— Dizem que o filho do Schmeichel vem jogar connosco…
— Ahah, isso era muita giro! (as gargalhadas chegavam de todos os lados)
— ‘Tás doido…
— Eh pá, a sério. Alguém falou nisso.
— Sim, e o filho do Roberto Baggio também…
A minha memória já não permite saber se foi exatamente assim, mas lembrando os génios daquele balneário de iniciados do Estoril Praia, a lengalenga não terá andado nada longe — embora tenha largas dúvidas sobre a última frase; terá sido outro jogador certamente. Estamos no final do verão de 2000. Eu, os Ricardos, o Sérgio, o Fábio, o Vasco, o Bastos e o Abrantes tínhamos ainda na lembrança aquela final épica da Liga dos Campeões entre Manchester United e Bayern de Munique, que virou depois dos 90 para os ingleses. Alguns de nós só estávamos pelo Beckham, certamente. A black twin (Andy Cole-Dwight Yorke) também nos entusiasmava. Na baliza estava um monstro, um tal de Peter Schmeichel. Um verão depois, o gigante dinamarquês mudou-se para Lisboa, para representar o Sporting. Ou seja, os rumores sobre Kasper (hoje o guarda-redes do Leicester, o surpreendente campeão inglês) talvez não fossem assim tão descabidos…
Schmeichel ganando la Premier League en Old Trafford… pic.twitter.com/z00iWEUKJ5
— Andrés Cabrera (@AndresCabreraQ) April 28, 2016
E lá estávamos, com 14 anos, em mais um jogo de pré-epoca, num dos campos ao lado do velhinho Estádio da Luz. Aquilo mexia com qualquer um. Do outro lado iam jogar Manuel Fernandes, Tiago Gomes, João Coimbra, Manuel Curto e Zambujo, com quem já havíamos perdido a final de infantis (0-2). Eles eram bons, nós desconfiávamos de nós, como acontece nas equipas mais pequenas. Daí que a conversa sobre o Kasper soasse a algo divino, como se precisássemos de um herói, de alguém que nos livrasse de filmes de terror.
A conversa ficou em pause quando se ouviu um caminhar de jogador, lá ao fundo. É que ele já vinha equipado e as botas faziam aquele barulho mágico no chão. Como o cheiro a relva, esse som também é difícil de descrever. E lá entra no balneário um rapaz loiro, com um senhor cabedal, de saco na mão, desconfiado, com um ar muito “Top Gun”. Parecia mais velho, parecia jogador, sabia o que queria, sabia para onde ia.
— É ele, certo?
— Só pode…
— É ele.
Houve desconforto naquele balneário, nenhum de nós falou com o novo jogador. Alguns sabiam falar inglês, mas ninguém se aventurou. No relvado, o Benfica caiu em cima do Estoril do princípio ao fim. Deu goleada, mas nada de escandaloso. E isso só foi assim porque havia um rapaz na nossa baliza que era completamente de outro campeonato. Ele deve ter ficado preocupado. Quase dá para imaginá-lo aos berros em casa, a criticar a regra das equipas jovens só poderem ter um estrangeiro (o Sporting já tinha um, talvez o Zezinando).
A família Schmeichel vivia em Birre, Cascais, por isso o Estoril Praia terá sido a melhor opção. Kasper não sonhava ainda que acabaria o ano a cantar “weeeeeee are the champions, my friends” num balneário em Massamá. Antes de ganhar a quarta divisão inglesa, com o Notts County (2010), a segunda divisão com o Leicester (2013) e agora a Premier League outra vez com o Leicester, o dinamarquês com nome de lenda foi campeão no Estoril Praia.
“A cópia do pai” e as luvas do Euro-92
A nossa equipa de iniciados treinava no campo pelado dos Salesianos de Manique. Estávamos a poucos anos da inauguração dos dois campos sintéticos juntinhos ao António Coimbra da Mota. Onde treinávamos, havia bolotas e latas de refrigerantes. As condições eram terríveis. Conclusão: não havia mergulhos para a piscina.
