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Rui Nabeiro. Um milionário diferente que tinha saudades de viver mais tempo

Criou um império do nada e tornou-se num dos homens mais ricos de Portugal. Pôs uma vila alentejana no mapa e café em Portugal será sempre sinónimo do seu nome. Rui Nabeiro morreu aos 91 anos.

A rua nunca perdeu o cheiro a café. Na casa construída no ano da Revolução, avistam-se os escritórios da Delta e, noutros tempos, via-se a fábrica. O caminho era percorrido todos os dias a pé. “Sábados e domingos”. Só assim foi possível criar um império nas profundezas de um país que tantas vezes renega as suas entranhas. Um império sempre “nosso”, nunca “meu”. Campo Maior é terra que nunca poderia ver nascer uma plantação de café, mas houve um homem que viu nela uma porta aberta para o mundo. Chamava-se Rui Nabeiro e morreu este domingo aos 91 anos.

Tirar a Delta de Campo Maior nunca lhe passou pela cabeça. “Quem é que pode tirar uma coisa de um sítio que lhe deu tanto?”. E oportunidades não faltaram. Rui Nabeiro nunca escondeu que, por mais do que uma vez, lhe ofereceram “muitos milhões” pela empresa que criou de raiz, em 1961, com uma máquina artesanal que torrava 30 quilos de café. Gigantes como a Nestlé, a Pepsi ou a Kraft quiseram deitar a mão ao diamante de Campo Maior. “Quem comprasse não ficava numa terra de província. Ficava em Lisboa”, disse no ano passado em entrevista ao programa Alta Definição, da SIC. Por isso o negócio esteve sempre fora de questão. “Os homens não se vendem, criam-se.”

Morreu o empresário Rui Nabeiro, fundador da Delta Cafés. Tinha 91 anos

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Foi essa a filosofia que o guiou a vida toda. Até na ficção. “Hei de ser um rico diferente dos que há por aí”, diz a sua biografia romanceada, Almoço de Domingo, escrita por José Luís Peixoto.

Antes de se criar a si próprio, Nabeiro teve no pai a sua grande referência. “Era um homem muito trabalhador”. A morte do progenitor quando o mais novo de três filhos tinha 17 anos moldou o resto da sua vida. Depois de uma infância de “muito sacrifício”, coube ao miúdo Rui tomar conta dos destinos da família. “Ele sabia que ficava alguém com força suficiente, que era eu”, contou na mesma entrevista. “Os meus pais sempre disseram: o Rui vai longe. E não fui perto”.

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Rui Nabeiro fundou a Delta Cafés em 1961

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Chegou a ser pregoeiro e vendia peixe. “Tudo o que desse dinheiro eu não tinha problema em fazer. Tinha de dar estabilidade à minha mãe”. Cada centavo ia para as mãos de Maria de Jesus Azinhais. Até o ordenado do mês em que casou.

Após a Guerra Civil Espanhola, que terminou em 1939, quando Rui Nabeiro tinha oito anos, seguiram-se anos de miséria na raia. “As pessoas viviam voltadas para Espanha, portanto, nesse período viu-se a maior miséria de todos os tempos: não havia trabalho, nem comer, nem coisa nenhuma”, contou à neta, Rita Nabeiro, numa entrevista publicada na revista DDD – Dê de Delta. A comida, contou também, “aparece com o tio Joaquim”, uma das figuras mais influentes da vida de Nabeiro. Foi o tio Joaquim “que montou umas barracas ao longo da fronteira, e ali vendia açúcar, massa, arroz, feijão…”.

Na altura, o contrabando era o pão nosso de cada dia. E fez parte da vida da família Nabeiro. “O nosso contrabando foi sempre um contrabando de força, de tapar buracos. Trabalhámos sempre a vender café para os espanhóis”, disse em entrevista ao Expresso em 2016.

A juventude de trabalho numa terra pobre não foi alheia à consciência política que ganhou desde cedo. “Nasci socialista”, disse em entrevista ao Expresso. Aderiu ao Partido Socialista logo após o 25 de Abril. “O que é o PS? É a cultura da minha casa, é a cultura da casa dos meus pais”, afirmou, em 2011, no arranque da campanha de José Sócrates em Campo Maior. Deixou a política ativa nos anos 70, depois de ter sido eleito três vezes, pelo PS, presidente da Câmara de Campo Maior, cargo que ocupou entre 1977 e 1986, ano em que fugiu para Badajoz “durante uns meses” por ter sido acusado, pelo Ministério Público, de fraude fiscal.

Mas o chamamento do café, e não da política, foi sempre mais forte. “Cresci no café e fiz-me homem”. A frase é-lhe conhecida e está impressa em letras grandes nas paredes brancas do Centro de Ciência do Café, em Campo Maior. O gosto pela bebida dos deuses foi incutido “quando andava na torra em miúdo”. Entre os primeiros golos e a criação da Delta, a jornada foi longa.

“Quando comecei em Campo Maior, foi a sonhar para poder desfrutar a vida de forma diferente, porque a família era grande. Mas não sonhava com grandeza. A grandeza foi sonhada aos poucos. Eu ia com uma filosofia de modernidade”, contou numa entrevista à TVI em 2021, por ocasião dos seus 90 anos.

