Foi o último dia do suplício de Carlos Santos Silva no Tribunal Central de Instrução Criminal. Ao longo de três dias, o alegado testa-de-ferro de José Sócrates mostrou-se sempre nervoso perante o juiz Ivo Rosa, hesitando algumas vezes nas respostas, afirmando muitas outras o desconhecimento sobre factos básicos dos autos e fazendo questão de negar o conhecimento de Sócrates sobre factos fulcrais para a acusação.
Na prática, Santos Silva defendeu e protegeu José Sócrates ao assumir a titularidade dos 23 milhões de euros reunidos na Suíça, ao dizer que a compra do apartamento de Paris foi uma ideia sua, ao repetir que se limitou a emprestar a José Sócrates mais de 500 mil euros em numerário e que o ex-primeiro-ministro já lhe pagou cerca de 250 mil euros sem juros nem contrato. Só uma resposta sobre o contrato do arrendamento assinado com Sócrates é que saiu fora desta linha.
Igualmente certo é que neste terceiro e último dia de interrogatório de Carlos Santos Silva o próprio juiz Ivo Rosa não foi tão assertivo como tinha sido com o ex-primeiro-ministro e outros arguidos. Não tendo mesmo confrontado o alegado testa-de-ferro com as escutas telefónicas que revelam ordens de José Sócrates a Santos Silva sobre como devia ser feita a remodelação da casa de Paris.
O patrão que vai a casa das funcionárias
Sofia Fava terá recebido cerca de 600 mil euros de José Sócrates e de Carlos Santos Silva entre 2007 e 2015, além da quantia de 5 mil euros mensais que uma empresa de Santos Silva, a XLM, lhe pagou entre 2009 e 2014 por conta de um contrato de trabalho como engenheira do ambiente.
O Ministério Público afirma na acusação que tal contrato é falso, porque não correspondeu a serviços efetivamente prestados mas Carlos Santos Silva tentou desmentiu essa imputação junto do juiz Ivo Rosa. Santos Silva diz que contratou a ex-mulher de José Sócrates porque a conhecia e porque a sentiu ’em baixo’ quando o namorado Paulo Chaby morreu devido a um ataque cardíaco. Como sabia que ela era engenheira do ambiente e tinha experiência em cartografia, contratou-a para a XLM.
José Sócrates, garantiu Santos Silva ao juiz Ivo Rosa, nada teve a ver com isso.
A prestação de serviço de Sofia Fava, contudo, tinha a particularidade de ocorrer sempre em casa. A ex-mulher de Sócrates não ia ao escritório de Carlos Santos Silva. Pelo contrário: era Santos Silva, o patrão, quem se deslocava a casa da sua funcionária para recolher os projetos para obras em Angola e outros mercados da XLM. Quando não ia a casa de Fava, encontravam-se em cafés. Ao juiz Ivo Rosa, Sofia Fava tinha garantido que não tinha condições psicológicas para trabalhar num escritório.
Isto tudo apesar Fava ter um contrato de trabalho remunerado à ordem 5 mil euros mensais, com horários pré-definidos e tendo como local de trabalho as instalações da empresa de Santos Silva. Este, o patrão, limitou-se a justificar a incongruência com o facto de ser um contrato-tipo.
A situação de Ana Bessa era quase idêntica. Carlos Santos Silva contratou a mulher de Pedro Silva Pereira (ex-braço direito de Sócrates no Governo) para a XLM — Estudos e Projetos entre 2013 e 2014. No total, Bessa recebeu cerca de 98 mil euros para realizar estudos de mercado internacionais mas também trabalhava em casa. Contudo, e ao contrário de Fava, iria de vez quando ao escritório da XLM.
Carlos Santos Silva explicou ao juiz Ivo Rosa que conheceu Ana Bessa numa noite de verão no Algarve. Ficou a jantar com Bessa, enquanto Ferro Rodrigues (futuro secretário-geral do PS entre 2002 e 2004 e atual presidente da Assembleia da República) foi jantar com José Sócrates e Pedro Silva Pereira.
Como sabia que Ana Bessa tinha trabalhado na AICEP e era especialista em mercados internacionais, Santos Silva achou que podia ter interesse para as suas empresas. O amigo de Sócrates não referiu que Bessa estava desempregada na altura mas assegurou que realizou trabalho efetivo, como estudos de mercado de diversos países onde as empresas de Santos Silva operavam.