Mas havia quem tinha o trabalho de ir ao chão dezenas de vezes por treino. Os guarda-redes sofrem. E os que sofrem mais são os melhores. Costumava dizer-se, nesses meandros da bola, que só os malucos é que eram bons. “Um guarda-redes tem de ser maluco”, ouvíamos tanta e tanta vez. Isso estará relacionado com a coragem nas saídas dos postes, nos cruzamentos, ou aos pés de um avançado. Sem hesitação. O atual campeão da Premier League insistia nos exercícios um contra um.
Peguei no telefone e quis tirar tudinho a limpo, roubando a lembrança de outros. Pedro Silva, 31 anos, era um dos guarda-redes dos juvenis B e treinou várias vezes com o Kasper. “Era uma cópia do pai. A grande diferença para nós era que ele enfatizava muito o treino de um contra um, achava que era muito importante no jogo. Tínhamos opiniões distintas, porque raramente estás um contra um, dás muito mais importância às bolas aéreas. Mas ele era diferente…”, lembra Pedro Silva, um auditor financeiro nos dias que correm.
“”Era fotocópia do Schmeichel, e qualquer coisa que ele fizesse dizia-se ‘ahhhh, aqui está o futuro Schmeichel’. Mas isso também funcionava contra ele: qualquer erro, qualquer frango, era sobrevalorizado”
“Ele ia treinar com os seniores do Sporting e contava-nos de quem tinha defendido remates. Adorava mostrar o que o pai lhe ensinava, aquela saída de pés, as manchas perfeitas, que só eles faziam. Só eles sabem fazer, é igual ao pai. Eu acho que vai vai ser melhor que o pai. É mais leve. A treinar, já se via, tinha qualquer coisa. Era fotocópia do Schmeichel, e qualquer coisa que ele fizesse dizia-se ‘ahh, aqui está o futuro Schmeichel’. Mas isso também funcionava contra: qualquer erro, qualquer frango, era sobrevalorizado”.
Pedro Silva tinha dois ídolos: Vítor Baía e Peter Schmeichel — o segundo ganhava a corrida ao trono. Era louco pelo Manchester United, sempre foi. E, por isso, num dos treinos, lá enfiou na cabeça do Kasper a ideia de ele pedir ao seu pai umas luvas. Mas não eram umas quaisquer: o Pedro, que treinava com cara de quem ia para a guerra, queria aquelas da Reusch, brancas e vermelhas, iguais às que Peter Schmeichel usou para vencer o Europeu em 92. Terá tido sorte?
“Lá batalhou e conseguiu. Usei-as depois durante todo o campeonato de juvenis B. Ficavam um bocadinho grandes, mas gostava de jogar com as luvas um bocado grandes. Mas aquelas eram um bocadinho de mais”, lembra, com risos à mistura. “As luvas eram muito boas, apertava-as um bocadinho mais, metia-se uns enchimentos nos pulsos. Tinham escrito Peter Schmeichel.”
Pedro Silva tinha uma boa relação com Kasper, que era “impecável” e “humilde”. Havia, no entanto, um assunto proibido: Luís Figo. Kasper não podia ouvir o nome do craque português. E porquê? Graças àquela jogada maravilhosa num Portugal-Dinamarca, na qual o camisola 7 passou entre dois defesas dinamarqueses e sentou Peter Schmeichel. A partir daí, Figo era persona non grata para Kasper.
“O puto detestava o Figo. Dizia que ele não jogava nada, que nunca seria um dos melhores do mundo, que não fazia sentido”, lembra Pedro Silva — Figo seria Bola de Ouro em 2000.
