Uma questão é o foro penal. É evidente que quem cometeu um crime, que está acusado, seja afastado do cargo. Mas há de facto questões de ética. E a ética é a forma como nos adaptamos à moral dos tempos, as regras que a sociedade consensualiza. As pessoas, não tendo nenhum desses problemas, podem ter comportamentos éticos reprováveis e isso é aferível do ponto de vista político. Este conceito de ética evoluiu e mudou muito e aquilo que há algum tempo era aceitável, agora não é”, lembra.
“Acho muito bom que haja mecanismos que procedam a esse escrutínio, mas devia ser criada junto do primeiro-ministro, para que não haja uma situação adversa nem para o governo, nem para o próprio partido. E António Costa não precisa do Presidente para isso”, sustenta ainda Paulo Sande.
Em Portugal, além dos códigos de conduta, o único escrutínio feito aos governantes nomeados está nas mãos do Tribunal Constitucional, que exige aos titulares de cargos políticos as suas declarações de rendimentos e de património declarado. O Parlamento exige um registo de interesses. “Mas depois há pouco ou nenhum controlo sobre isso”, diz, por seu turno, ao Observador Susana Coroado, co-autora do estudo sobre Ética.
Publicações nas redes sociais, impostos, registos clínicos e família. Tudo é passado a pente fino nos EUA
Nos Estados Unidos, mesmo que o cargo político não exija confirmação do Senado, a equipa de transição, como aquela em que Heather Samuelson trabalhou, examina cuidadosamente cada candidato antes de prosseguir com uma indicação ou uma nomeação formal, como explica um artigo da sociedade Convingtion. Tanto na administração Trump como da Obama chegaram a ser indicados nomes antes do vetting e isso “pode ser embaraçoso”, caso estes nomes acabem chumbados durante todo o processo de verificação, mesmo antes de chegar ao Senado, lê-se no artigo desta sociedade que oferece aconselhamento a quem passar por um processo de vetting.
Todos os registos públicos, seja em redes sociais, em publicações, em jornais antigos ou recentes, dos candidatos com potencial são passados a pente fino. E todos eles têm que responder a detalhados questionários com uma ampla gama de tópicos. Têm também que fornecer dados fiscais, médicos, criminais e até familiares. Os formulários disponíveis online são bem claros: o candidato que pensar em ocultar informações ou não responder, ou que tenha problemas com créditos, ou com impostos, por exemplo, mais vale desistir.
Para os lugares de topo, o processo de verificação conta mesmo com a colaboração do FBI e com um organismo denominado Gabinete de Ética Governamental. Para os cargos que têm que ser confirmados pelo Senado, como por exemplo o de secretário de Defesa ou até mesmo para o Supremo Tribunal, são exigidas informações adicionais. Em 2018, a aprovação do juiz Brett Kavanaugh pelo Senado, indicado por Donald Trump, esteve mesmo ameaçada por uma queixa de abuso sexual.
Costa vai propor a Marcelo “circuito” para filtrar nomeações de novos membros do Governo
O sistema mais próximo de vetting americano é o da Comissão Europeia
Susana Coroado diz, que olhando para as democracias do globo, não é comum haver este tipo de mecanismo. O mais próximo do modelo norte-americano é o da Comissão Europeia. É também para Paulo Sande o “caso mais paradigmático”. “Porque os candidatos têm que entregar uma série de documentos, são sujeitos a uma audição de três horas, podem ser solicitados mais elementos e podem ser rejeitados.”
Acontece desde 2004, precisamente no ano em que Durão Barroso chegou à Presidência, e desde então tem havido sempre rejeições de pelo menos um potencial membro do Executivo comunitário. O próprio Durão Barroso viu o seu passado escrutinado, desde a militância maoísta à fotografia dos Açores com José Maria Aznar e George W. Bush, associada à invasão do Iraque, passando pela gestão da crise económica em Portugal, como o Público então noticiou.
O escrutínio apertou de tal forma que Durão Barroso acabou mesmo a recuar com a proposta do conservador italiano Rocco Buttiglione para comissário da Justiça e Assuntos Internos, criticado por, perante a Comissão de Liberdades Civis, afirmar que a homossexualidade era “um pecado” e que a família “existe para permitir à mulher ter crianças e ser protegida pelo marido”.
“O Parlamento pode recusar por incompetência ou por conflitos de interesse ou por reputação. Se for rejeitado, o Presidente da Comissão tem que o substituir. Desde 2004 que houve sempre alguém rejeitado, em 2019 houve uma pessoa que teve que mudar de pelouro”, lembra Paulo Sande.
Foi nesse ano que o Parlamento Europeu rejeitou também o nome indicado por Emmanuel Macron: Sylvie Goulard, que se tinha demitido da pasta da Defesa, em França, num caso de pagamentos irregulares a assistentes políticos com verbas do Parlamento Europeu. Esteve um mês com a pasta.
Em França, lembra Susana Coroado, o escrutínio dos políticos passa pela Alta Autoridade para a Transparência na Vida Pública, que verifica um conjunto de situações fiscais e criminais, já depois da nomeação. Uma verificação idêntica à que é feita em Portugal pelo Tribunal Constitucional, já depois da nomeação, mas que em França vai mais a fundo. Com base na declaração de interesses, a autoridade francesa “é mais proativa na verificação das informações prestadas”, podendo mesmo pedir dados ao Fisco. Trabalha também com a Agência Anticorrupção e partilham competências nesta matéria.