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“Criei a Delta para ser independente. Foi sonhada por mim. Mas, mesmo depois de estar criada, era difícil entrar no mercado. A concorrência do Norte e do Sul tinha os clientes controlados. Comecei a fazer esse trabalho, fazia uns cafés baratos e misturas. E comecei a fazer auto venda, vendia café à porta dos clientes. Os outros não davam crédito, quem não pagava não levava. E eu dava crédito. Os transportes dos outros eram os caminhos de ferro, que às vezes não chegavam. Eu levava o café numa carrinha. Foram anos de sofrimento”. Que acabaram por compensar.

Mais de 60 anos depois da fundação da Delta Cafés, Rui Nabeiro deixa um negócio presente em mais de 40 países e emprega cerca de quatro mil pessoas. Delta é Campo Maior e Campo Maior é a Delta. É graças à empresa que a vila tem uma taxa de natalidade acima da média nacional, e uma taxa de desemprego abaixo da média do Alentejo. Foi essa, afirmava o Comendador, a grande riqueza que criou. Isso e “a gratidão das pessoas. Não preciso de mais”.

Rui Miguel Nabeiro, o sucessor do império Delta que não quer ser uma cópia do avô

A sucessão já tinha sido preparada há muito. Ao neto, Rui Miguel Nabeiro, cérebro por trás do lançamento das cápsulas Delta Q, coube herdar a presidência executiva do grupo. E o apelido deverá perdurar na gestão por muitos anos. Segundo o Expresso, um protocolo familiar assinado por Rui Nabeiro, os seus filhos, João Manuel e Helena, e os seus quatro netos garantirá isso mesmo. Tal como garante que caso algum membro da família queira vender a sua quota parte da empresa, os restantes membros têm direito de preferência. Há ainda um Conselho de Família que reúne uma vez por ano para tratar da estratégia do grupo. Cada um dos filhos tem 16% do capital e os quatro netos 8%. O restante capital estava nas mãos de Rui Nabeiro, mas será agora disperso pelos herdeiros.

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Rui Miguel Nabeiro, o sucessor na gestão da Delta

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“Já fiz as partilhas e já tenho as pessoas indicadas nos respetivos lugares. São moços de trabalho, estão preparados para encarar o melhor e o pior”, afirmou à revista Sábado no final de 2021. Rui Nabeiro não estava preocupado com o futuro. “A vida passa a correr. O que eu desejo que aconteça é que eles possam seguir com uma empresa como esta, boa. Mas o que é que a vida nos vai trazer daqui a 20 anos?”.

O homem que nunca deixou de beber quatro cafés por dia (sem açúcar, porque “desvirtuava” o sabor”) nunca pensou reformar-se. “Sou reformado por natureza. Servi o meu tio, servi os meus pais. Mas hoje sou livre. Sempre trabalhei pelo exemplo, era o primeiro a chegar e dos últimos a sair. Sou uma pessoa disponível”, disse ao Alta Definição.

Rui Nabeiro foi o verdadeiro self made man português, que a partir de um grão de café construiu uma das maiores fortunas do país, avaliada em mais de 400 milhões de euros. “É uma herança ao serviço da comunidade”, chegou a dizer. Nos últimos anos, nas várias entrevistas que deu, fosse por ocasião dos seus 90 anos ou do doutoramento Honoris Causa que recebeu pela Universidade de Coimbra, as palavras do comendador Rui Nabeiro, ou o “senhor Rui” como era chamado por todos, denotavam a naturalidade com que encarava o fim. Apesar de, garantia, não pensar muito nele.

“Foi bom chegar até aqui. Até aos 100… é difícil. Mas nas condições que estou. Para sofrer e dar trabalho, não, preferia ir-me embora, já fiz a minha marcha”, disse a Daniel Oliveira. Saudades, levou algumas. “De ter chegado aos 90 anos e estar a aproximar-me do fim. A minha saudade é poder viver mais tempo. Quem tem amor à vida tem tudo”.

Rita e Rui Nabeiro: a neta entrevista o avô

Às inevitáveis perguntas sobre como gostaria de ser lembrado, Rui Nabeiro nunca deixava de mencionar “as pessoas”. “Quero ser uma referência, como pessoa. Por ter posto as pessoas todas a ter trabalho. Tenho a gratidão das pessoas, não preciso de mais. Não vou fazer asneira nenhuma até ao fim da minha vida”.

E se pudesse voltar atrás? “Fiz muito mas podia ter feito mais, de certeza. Talvez pudesse ter aproveitado o tempo de forma diferente. É difícil, fazia mais o quê? Estive muitos anos a trabalhar a sério. Não faço uma vida de escravo, mas é de trabalho”, admitia.

“O mundo não vive só de um homem, o mundo vive de muita gente”, afirmou. A 19 de março de 2023, partiu um homem que gostava de futebol, ia ao teatro e à revista, foi padrinho de muitos casamentos e teve um matrimónio “feliz” durante 68 anos. Rui Nabeiro foi um homem de muita gente.

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