Não é uma medida que tenha colhido o apoio das entidades que, a pedido do Governo, se debruçaram sobre o livro verde para a sustentabilidade do sistema previdencial da Segurança Social (o que paga as pensões). A comissão que elaborou o documento tinha proposto a introdução de uma contribuição sobre o valor acrescentando líquido (VAL) das empresas conjugada com a descida da taxa contributiva (TSU – taxa social única), atualmente de 23,75% para os empregadores e de 11% para os trabalhadores. Mas há resistência da parte das entidades, dúvidas de que melhore a sustentabilidade financeira e há quem a apelide de “contraditória” com os objetivos do estudo.
O atual Governo pediu a 13 entidades que se pronunciassem sobre o livro verde, elaborado por uma equipa de peritos a pedido do anterior Executivo. As conclusões finais foram conhecidas no verão e o Governo garante que não vai colocá-las na gaveta, tendo-se já comprometido com um debate sobre a diversificação das fontes de financiamento.
Segundo uma nota publicada no site da Secretaria-geral do Ministério do Trabalho, até ao dia 19 de dezembro foram recebidos pareceres de 10 das 13 entidades a quem foram solicitados. A tutela indicou ao Observador que o gabinete da ministra Rosário Palma Ramalho está “a consolidar os contributos recebidos e irá definir uma estratégia integrada que assegure a sustentabilidade do sistema previdencial e de todo o sistema de pensões da Segurança Social”. Mas não avança com prazos.
O programa do Governo já prevê essa discussão e a ministra Rosário Palma Ramalho deu, este mês, mais detalhes sobre o que pretende, ao revelar que o Governo está a avançar com um estudo que reavaliará a taxa social única suportada pelos empregadores e trabalhadores. Esse estudo, aliás, devia ser feito de cinco em cinco anos, segundo a lei, mas há 13 que não é feito. Essa foi, precisamente, uma das recomendações do livro verde, genericamente apoiada pelas entidades a quem o Executivo pediu o parecer.
Outras propostas são vistas com resistência, incluindo a que defende retirar o subsídio parental do sistema contributivo para o não contributivo.
Uma taxa sobre a riqueza gerada pelas empresas?
Um dos problemas no sistema da Segurança Social identificados pelos peritos é o que dizem ser a “dependência do financiamento” em relação à “taxação do fator trabalho“. Tal representa um risco para o sistema tendo em conta o provável estreitamento da base contributiva por via do envelhecimento da população e o desenvolvimento das novas tecnologias ligadas à automação e à digitalização. Os robôs e as máquinas, ao contrário dos trabalhadores, não pagam Segurança Social, mas os peritos não sugerem que sejam taxados — como há quem defenda, no polarizado debate que o tema tem suscitado nos últimos anos.
Sugerem, sim, substituir uma parte das receitas com a taxa contributiva a cargo dos patrões por receitas obtidas com uma contribuição sobre o valor acrescentado líquido (a riqueza gerada pelas empresas em termos líquidos), sendo as respetivas taxas calculadas de forma a atingir a “neutralidade fiscal” a curto prazo. Este VAL engloba, além da remuneração do trabalho, o valor agregado das diversas formas de remuneração do capital. “Em princípio”, esta nova contribuição apenas se aplicaria às sociedades que pagam IRC e haveria um limite ligado ao rácio do VAL sobre a massa salarial.
Antes de o modelo ser implementado, os peritos queriam que fosse feito um estudo com a simulação do impacto em empresas e setores e estimativas sobre os possíveis efeitos no emprego, investimento ou PIB. A implementação seria progressiva, ao longo de cinco anos.
Uma das entidades mais críticas deste modelo foi o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS) que calcula que “do ponto de vista das contas públicas o impacto seria sempre negativo porquanto há apenas um desvio da receita fiscal para afetar à Segurança Social e simultaneamente uma redução da TCG [taxa contributiva global]”. A receita para a Segurança Social “não aumentaria”, pelo contrário, “todas as empresas pagariam menos!”
“Em suma, o que temos é uma transferência fiscal (das empresas que pagam) — do IRC para a SS [Segurança Social]. Então, podemos concluir que há formas mais simples e mais transparentes de fazer este financiamento”, entende o parecer do conselho diretivo, que fala mesmo numa proposta “desvirtuadora do modelo existente” que “não contribui para a transparência no financiamento nem aumento da sustentabilidade financeira”, além de que seria uma “fonte de receita incerta para fazer face a despesa certa“.