Lembro-me que no início da época, numa praia de Cascais, num daqueles treinos de quinta-feira para deixar os gémeos a gritar, conversei com o Kasper sobre jogadores que apreciávamos (portugueses e ingleses). Lembro-me especialmente de dois cromos trocados: ele falou-me em Nuno Gomes, eu falei em Michael Owen. Esse ódio a Luís Figo ainda não havia sido revelado. Até que algum colega percebeu o ponto sensível…
… e lembrou que Figo fez isto. E isto não se faz a um monstro com mais de 1.90m e mais de 90 quilos. Reza a lenda dessa época de 2000/2001 que alguém dos juvenis colocou um poster de Figo no balneário, que servia os juvenis e iniciados. Reza a lenda também que Kasper lhe terá cuspido. Eu não vi, e como ninguém o confirmava, comecei a desconfiar das histórias que inventamos na nossa cabeça, até que um dos capitães de então falou nesse capítulo. Tem a palavra João Bastos, via Facebook, porque estava em Barcelona e a mil à hora: “Lembro-me que cuspiu assim que viu a fotografia”. Aquele lance era um golpe duro na honra de um enorme guarda-redes que venceu cinco Premier League, quatro ligas dinamarquesas, um Campeonato da Europa e a tal Liga dos Campeões contra o Bayern.
Era só um garoto, a sofrer nas mãos de outros diabinhos. Para nós, Figo era Figo, um génio distante. Para ele, Peter Schmeichel era o seu pai, por isso faz sentido sentir o que sentiu. É que, apesar do ar carrancudo e dos sermões em campo (já lá vamos!), Kasper era boa gente.
“Era mais alto que nós todos juntos”, começa a recordar Bastos. “Lembro-me que odiava jogar num pelado e que o avô o acompanhava sempre nos treinos — o pai também, às vezes. Era sempre o primeiro a entrar no campo e o último a sair. Lembro-me uma vez, no campo do Tires, de estar a chover imenso e eu estar a chegar ao campo e já andava ele sozinho lá dentro a atirar-se para as poças.” O médio recorda ainda que o guarda-redes não tinha assim tanto trabalho, porque a equipa era forte. “Houve um jogo que fomos a penáltis e ele defendeu quase todos. Ele adorava estar a defender penalties.”
Nunca o apelido no BI o fez sujar menos os calções. Tentava imitar o pai, no estilo, nas saídas à andebol, nas palmas que batia com as luvas e no refilar que nos deixava surpreendidos. De resto, ele era do melhor e até nos iria levar a sua casa no final do ano, onde nos esperava uma visita a uma espécie de templo sagrado.
Lembro-me de um episódio que ainda gera gargalhadas em jantares e encontros de colegas da equipa. O lateral esquerdo chamava-se Tiago Nunes, um rapaz pacato, introvertido, bem-educado, sempre na dele. Será para sempre inesquecível a vez em que Nunes meteu Kasper em sentido. Foi num treino, o dinamarquês desatou a berrar tudo e mais alguma coisa, porque ele fechou mal, por isto e por aquilo. O tom era duro. Era quase sempre. Nunes parou tudo, olhou para trás e foi buscar todas as asneiras que tinha aprendido até àqueles tenros 14 anos. A voz, com jeitinho, ouvia-se em Buenos Aires. Kasper ficou a olhar para ele, parecia uma estátua, especado. Foram dez segundos de fúria no estado puro. Por um lado, se calhar, Kasper terá gostado de ser desafiado e lá virou as costas. Os outros riram-se, claro…
Nunca o apelido no BI o fez sujar menos os calções. Sim, tentava imitar o pai, no estilo, nas saídas à andebol, nas palmas que batia com as luvas, no refilar que nos deixava surpreendidos. De resto, do melhor e até nos levaria a sua casa no final do ano, onde conheceríamos uma espécie de templo sagrado
“Eh, pá, lembras-te daquela vez que o lateral esquerdo, o Tiago…”, assim arranca a conversa com Ricardo Santos, um canhoto de alto gabarito, que chegara do Sporting e que em idade sénior esteve perto de voltar ao Estoril, para jogar na Segunda Liga. Lembrámos o Tiago Nunes, claro, e deu gargalhada. “Mandou-o calar, irritado mesmo!”