Ana Bessa e Pedro Silva Pereira foram investigados na Operação Marquês pela alegada prática do crime de branqueamento de capitais, por Bessa ter assinado com “o acordo e conhecimento” do marido um alegado contrato fictício com a XLM. Contudo, os autos contra si acabaram por ser arquivados.
O patrão que paga as prestações em atraso do crédito à habitação da funcionára
Outra questão relevante na relação entre Santos Silva e Fava prende-se com a compra do Monte das Margaridas. A ex-mulher de Sócrates e o seu companheiro Manuel Costa Reis compraram em 2012 aquele monte localizado em Montemor-o-Novo por cerca de 760 mil euros com crédito do Banco Espírito Santo (BES). Ora, Santos Silva foi vital para a viabilização desse empréstimo:
- Emprestou 150 mil euros para reforçar o sinal;
- Deu garantias para a emissão de uma livrança à ordem do BES;
- Foi o fiador do empréstimo do BES;
- Disponibilizou-se para manter 760 mil euros (o valor da aquisição do monte) ‘congelados’ numa conta à ordem do BES para servir de garantia ao empréstimo concedido.
Ao juiz Ivo Rosa, Santos Silva disse que soube em 2011 — dois anos depois de Fava ter começado a trabalhar na XLM — que a ex-mulher do seu amigo ia comprar o monte. Mas garantiu que José Sócrates nunca lhe pediu nada nem sabia de nada sobre todas as diligências que tomou em favor da sua ex-mulher.
Mais: sempre que Sofia Fava se atrasava a pagar as prestações do empréstimo do BES, Carlos Santos Silva como fiador era informado e aceitava pagar os valores em falta de forma imediata. Tudo sem que Fava, sua funcionária na XLM, soubesse.
Porquê? Porque Sofia Fava tinha dificuldades económicas, respondeu Carlos Santos Silva. Isto é, a prestação do crédito do Monte das Margaridas era praticamente equivalente ao salário de 5 mil euros que recebia da XLM.
Mulher de Santos Silva não queria alugar casa de Paris a Sócrates
Ivo Rosa decidiu voltar ao tema da compra da casa de Paris, localizada na Av. President Wilson e questionou novamente Carlos Santos Silva sobre como se processou o negócio.
Como é que se lembrou de Paris?, começou por pergunta o juiz. Santos Silva respondeu que pensou primeiro em Madrid, pesquisou naquele mercado imobiliário mas desistiu e virou-se para Paris. Deslocou-se à capital francesa, visitou duas casas e optou pelo imóvel localizado no luxuoso quarteirão de Passy, um dos mais exclusivos e centrais da capital francesa. Porquê? Porque tinha mais uma assoalhada.
A escritura da casa de Paris realizou-se a 31 de agosto de 2012 e custou cerca de 2,8 milhões de euros a Carlos Santos Silva — que rejeitou ao longo dos três dias a tese do Ministério Público de que o dinheiro reunido na Suíça seja de José Sócrates. Santos Silva diz mesmo que Sócrates só entrou na casa pela primeira vez em setembro de 2012 e que nunca teve nada a ver com a aquisição.
A aquisição, explicou Santos Silva, era um investimento para testar o mercado: venda ou aluguer? Antes de se decidir, optou por valorizar o imóvel com obras de remodelação.
Entretanto, continua o alegado testa-de-ferro de José Sócrates, o ex-primeiro-ministro disse-lhe que tinha de sair da casa onde estava em Paris porque o senhorio queria a casa. Santos Silva respondeu ao seu amigo que estudava em Science Po podia ficar no imóvel da Av. President Wilson mas só até ao início das obras. Depois teria de sair.
Sócrates diz ter vivido nesse apartamento entre setembro de 2012 e junho de 2013. Posteriormente, o ex-líder do PS foi viver com o filho Eduardo para um aparthotel, tendo Carlos Santos Silva garantido ao juiz Ivo Rosa que pagou a conta mas reencaminhou mais tarde as faturas para Sofia Fava (que também ia passar temporadas a Paris) e Sócrates devolveu-lhe os montantes pagos.
O juiz Ivo Rosa não confrontou Carlos Santos Silva com as escutas telefónicas em que José Sócrates dava ordens ao seu amigo e alegado proprietário do imóvel sobre como devia fazer as obras de remodelação e que materiais deviam ser escolhidos. Mas o amigo de Sócrates assegurou ao magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal que tinha sido ele e a sua mulher, Inês do Rosário, a determinar sobre como as obras deveriam processar-se.
