O Observador publica esta semana uma série de seis reportagens feitas na Suécia, o país que desafiou o confinamento contra a Covid-19. A estratégia, que uns consideram um milagre e outros um desastre; os hospitais, agora com maiores dificuldades; o impacto na economia e os erros que o explicam; o dia a dia de um infetado, com testes em casa e nenhuma punição se violar as regras; o escândalo nos lares de idosos; e Anders Tegnell, o epidemiologista que recebe flores e ameaças de morte. Esta é a 1.ª parte.
Anders Gabrielsson sorri de alívio quando vê que trazemos as caras cobertas e convida-nos a entrar para a casa de três pisos onde mora com a mulher, em Bromma, um subúrbio abastado de Estocolmo. Não é porque as máscaras não são obrigatórias — ou sequer recomendadas pelo Governo e pelas autoridades de saúde da Suécia, de que é admirador confesso — que deixam de fazer sentido, a regra é para manter o distanciamento social. Se isso não é possível, explica, então as máscaras são mais do que bem-vindas. “Sinto-me mais seguro assim.”
Tem 72 anos e está reformado há nove da grande empresa de que foi diretor financeiro. Desde então, passa os dias a pintar, com intervalos regulares para ir buscar os seis netos à escola. Com a pandemia, essa rotina não mudou: “Continuo a ir buscar os meus netos e vou a lojas e a restaurantes com a minha mulher, mas não socializamos com pessoas fora da nossa bolha familiar. O problema é que somos muitos, temos cinco filhos, o mais novo tem 24 e a mais velha 41”, explica, minutos depois de Ingela, a mulher, aparecer na sala que lhe serve de atelier para dizer “hej”.
Uma das responsáveis pela comunicação do banco Nordea, com sede em Helsínquia, Ingela Gabrielsson está em teletrabalho desde março — apesar de não ser obrigatório na Suécia, há desde o início da pandemia recomendações expressas do governo para que quem possa fazê-lo trabalhe a partir de casa.
E grande parte dos suecos tem efetivamente trabalhado à distância, como comprovam os dados da Google relativos à mobilidade da população — a meio de abril, a permanência nos locais de trabalho na Suécia caiu 46% na comparação com as primeiras cinco semanas de 2020; no final de novembro, esse valor estacionou nos 22%.
Basta olhar para os gráficos para perceber: desde que foi registado o primeiro caso de coronavírus no país, no início de fevereiro, os dados da mobilidade nacional caíram em todos os locais (lojas, restaurantes, transportes públicos, supermercados e até farmácias), menos nos parques e jardins públicos, onde, a meio de julho, a afluência bateu recordes e chegou aos 313%.
Isto sem que tenha sido declarado qualquer confinamento formal — a Suécia é, aliás, o único país da União Europeia que ainda não fechou desde o início da pandemia nem tornou obrigatório o uso de máscaras em locais fechados. O que não significa que seja nem a terra prometida que os negacionistas da Covid-19 apregoam; nem o país kamikaze que, em vez de aplicar medidas de restrição, apostou as fichas todas numa imunidade de grupo que acabou por não se concretizar e fez com que a estratégia do governo de centro-esquerda de Stefan Löfven fosse, parafraseando a imprensa internacional, do milagre ao desastre no espaço de poucas semanas no outono. A realidade é um pouco mais complexa do que isso.
Mas outra coisa não seria de se esperar de um país onde já quase ninguém aceita notas nem moedas, apenas cartões ou pagamentos por telemóvel; onde é normal almoçar às 11h30 e jantar às 17h; onde as bebidas alcoólicas só podem comprar-se em lojas especiais do Estado, que ao domingo estão fechadas; e onde os cidadãos não gostam que lhes imponham ordens, mas têm tendência a cumprir criteriosamente as recomendações que lhes são feitas.
Restrições dispensam-se, mas os conselhos são seguidos à risca: “O que é que os vizinhos iam dizer?!”