Ricardo Santos, 29 anos, usou e abusou da palavra “competitivo” no nosso telefonema. E bem: Kasper não brincava como os outros. A língua era uma barreira, mas aquilo era mais sério para ele. “O gajo era muito bom. Além de ser alto já, tinha escola, era muito bom. Não brincava nos treinos. O que lembro mais dele era ser super-competitivo, a treinar e jogar. Não era só um miúdo que gostava de futebol, como nós que íamos só dar uns toques, éramos da zona e brincávamos. Ele queria mesmo ser bom. Talvez daí não ser tão social…”
Outra coisa que o Kasper não apreciava nada era chapéus, cuecas ou tentativas de o fazer sentar (algo que terá sido promovido por Figo, certamente). “Quando tentávamos um chapéu ou sentá-lo, sentia-se quase desrespeitado”, lembra o Ricardo Santos. O Bastos recorda o mesmo, com upgrade: “Odiava de morte quando eu lhe fazia chapéus, dizia-me sempre ‘shoot as a man’ (chuta como um homem). Lembro-me também que não entendia a nossa atitude quando fazíamos ou levávamos uma cueca, fazíamos uma festa e ele não percebia o que se passava”.
Desses tempos idos, tenho um treino na memória. Como avançado tinha mais duelos com os guarda-redes, por isso partilhámos muitos remates, golos e defesas. Houve um treino que me estava a correr particularmente bem, estava com a setinha para cima, até que chegou um jeep preto, imponente. Lá dentro vinha um loiro, gigante, que parecia ter demorado dez minutos a sair do carro. De certeza que o vimos em câmara lenta. Era Peter Schmeichel. Há um ano estava na TV a ganhar a Liga dos Campeões, ao lado de Beckham e companhia, e agora enchia a baliza do Sporting. Era o Peter Schmeichel, senhores. A ver o nosso treino, com as duas mãos no corrimão, a menos de dois metros da linha lateral daquele terrível pelado. Porra, era o Schmeichel. A partir desse momento, Kasper passou a ter três metros, cola nas luvas e molas nos pés. Foi incrível.
Mas a carreira de Kasper até esteve em perigo antes mesmo de começar (dramatizando). A culpa é de José Vicente, o pai do Vasco, o extremo direito rápido como uma lebre, que tinha sempre alguma coisa a dizer e tinha (tem) uma piada desgraçada. “Ele estava no paredão com a mãe e eu estava no barco do meu tio, e disse-lhe para se juntar. Fomos lá buscá-lo à Praia da Conceição, em Cascais. Ele tinha um bocado medo do mar. Lembro-me de ele estar na ponta do barco, a olhar para baixo. O meu pai disse-lhe ‘dá um mergulho, pá!’, mas ele disse que não — ‘não, não, está muito escuro'”, lembra Vasco.
“”E o Zé Vicente, sabes como é, chegou-se por trás e empurrou-o. Para não cair à água, agarrou-se às cordas do barco, caiu, mandou uma palhaça…”
E continua, entre pausas e gargalhadas características deste agora consultor imobiliário: “E o Zé Vicente, sabes como é, chegou-se por trás e empurrou-o. Para não cair à água, agarrou-se às cordas do barco, caiu, mandou uma palhaça…”, que é como quem diz uma senhora queda. “Estás a imaginá-lo, não é? O meu pai ia-lhe lixando a vida de futebolista, nunca mais me esqueço.”