Já na Croácia e na Dinamarca, são os Serviços de Informações que fazem um securitycheck(uma avaliação de segurança] e que avaliam se há riscos. Na Alemanha, faz-se uma verificação prévia, antes da nomeação, mas “é voluntária”, resume Susana Cororado ao Observador.
Já em Espanha, há um gabinete que analisa conflitos de interesse, questões judiciais e fiscais. Um pouco à medida do que propõe Luís Sousa, embora na sua visão fosse mais útil que este gabinete tivesse um trabalho permanente e mais abrangente.
“Devia desempenhar um papel diário de avaliação de impedimentos. Não significa que, tendo passado esse crivo inicial, respondendo a uma checklist, tudo seja legítimo ou eticamente reprovável. Até porque, à partida, há coisas que podem não ser irrelevantes, mas que a determinada altura se tornam relevantes”, afirma.
O ministro da Saúde casado com uma bastonária dos Nutricionistas e as dúvidas
Manuel Pizarro, que em setembro assumiu a pasta da Saúde deixada por Marta Temido, outra baixa deste Governo, também começou o mandato debaixo de fogo. Primeiro, com um alegado conflito de interesses com a mulher, bastonária da Ordem dos Nutricionistas. Na altura, o governante explicou que já tinha pedido um parecer sobre o caso. E acabou por delegar na sua secretária de Estado para a Promoção da Saúde todas as competências relacionadas com a Ordem dos Nutricionistas. Em resposta a um pedido de parecer do Chega, a Comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados revelou-se mesmo incompetente para se pronunciar. Pouco depois, vinha a público que Pizarro ainda não tinha extinguido a empresa de consultadoria na área da saúde em que era sócio-gerente. O que o novo ministro acabaria por fazer.
“Este gabinete seria importante para quem que tem dúvidas não cometesse um erro. Até mesmo a questão das prendas e hospitalidade. Creio que há códigos de conduta e toda uma legislação, mas as pessoas estão ocupadas com assuntos de governação e não têm sempre isso presente. Em caso de dúvida, têm de pedir aconselhamento”, diz Luís de Sousa.
O investigador lembra que os códigos de conduta têm sempre três dimensões: uma checklist onde se incluem proibições de determinados interesses privados e incompatibilidades; a prescrição de um conjunto de comportamentos desejáveis no exercício de funções (o que deve fazer quando recebe um oferta, perante uma situação, perante uma reunião de um lobista profissional) e, por fim, uma dimensão aspiracional: “As pessoas perceberem para onde vão, perceberem quais os princípios que estão na base do cargo antes de aceitarem”, diz.
A maioria dos países europeus tem, pelo menos, um documento legal que regula a conduta ética dos membros do governo
No estudo que coordenou com Susana Coroado, Luís de Sousa baseou-se em informações colhidas pelo GRECO (Grupo de Estados contra a Corrupção), uma estrutura do Conselho da Europa que faz recomendação e acompanha a sua implementação nos vários países. Os investigadores sublinham que “os candidatos a cargos políticos importantes são selecionados pela sua lealdade pessoal ou partidária e pela sua competência técnica, mas não é evidente em que grau o seu perfil de integridade entra na equação”.
Os secretários de Estado, lê-se, “respondem politicamente perante os ministros e estes respondem perante o primeiro-ministro sobre várias matérias, incluindo a sua conduta ética. O primeiro-ministro, por sua vez, tem o poder de zelar pela conduta dos ministros a título individual, diretamente ou através de um ministro-adjunto mais vigilante, e de pedir a demissão dos que, eventualmente, transgridam determinados padrões de conduta”.
A maioria dos países europeus tem, pelo menos, um documento legal que regula a conduta ética dos membros do Parlamento, o que nalguns países abrange também os membros do governo — porque são cargos exercidos simultaneamente, como na Dinamarca, na Alemanha e no Reino Unido.
A Bélgica é a exceção, pois não existe um código de conduta ou política de integridade que se aplique às funções executivas de topo.
No Reino Unido, existe um Conselho do Primeiro-Ministro para os Interesses dos Ministros e uma Comissão Consultiva para Cargos Profissionais (ACOBA), que fiscaliza e avalia os cargos e empregos que os membros do governo pretendem ocupar após cessarem funções.
Há também regulação para os parlamentares.
Olhando para o cenário europeu, 19 países (quase 80% dos casos) possuem algum tipo de entidade responsável pela gestão da ética parlamentar. Mas nada como nos Estados Unidos.
Além dos três países sem regulação (Bulgária, Dinamarca e Hungria), apenas os parlamentos do Chipre, Finlândia, Alemanha, Malta, Holanda e Suécia não instituíram órgãos para zelar pela aplicação dos seus códigos de conduta. Apesar de terem normas de ética parlamentar em vigor, esses países confiam sobretudo na consciência individual dos deputados para fiscalizar a sua própria conduta e na pressão e sanção moral dos pares para promover o seu cumprimento.