Em alternativa, o IGFSS preferia a tributação mais agravada de produtos prejudiciais à saúde, tributação de transações financeiras, de atividades nocivas ao ambiente, taxas turísticas ou de natureza sucessória, taxas sobre o carbono ou sobre o transporte aéreo ou sobre comunicações no âmbito comercial/industrial da “internet das coisas”. “A proposta não se traduz na melhoria da sustentabilidade financeira do sistema previdencial”, concluem.
Os peritos, por outro lado, acreditam que com a medida se poderia atingir um “maior dinamismo do crescimento” das receitas contributivas “na medida em que passariam a evoluir a um ritmo mais próximo do PIB e menos dependente da massa salarial“. Mas admitiam como risco um “desincentivo ao investimento nos setores capital-intensivos de elevada produtividade”, o que poderia — segundo a proposta — ser mitigado com um limite máximo à base contributiva sobre a qual incidiria a nova taxa.
A Associação Portuguesa de Bancos (APB) defende, aliás, que a proposta “pode ser compreendida como uma penalização” de modelos de negócio mais produtivos ou como um desincentivo ao investimento. Também aponta a uma “dificuldade técnica” associada à definição do conceito de VAL para os setores em que se verifique a necessidade de regras próprias para determinar a matéria coletável (como é o caso da banca, seguros ou microempresas). Esta dificuldade é reconhecida pelos peritos.
“Um eventual incremento de encargos (mesmo que com um limite da base contributiva) tornar-se-ia particularmente difícil de justificar quando politicamente se defende a necessidade da redução da taxa do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC), exatamente com o objetivo de aumentar a competitividade da economia portuguesa”, argumenta ainda a APB.
Quem também lança críticas é a CGTP mas não sobre a contribuição sobre o VAL em si, que apoia, mas sim ao facto de a taxa ser compensada com uma substituição parcial da TSU (aliás, o PCP propôs para o Orçamento do Estado de 2025 a criação de uma taxa a aplicar sobre o VAL das entidades empregadoras).
“(…) A nova contribuição deve acrescer à atual contribuição patronal e não substituí-la, total ou parcialmente“, defende a central sindical. “Se a nova contribuição a criar tiver carácter substitutivo, na realidade não se verifica um alargamento das fontes de financiamento e, portanto, está gorada a intenção de reforçar a sustentabilidade financeira do sistema”, acrescenta. Fala mesmo numa “contradição” do livro verde que “nasce sobretudo do facto de (…) o objetivo fundamental da criação desta contribuição não ser o alargamento das receitas do sistema previdencial, mas sim a redução das alegadamente excessivas contribuições sociais sobre o trabalho”. “Ora, como é evidente, estes dois objetivos são objetivamente inconciliáveis.”
Também a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) veta a proposta, considerando que “não está minimamente fundamentada nos seus impactos macroeconómicos e sociais e não encontra paralelo na experiência internacional dos principais países da OCDE”. Para a CAP — a única confederação patronal com parecer publicado — significa “um rompimento com os princípios da contributividade e da solidariedade profissional, adequação seletiva das fontes de financiamento na obtenção de receitas para o sistema, acentuando o financiamento por via fiscal”. Também admite efeitos “perniciosos” no investimento das empresas na inovação e na melhoria da produtividade ou mesmo a “transferência das indústrias mais avançadas para outros países”.
Mais: aumenta a “regressividade do sistema fiscal” e pode “contribuir para um incremento do nível de preços da economia e, por essa via, redução do poder de compra das prestações sociais e impactar negativamente a pobreza”.
Tirar subsídio parental do sistema contributivo? CGTP diz que pode prejudicar pais
Outra das propostas que não é bem acolhida pelas entidades que sobre ela se debruçaram é a que admite retirar os subsídios parentais do sistema contributivo para os colocar no sistema de solidariedade, deixando de estar ligado ao passado contributivo dos progenitores. Os peritos propõem um estudo desta possibilidade no âmbito da avaliação atuarial sobre o sistema que a lei dita que tem de ser feita de cinco em cinco anos, mas que não tem sido cumprida.
Esse estudo é apoiado pela generalidade das entidades que se pronunciaram e deve, portanto, analisar as componentes consideradas na determinação da taxa contributiva global, com vista à sua revisão. Foi este trabalho que o Governo já se propôs a fazer. Mas os peritos sugerem, em específico, que além do cálculo das taxas desagregadas por eventualidades, se estude a possibilidade de mudar o atual elenco de eventualidades cobertas pelo sistema previdencial, “considerando por um lado a inclusão de novos riscos sociais como a dependência e por outro a transferência para o sistema não contributivo das prestações associadas à parentalidade, em reconhecimento do seu papel enquanto incentivo à natalidade“. E é aqui que surgem divergências.