O Vasco, hoje com 29 anos, era dos mais próximos de Kasper. Uma vez, com o Ricardo Nunes, um médio que tinha uma bazuca na canhota (atualmente joga no Pogon Szczecin da Polónia e é internacional pela África do Sul), foram até casa do jovem guarda-redes. “Tinha uma sala de música, era uma espécie de estúdio. Na garagem era só camisolas de tudo e mais alguma coisa. As paredes eram as camisolas e fotografias”, recorda. Seguiu-se a jogatana na Playstation e uma ida para o jardim, para dar toques e rematar numa pequena baliza que por lá andava. “Ele disse-me: ‘tenho as botas certas para ti’. O Kasper sabia que eu gostava do sete e do Beckham. E lá me emprestou as botas do Beckham. Não sei de quem eram as que emprestou ao Ricardo. As minhas eram 43 ou 44, até tive de pôr umas meias à frente para servir, foi uma cena incrível! Acho que até lhe faltava um piton.”
E como jogador, que tal era o Kasper? “Tinha um pontapé do caraças. Os nossos guarda-redes nunca passavam para lá da área”, diz, com o tom do costume, só para ser mauzinho. Mas é quase verdade: passar do meio-campo era uma batalha para muitos. “Cada vez que ele agarrava a bola, eu começava a correr. Ele gritava muito: ‘fuck you all!’. Mandava tudo para o c……. Era um gajo muito na dele. Até porque um ano ou dois depois o pai ia embora, e tu nunca te dás tanto como se fosses português ou morasses cá.” A conversa com Vasco começou por telefone e duas horas depois estávamos a almoçar num restaurante a dois minutos do estádio do Estoril. Foi o regabofe, com risadas e fotografias à mistura. Pegar em vários Desporto Jovem, a antiga publicação que tratava o futebol juvenil, dá um aperto…
Apesar daqueles momentos de falta de ar, Kasper era boa onda. “Era complicado porque vinha donde vinha, ter o pai que tem. Era introvertido. Quando tens aquele apelido, já esperas que as pessoas gostem de ti, por isso acho que foi distante, muito na dele. Mas sempre foi alguém simpático, sempre foi porreiríssimo. Era amigo, criámos uma relação de amizade. Era educado, não era um bicho-do-mato”, assegura o Vasco, que era Vasquinho, e que recebeu uma camisola do Sporting como presente de anos, em maio de 2001.
A época seria grandiosa, quase perfeita. A nossa equipa jogava bem, sempre para a frente e a uma senhora velocidade, e os rivais e pais faziam sempre um burburinho quando se apercebiam de quem era o guarda-redes canarinho. Venceríamos o campeonato, um ou outro torneio e apenas cairíamos no Torneio da Nike, no relvado do António Coimbra da Mota. Os mensageiros da desgraça voltaram a vestir de vermelho, com uma águia no peito. O golaço à futebol de praia que ditou o um-zero e a passagem do Benfica foi de Veludo, um avançado requintado.
Entre os canecos ganhos, está o Torneio de Benavente, que contava com Estoril, Benavente, Vitória de Setúbal e Celta de Vigo. Na meia-final, tivemos de suar e disputar os penáltis contra o Vitória de Zequinha e Ricardo (ex-guarda-redes do Sporting) — o penálti decisivo foi marcado por Carlos Manuel, ao ângulo; uma surpresa para todos, que temíamos o pior, por ele ter uma atitude muito “sobe equipa” e pimba para a frente (kick and rush?). Na outra meia-final, o Celta esmagou os rapazes da casa. Nas camaratas trocavam-se bocas e até lutas de almofadas, que seriam proibidas pela equipa técnica do Celta, depois de uns gritos e um dedo no ar.
O Kasper estava no quarto da gente calma, não era desses filmes. Entre as bocas, Duarte Bruschy, um central do Estoril, brincou com o avançado genial do Celta (Amadeo, julgo): “Me fazes un caño, te parto a pierna…”. Foi assim, num espanhol esquisito que o central tentou meter respeito ao avançado que já havia feito quatro ou cinco golos nas “meias”. Caño é cueca.
