Há uma obra de Júlio Pomar, agora falecido, que foi apreendida pelas autoridades na casa de José Sócrates e que o Ministério Público (MP) quer que fique para o Estado, como uma das formas de compensar os alegados crimes cometidos pelo ex-governante que terão lesado o erário público. Chama-se “Salomé”, é uma pintura a óleo, e foi adquirida por 50 mil euros pelo empresário amigo de Sócrates, Carlos Santos Silva com dinheiro que as autoridades suspeitam ser de Sócrates.

“Salomé” estava exposta na sala de José Sócrates, na Rua Braancamp, no edifício Heron de Castilho, em Lisboa, a 22 de novembro de 2014, quando José Sócrates foi detido no aeroporto de Lisboa. Aos olhos do MP, esta é uma das várias obras adquiridas pelo empresário Carlos Santos Silva numa galeria de arte em que Sócrates seria cliente desde 1997. E teria sido uma das  formas encontradas por ambos para o empresário conseguir passar o dinheiro, alegadamente amealhado numa conta da Suíça e transferido para uma conta do BES, em Portugal, para a alçada do ex-governante.

No centro da operação esteve a Galeria Antiks Design, da qual Sócrates já seria cliente, mas que ao comprar diretamente poderia levantar suspeitas. “Não podendo expor-se enquanto primeiro ministro na aquisição de obras de arte que excediam os seus rendimentos, foi Carlos Silva quem os adquiriu”, argumenta o MP.

Assim, entre finais de 2010 e de 2011, Carlos Santos Silva gastou 197 mil euros em obras de arte, pagas com cheques do BES em alturas que coincidem com transferências bancárias da conta suíça para a portuguesa. Entre as obras adquiridas está a “Nau Catrineta”, de Almada Negreiros — que custou 12 500 euros — ou a pintura a óleo de António Ramalho, de nome “Arbisti”, que custou 6500 euros. Está também “Salomé”, a obra de Júlio Pomar, que terá sido adquirida por 50 mil euros em outubro de 2011 por Carlos Silva, embora em 2014 estivesse na casa de Sócrates.

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José Sócrates, numa entrevista que deu à RTP, explicou porquê: “o engenheiro Carlos Santos Silva comprou vários quadros na mesma galeria onde eu comprei quadros toda a vida, mas pequenos quadros. Ele comprou um quadro de Júlio Pomar e uns meses depois eu convenci-o a trocar esse quadro por cerca de sete ou oito que eu tinha em minha casa e que a mulher dele gostava mais. Fizemos uma troca. Isso é fácil de provar, os quadros estão em casa dele. Para o MP não interessa nenhuma explicação”, justificou

A admiração de Sócrates por Júlio Pomar não se ficou por aqui. Já para a capa de uma edição especial do seu livro “A Confiança no Mundo”, resultado da sua dissertação de mestrado em Paris, Sócrates voltou a escolher Júlio Pomar. Esse livro, que o MP acredita ter tido um número de vendas “forjado”, Sócrates escolheu a obra de Júlio Pomar para a capa de uma edição especial.

Ainda segundo a acusação, o livro, com prefácio de Eduardo Lourenço, era para ser colocada no mercado por altura do Natal, mas que foi colocada à venda apenas em abril de 2014, por 22 euros.

A capa do livro de Sócrates da autoria de Júlio Pomar

Segundo o despacho que acusa Sócrates de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada, a transferência de dinheiros da Suíça para Portugal, de forma a passarem depois para a esfera de Sócrates, começou em outubro de 2010 — simultaneamente a uma transferência de 800 mil euros de uma das empresas de Carlos Santos Silva, que consta no processo, a XLM “proveniente de ganhos gerados” através de “contratos de conveniência celebrados com o Grupo Lena e destinados a compensar intervenções favoráveis aquele grupo de empresas por parte do arguido José Sócrates”.

O MP refere que “Sócrates sabia que o seu património financeiro se encontrava misturado e que não era suscetível de ser dissociado, por terceiros, dos montantes” de Carlos Santos Silva. Assim, na tese da acusação, “na sequência do acordo mantido entre os dois arguidos”, além de levantamentos em dinheiro feitos pelo empresário amigo de Sócrates e entregues em mão, o arguido  decidiu que outra forma de pagamento seria através do pagamento de bens móveis, “nomeadamente, através da aquisição de obras de arte”. Os arguidos escolhiam obras com “boa cotação no mercado da arte” que “facilmente valorizariam”, lê-se na acusação.

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(Texto corrigido às 13h42 de 23 de maio, na informação relativa à tese de mestrado)