“Não é verdade que não tenhamos tido medidas, tivemos muitas restrições — a grande diferença é que foram conselhos, foram muitos, muitos conselhos”, explica Anders Gabrielsson, como se o silogismo fosse óbvio. “A lei sueca não permite proibir simplesmente, por isso, na Páscoa e em toda a primavera, foi-nos recomendado que não viajássemos, e a maior parte do povo sueco não viajou; até porque, se o fizesse, ficava a sentir-se pessimamente. Temos uma casa de verão na costa oeste, o que é que os vizinhos iam dizer se viajássemos de Estocolmo?! Tínhamos a pior taxa de infeções, não podíamos ir para sítios onde não havia infeções, não era possível”, garante, para a seguir mostrar a série de quadros que, preso na capital sueca, foi pintando sobre a pandemia. Estão todos à venda, em forma de impressões gráficas, bases para copos, tabuleiros, postais e calendários, através da sua loja online. No sótão, faz questão de mostrar também, o que não lhe falta é stock para despachar, tanto desta coleção Covid-19 como da sua série “líderes mundiais”.
Depois de discorrer sobre o best-seller do momento, um retrato do seu homónimo Anders Tegnell, epidemiologista-chefe do país, cara da estratégia sueca para o combate à Covid-19 e uma espécie de novo herói nacional — pelo menos para a maioria que se orgulha dela —, o artista detém-se noutra imagem, de cores mais garridas.
“A este chamei ‘Páscoa 2020’”, diz, enquanto aponta para o desenho de uma família à mesa, os copos em brinde na direção de um ecrã partido em dois. “Foi a primeira vez que tivemos de nos encontrar com os nossos familiares na Internet, é um quadro que mostra como as pessoas se juntaram nos computadores.”
A descrição, tão familiar para quem vem de um país confinado durante dois meses e atualmente em modo de recolher obrigatório, com restrições mais apertadas nos concelhos de maior risco, não tem de ser desconcertante: mais do que semântica, é uma questão cultural, já tinha explicado ao Observador o investigador português Filipe Pereira, desde 2017 na Universidade de Lund, no sudoeste da Suécia e a menos de uma hora de comboio de Copenhaga.
“Senti que as pessoas eram muito conscienciosas da situação que estávamos a viver e que não existia aquele sentimento de que na Suécia se podia fazer tudo — nunca foi assim. Na comparação com a sociedade portuguesa é um pouco difícil de compreender, todos os níveis da sociedade sueca funcionam na transferência da responsabilidade para o indivíduo”, contextualizou o professor, a trabalhar na área da investigação em células estaminais e imunoterapia.
“A distância social, o não estar com os pais, caso fossem grupo de risco, o não ir a espaços a não ser que fosse mesmo necessário… Estive em Portugal duas vezes no verão e a ideia com que fiquei é que cumpriam mais aqui na Suécia do que lá. Em julho estive no Algarve, em Vilamoura, e não achei que houvesse mais restrições do que na Suécia. E em setembro fui para o aniversário do meu filho, que vive em Portugal, e o restaurante onde fomos jantar estava completamente cheio”, compara o investigador, que, apesar de nunca ter deixado de ir para o laboratório, tem de manter a distância de 2 metros para os colegas e já só dá de forma presencial as aulas práticas. Tudo o resto, incluindo reuniões e defesas públicas de estudantes de doutoramento, passou a ser feito à distância, via Zoom.
“Daqui a uns anos vamos fazer uma retrospetiva do que aconteceu e do que funciona, ou não, numa pandemia, e a Suécia, como teve um sistema bastante diferente, vai servir como comparação. Neste momento, os casos estão a aumentar aqui, mas nos outros países, que tiveram lockdowns e restrições de voos, também, portanto é difícil saber exatamente o que controla a expansão do vírus”, conclui o português, que, apesar de ser defensor da obrigatoriedade da máscara nos transportes públicos, nas raras vezes que os utiliza, confessa, escolhe andar de cara destapada, à sueca. “Acho que não quero ser o único a usar máscara num comboio cheio de gente. Também tem esse efeito nas pessoas… Claro que podemos usar a máscara, ninguém nos impede, mas as pessoas ficam a olhar: ‘Será que tem Covid?’.”