O jogo começou tremido para os que vestem à Brasil. Os espanhóis tinham menos um ano, alguns até dois. O médio centro capitão parecia o Guti a jogar, genial, deslizava no campo, tinha visão, era mágico. Devia pesar 20 quilos, usava aparelho nos dentes e tinha cabelo grande, a servir de moldura à cara. Deram-nos um chocolate. E começaram a ganhar, com um livre direto. O Kasper ficou a olhar. Isto passou-se uns meses depois de o Sabry fazer o mesmo a Peter, adiando a festa do título dos sportinguistas, que aconteceria em Vidal Pinheiro vs. Salgueiros. Por isso, lá se disse: “É à Schmeichel…”
Bom, o tal avançado foi de facto para o hospital. Não foi por causa de uma cueca, nem do Bruschy. Foi depois de um choque violento com… o Kasper. O espanhol seguia isolado e a bola estava a meio caminho de um e outro, o choque foi inevitável. O dinamarquês ficou impecável, era um muro. O rapaz do Celta foi com o pulso pendurado a correr para o banco.
“”O que me lembro é que ouvia o gajo o jogo todo. Estava sempre aos berros connosco! Não percebíamos nada do que ele dizia”
“O que me lembro é que ouvia o gajo o jogo todo. Estava sempre aos berros connosco! Não percebíamos nada do que ele dizia”, lembra ao telefone Bruschy, um defesa que estava sempre na palhaçada, era um terror — dois anos depois, no campeonato nacional, começou um treino com o barrete de pai natal na cabeça, levando o treinador à loucura. “O Kasper era mesmo bom. Não me lembro de dar frangos, sempre o achei grande guarda-redes. Já tinha tiques do pai. Nos treinos e tudo, empenhava-se naquilo. Verdade seja dita, não tinha muito que defender, dávamos grandes tareias. Bom, com um centralão destes à frente dele também…”, brinca. O único lance mais esquisito que me lembro nem foi culpa dele, mas deve ter deixado o Kasper louco: num atraso do outro central, Carlos Manuel, a bola saltou na altura do guarda-redes bater e acabou no fundo das redes. O Schmeichel olhou para o chão, para trás e nada disse. Nem os colegas. E foi buscar a bola. Afinal, era mais um dia nos pelados de Lisboa.
Acabaríamos por virar o resultado contra o Celta de Vigo (3-1), graças à pedalada e ao compromisso com a vitória, aquilo estava incutido, era forte. A malta jogava bem, mas a cultura espanhola era já outra loiça. Fizemos a festa, no lanche pós-torneio, e trocámos palavras com alguns espanhóis, assim como números de telefone. É que havia lá três que não enganavam — o “Guti”, o Amadeo e um central que parecia o Cannavaro a jogar. Ou a memória nos traiu, ou nenhum deles chegou ao topo.
“Weeeeee are the champions, my friends”
Falta a final do campeonato, o tal jogo que deu ao Kasper o primeiro campeonato da sua vida. Os finalistas, Estoril Praia e Odivelas, já haviam garantido a subida ao Campeonato Nacional de iniciados, mas faltava saber quem era o melhor. O jogo começou difícil e chegaria a zero ao intervalo. “Não teve muito trabalho, mas tem uma ou duas defesas incríveis, uma delas no ar, o gajo manda um grande voo!”, lembra o Ricardo Santos. O Pedro Silva assina por baixo: “Não tem muito trabalho, mas tem duas saídas muito boas. Faz uma mancha igual ao pai… Lembro-me também de ele reclamar”. Surprise, surprise.
“””Não teve muito trabalho, mas tem uma ou duas defesas incríveis, uma deles no ar, o gajo manda um grande voo!”