A CGTP concorda com a análise atuarial da TSU, mas dá um redondo “não” a retirar a parentalidade do sistema contributivo para o sistema de solidariedade, alegando que tal significaria uma descida do valor das prestações que os pais recebem de subsídio parental.
A argumentação da central sindical é que a proteção nos regimes de solidariedade, não contributivos, é “menos favorável porque sujeita a regras distintas”, isto é, normalmente estão sujeitas a condição de recursos e são ligadas ao Indexante de Apoios Sociais (IAS). “(…) A transferência da cobertura de uma eventualidade como a parentalidade para o sistema de solidariedade (…) implicará em princípio uma descida do valor das prestações, que deixariam de estar ligadas ao valor da remuneração do trabalhador, para passarem a estar indexadas ao IAS, como aliás hoje já sucede com os subsídios sociais de parentalidade (que se destinam a proteger nesta eventualidade os cidadãos que não estão cobertos pelo sistema previdencial, porque não trabalham ou não têm carreira contributiva suficiente)”, sublinham.
O IGFSS também concorda com a revisão das componentes que formam a taxa contributiva global, mas também dá nega à questão dos subsídios parentais. “Retirar a parentalidade do âmbito material de proteção do sistema previdencial não nos parece correto (…) Não acompanhamos a proposta”, lê-se no parecer. Isto porque o facto de estar incluída no sistema contributivo é “incentivadora da formalização do vínculo laboral com inscrição no sistema previdencial”. “Esta é uma prestação que torna a SS [Segurança Social] num sistema de repartição e também de proteção imediata para quem está a contribuir. Isto é importante para a relação do sistema com o trabalhador e para a geração de confiança”, acrescentam.
IVA a alimentar planos poupança reforma? Há quem veja potencial
Os peritos recomendaram ao Governo que um ponto percentual do IVA de cada fatura registada com NIF fosse canalizado para certificados de reforma do regime público de capitalização ou um instrumento privado de capitalização com um regime equivalente, a criar. Só na idade da reforma se poderia aceder ao montante e seria definido um limite máximo de benefício. O objetivo é melhorar o valor da reforma a receber no futuro.
A ideia agrada a muitos, mas não é consensual, havendo quem veja potencial mas também quem a descarte. O IGFSS está no primeiro grupo: “esta proposta parece-nos interessante“, desde logo por ser transversal a toda a população, logo, pode beneficiar todos, além de que “tem potencial para combater a evasão fiscal, fomentar verdadeiramente a poupança para a reforma e combater a pobreza nos idosos”. Mas alerta que seriam necessários mecanismos de regulação efetiva das regras de gestão e de fixação de comissões de adesão, gestão, resgate, por exemplo, com a fixação de um montante máximo.
Também a Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Património (APFIPP) deixa elogios: é “interessante e inovadora“, com uma “dimensão pedagógica” e sugere mecanismos para consignar contribuições adicionais individuais ou mesmo das empresas. Mas discorda que “o instrumento privado de capitalização tenha de ter um regime equivalente ao que hoje se verifica” no regime de capitalização pública. E defende que eventualidades como desemprego de longa duração, doença grave ou incapacidade permanente para o trabalho não seja impeditivo de resgate antecipado, ao contrário do que acontece com os certificados de reforma. A Associação Portuguesa de Bancos (APB) também vê vantagens na proposta, assim como a Associação Portuguesa de Seguradores (APS).
Quem diverge é a CGTP, para quem não é “aceitável obrigar as pessoas a poupar para determinado esquema de pensões” além do que já existe. Além disso, considera “completamente desnecessário criar, para este efeito, um instrumento privado de capitalização idêntico ao instrumento público que já existe e que funcione em alternativa a este”. Fala mesmo numa “pura cedência aos interesses privados”.
Para os contributos participaram também o Tribunal de Contas e o Conselho de Finanças Públicas (CFP), que não fazem uma avaliação exaustiva de cada recomendação. No primeiro caso, faz-se uma avaliação geral e, no segundo, apenas se avaliam as propostas diretamente relacionadas com a entidade, que deixa algumas críticas.
Por exemplo, uma das propostas dos peritos incumbia o CFP de realizar, a cada cinco anos, um estudo de natureza atuarial da sustentabilidade financeira dos sistemas contributivos, mas a entidade liderada por Nazaré Costa Cabral entende que a abordagem metodológica do estudo “deve ser determinada pelo próprio CFP, não devendo a recomendação impor à partida o tipo de abordagem metodológica do estudo, isto é, que este tenha de ser necessariamente de natureza atuarial”.