A Suécia não se pode comparar com Portugal, mas com a Finlândia sim (e não é bom)
Desde o início, a pandemia na Suécia tem sido gerida em conjunto pela Agência Nacional de Saúde Pública (a Folkhälsomyndigheten), cujo diretor-geral, Johan Carlson, se tem mantido na sombra do epidemiologista Anders Tegnell; e pelo governo liderado pelo primeiro-ministro Stefan Löfven, do Partido Operário Social Democrata.
Se foi Löfven quem avisou, logo no início de abril, que a convivência com o vírus não se afigurava fácil — “Vamos ter de contar os mortos em milhares”, foi a expressão utilizada, em entrevista ao Dagens Nyheter —, Tegnell foi quem se notabilizou por anunciar a maior parte das medidas (ou conselhos) de combate ao vírus. Em troca, viu o seu rosto tatuado nos braços dos fãs mais inveterados e recebeu ameaças de morte por parte dos detratores, invariavelmente ligados à direita mais radical — ao contrário do que acontece no resto do mundo, naquele país esta é a fação política que mais restrições quer impor no combate à Covid-19.
Com os seus 10 milhões de habitantes e uma política de não confinamento, a Suécia já teve mais de 320 mil casos confirmados desde o início da pandemia e 7.514 pessoas morreram, 90% delas com idades acima dos 70 anos. Neste momento, a taxa de infeção por cada 100 mil habitantes é de 766,9 e há 261 pessoas internadas em unidades de cuidados intensivos por problemas associados à Covid-19, num total de 550 ocupadas, com doentes com outras patologias. Isso faz com que a capacidade dos hospitais do país, em UCI, esteja a 88%, situação que é ainda mais grave em Estocolmo onde, na passada quinta-feira, 99% das 160 camas existentes já estavam ocupadas. A situação é de tal forma grave que a Finlândia e a Noruega, que têm números muito mais reduzidos, já ofereceram assistência médica aos vizinhos.
Portugal, com os mesmos 10 milhões de habitantes, mas com três vezes menos espaço, um confinamento rigoroso e várias medidas de recolher obrigatório e de não circulação entre concelhos, já registou 348.744 infeções e 5.559 óbitos, tem 513 pacientes em UCI e uma taxa de 528 infeções por cada 100 mil habitantes.
As realidades, defende o finlandês Ville Pimenoff, geneticista especializado em evolução viral, investigador e professor no Instituto Karolinska, em Estocolmo, e membro da equipa que está a aconselhar o governo de Helsínquia com informação científica para a resposta à pandemia, não podem ser comparadas.
“Na Suécia, em comparação com o sul da Europa, o modo de vida é um pouco diferente; as várias gerações da mesma família têm uma distância natural, porque vivem em casas diferentes; e a forma como as famílias se relacionam ou como as pessoas encaram as regras ou as indicações que lhes são dadas também é diferente. Depois também há a questão da densidade populacional, que fez com que, na Suécia, fora das grandes cidades, os números de Covid tenham sido muito baixos até muito recentemente”, começa por explicar. “Estocolmo foi o epicentro do surto, é uma cidade internacional, não havia restrições muito severas nem existiu confinamento, portanto o contágio local pôde expandir-se lentamente. Um dos resultados disso é o que estamos a experienciar neste momento, a epidemia continuou, a um ritmo lento, e, ao mesmo tempo, espalhou-se para o resto da Suécia.”
Uma coisa diferente já será pôr a Suécia ao lado dos vizinhos escandinavos, admite o especialista, nomeadamente da Finlândia, que tem hábitos sociais semelhantes e que, com metade da população, também está a passar por uma segunda vaga — mas tem 10 vezes menos casos e pouco mais de 400 mortes no total. “O centro de Helsínquia esteve fechado no início da pandemia e durante a primavera, o que foi uma medida bastante ousada do governo na altura, mas que abrandou o contágio na Finlândia antes do início do verão”, explica Ville Pimenoff.
Agora, enquanto a Suécia se mantém aberta em plena segunda vaga, os vizinhos finlandeses voltaram a restringir o funcionamento de bares, restaurantes e bibliotecas e cancelaram todas as atividades de tempos livres para adultos e adolescentes.