Aqui há outra lenda, pois claro. Estava zero-zero ao intervalo e a nossa equipa sempre brincou, até hoje, que as bebidas tinham levado aditivo — o senhor Bastos, o massagista e pai do João Bastos, fartava-se de rir com essa conversa. É que, no final, vencemos por 4-0 e fez-se a festa, cantando bem alto a música especial dos Queen, assim até o Kasper celebrava. Eu senti-me um pouco como o Vardy, por ter jogado a época inteira e ter estado de fora da partida mais importante do ano. Fica a memória da celebração eufórica a dois com o Kasper no primeiro golo, na linha de fundo. O caneco não ia escapar, já sabíamos.
Uns dias depois, em jeito de celebração e despedida do Kasper, ele convidou toda a equipa para ir até casa dele, em Cascais. Chovia, mas éramos garotos, queríamos desfrutar da piscina, do court de ténis, da Playstation e do jardim. Era tudo novidade. A cave era como um templo sagrado…
“Estava cheia de camisolas de toda a gente! A parede estava forrada a camisolas. Vi do Peruzzi, Buffon, Giggs e Scholes, por exemplo. Lembro-me também de ver a fotografia daquela defesa incrível [aquela que ficou todo esticadinho]. Fiquei maluco em casa dele, éramos putos, gostávamos de futebol”, conta o Ricardo Santos. Eu lembro-me apenas do mar de camisolas belíssimas da década de 90 penduradas na parede, mas especialmente de duas: a de Vítor Baía do Euro-96, com a braçadeira agrafada, e a de Nakata, no Parma.
https://www.youtube.com/watch?v=bzfConGQl8Y
E assim acabou a ligação ao Kasper. Até a uma certa tarde de 2007, quando estava em Siena à procura de uma pizzaria. Encontrei e olhei para a TV: estava a dar o dérbi de Manchester. A fome era negra, por isso nem dávamos muita atenção ao que se passava, até que vi uma forma de encaixar a bola diferente. Nunca, nunca esqueci a forma como o Kasper guardava a bola. Quando as bolas vinham à altura do peito, ele não usava as mãos, deixava bater no peito e abraçava a bola. Era preciso o timing perfeito. Era ele na TV, na baliza do City, clube onde o pai acabou a carreira. O Kasper acabaria essa época a defender a baliza do Coventry.
O dinamarquês assinou depois pelo Notts County em 2009, numa altura em que se dizia que o clube tinha muito dinheiro e apostava na subida. O projeto seduzira Sol Campbell e Sven-Goran Eriksson. Em 2010 seriam campeões, escapando assim ao quarto escalão do futebol inglês. Na temporada a seguir defendeu as cores do Leeds United, mas a glória chegaria no Leicester, em 2011. Demoraria apenas dois anos a ser campeão da segunda divisão.
As coisas saíram-lhe sempre do pelo, sem intervenções divinas. “O Jimmy Floyd Hasselbaink uma vez disse-me, quando eu estava emprestado no Cardiff, que as superstições são uma fraqueza. A partir desse dia fiz por não ter nenhuma.” Kasper tinha 21 anos, Jimmy, o ex-avançado do Campomaiorense e Boavista, tinha 36 e penduraria as botas no final dessa época (2007/2008).
Estamos em maio de 2016 e este rapaz que andou por cá um ano chegou ao topo do mundo. Não deixa de ser nostálgico lembrar todas as memórias acima relatadas, ver fotografias e traçar um pequeno perfil: andou por pelados terríveis e pedalou como poucos. Queria muito, mais do que os outros. Aos 14 anos era jogador de futebol. Tinha um nome para honrar e uma vida gloriosa por cumprir. É casado e tem dois filhos e não gosta nada quando desconfiam da sua maturidade. Começou no topo e desceu até à quarta divisão. Voltou a pedalar, voltou a defender mil e uma bolas e já sabe a que cheira a brisa do céu. Aí está ele, senhoras e senhores, Kasper Schmeichel, o campeão inglês.
https://www.youtube.com/watch?v=o7blpy-_wyc