Curiosamente, Inês do Rosário não concordava que o seu marido alugasse a casa a José Sócrates após a conclusão das obras, segundo revelou Carlos Santos Silva. Na verdade, Sócrates não voltou a morar naquele imóvel, tendo sido detido em novembro de 2014.
Ivo Rosa perguntou ainda a Santos Silva os temas da conversa que teve pessoalmente com José Sócrates no dia em que o jornal Correio da Manhã noticiou pela primeira vez a morada luxuosa de Sócrates no Av. President Wilson. É que o ex.-líder do PS foi apanhado numa escuta telefónica a dizer a Santos Silva: “Já viste a notícia de hoje? Precisamos de falar”. Ora, Santos Silva disse a Ivo Rosa que a conversa teve a ver com outras coisas mas lá admitiu que, se calhar, também falaram sobre a notícia do jornal.
O pedido de ajuda Santos Silva a Sócrates
Em maio de 2013, Carlos Santos Silva tinha um problema delicado. Tinha faturas para receber na Argélia de serviços prestados a entidades públicas argelinas e o processo estava parado. Santos Silva decidiu pedir ajuda ao seu amigo José Sócrates — a quem emprestava dinheiro e casa e que tinha bons contactos na Argélia, sendo amigo do então Presidente Abdelaziz Bouteflika.
Carlos Santos Silva disse ao juiz Ivo Rosa que só pediu ajuda ao seu amigo mas que nunca o remunerou por esse apoio. Certo é que Sócrates deslocou-se mesmo à Argélia em outubro de 2013, sendo que, sem o saber, já estava sob escuta e vigilância do procurador Rosário Teixeira nos autos da Operação Marquês.
O ex-líder do PS chegou a ter reuniões como primeiro-ministro Abdelmalek Sellal e com o ministro da Saúde — tudo com o apoio da embaixada portuguesa de Argel.
Sócrates: MP acredita que fez lobby na Argélia a favor de Santos Silva, Octapharma e Grupo Lena
Nessa viagem, Sócrates realizou também lobbying a favor do Grupo Lena e da Octapharma. Carlos Santos Silva contou mesmo ao juiz Ivo Rosa que tinha perguntado a José Sócrates se podia falar com Lalanda e Castro (patrão de Sócrates) para estudarem uma parceria para concorrerem a concursos de equipamento para hospitais públicos argelino. Sócrates fez o contacto e a parceria realizou-se mas, uma vez mais, Santos Silva diz que não remunerou o ex-primeiro-ministro.
O apoio empresarial de Sócrates a Santos Silva começou por ser detetado na Operação Monte Branco. Em julho de 2013, os investigadores daquele caso, que são os mesmos que lideram a Operação Marquês, já tinham detetado indícios de uma atividade de lobbying de Sócrates a favor de empresas de Santos Silva em Moçambique.
Vitor Escária, ex-assessor económico de José Sócrates em São Bento, também ajudou Carlos Santos Silva na Argélia, tendo sido mais tarde contratado por Santos Silva. O mesmo aconteceu com Guilherme Dray, ex-chefe de gabinete de Sócrates.
O quadro de Júlio Pomar
Carlos Santos Silva gastou 197 mil euros em arte entre 2010 e 2011. Entre as obras que comprou, encontra-se a “Nau Catrineta”, de Almada Negreiros (12.500 euros), a pintura a óleo de António Ramalho, de nome “Arbisti” (6.500 euros) e a estrela da companhia: “Salomé”, a obra de Júlio Pomar adquirida em outubro de 2011 por 50 mil euros.
O problema é que, aquando das buscas a 22 novembro de 2014 à casa de José Sócrates, o quadro de Pomar encontrava-se precisamente na residência do ex-líder do PS. O Ministério Público entende que o quadro era efetivamente de Sócrates por ter sido adquirido com os fundos que estavam em nome de Santos Silva mas pertenciam ao ex-primeiro-ministro.
O quadro de Júlio Pomar que o Ministério Público quer tirar a Sócrates
Carlos Santos Silva foi peremptório: “Os quadros são meus, o dinheiro é meu e os quadros estão em minha casa“. Confrontado com a questão do “Salomé”estar exposto na casa de Sócrates, Santos Silva explicou que José Sócrates tinha visto o quadro em sua casa e tinha ficado muito apaixonado pela obra de Júlio Pomar e propôs uma permuta: quatro quadros seus pelo “Salomé”.
A instrução criminal da Operação Marquês continua na próxima semana com as audições de Mário Lino, ministro das Obras Públicas de José Sócrates, e de Sérgio Monteiro, ex-secretário de Estado das Obras Públicas de Passos Coelho.