Apesar de tudo, para o especialista, ainda é cedo para tirar conclusões sobre que governo vai, no final, ganhar o derby nórdico da pandemia, que, avisa, não vai acabar com o advento da vacina: “Na Finlândia houve medidas muito restritivas desde o início e, se olharmos apenas para os números de infeções ou de mortes, são muito mais baixos. Mas, por outro lado, há quem tenha criticado esta abordagem, com o argumento de que fechar uma sociedade inteira não significa que se vai ultrapassar a pandemia, porque quando um surto viral chega a um nível pandémico não há forma de nos escondermos do vírus. Para se fazer uma comparação justificada é preciso mais algum tempo, talvez no fim do próximo ano possamos ter uma imagem mais completa das diferenças entre a Finlândia e a Suécia”, diz, cauteloso.
Por muito que a Finlândia esteja indiscutivelmente a fazer um melhor trabalho na proteção dos idosos e dos grupos de risco, acrescenta, também é verdade que o facto de estar “no canto superior da Europa” e de não ter tanto turismo nem imigração fazem com que o país esteja menos exposto à circulação do vírus. “Estocolmo é muito internacional, tem muitas comunidades de diferentes etnias, que também se movimentam — aliás, alguns dos surtos em Estocolmo aconteceram em comunidades de imigrantes, que na Finlândia existem em menor número”.
As críticas dos 22 e o otimismo de Anders Tegnell: “Na primavera fomos bastante bem sucedidos”
Mesmo quando os números de infetados e mortes dispararam — a meio de junho já tinham morrido quase 5 mil pessoas com Covid-19 no país —, a Folkhälsomyndigheten manteve a confiança na estratégia e, rejeitando confinamentos, imposições sobre o uso de máscaras ou fecho de fronteiras (para já, só as viagens para a Suécia, de países fora da União Europeia, é que estão interditas), insistiu na ideia do distanciamento social e da proteção dos idosos e doentes de risco, apelando aos suecos para que, sempre que possível, trabalhassem a partir de casa e evitassem transportes públicos, lojas, restaurantes e centros comerciais.
Apesar de, na primavera, os liceus e as universidades terem colocado todos os alunos em aulas à distância; de os restaurantes e bares terem recebido ordens para só servirem clientes sentados; e de as discotecas terem estado até outubro proibidas de abrir as pistas de dança (que, entretanto, já tiveram de voltar a fechar), as restrições impostas aos suecos foram consideradas leves pelo resto da Europa confinada.
E não só, diz Lena Einhorn, virologista, há décadas a trabalhar como escritora e realizadora de cinema, que faz parte do famoso grupo de 22 cientistas suecos que, logo a meio de abril, escreveram um manifesto a exigir medidas mais estritas de controlo da pandemia. “O nosso artigo conjunto foi publicado a 14 de abril e, nessa altura, pedimos ao governo que interviesse. E o governo respondeu-nos dizendo que tinha 100% de confiança na Agência de Saúde Pública, ou seja, rejeitaram o nosso pedido e, até há cerca de uma semana, não tomaram medidas independentes. Só aí é que começámos a ver algumas mudanças”, diz a especialista ao Observador, na sala da sua casa em Estocolmo, à distância segura de uma conversa via Skype.
No último mês e meio, depois de a segunda vaga ter começado a fazer-se sentir também na Suécia, com algum atraso relativamente ao resto da Europa e expondo o falhanço da estratégia que previra que no outono a população já estaria imune ao novo coronavírus, as autoridades viram-se obrigadas a tomar novas medidas.
“A festa acabou!”, disse mesmo, de forma dramática, no final de outubro, o primeiro-ministro, que, menos de duas semanas depois, anunciaria ao país que tinha estado em contacto com um infetado e ia entrar em isolamento profilático. “Estamos a ir na direção errada a grande velocidade. Há mais infetados. Há mais mortos. A situação é grave”, repetiu depois, de forma ainda mais enfática, a 11 de novembro, no dia em que anunciou novas restrições — já não apenas conselhos — para daí a uma dezena de dias.
Na manhã seguinte, conta ao Observador o empregado de um restaurante de comida rápida em Vasastan, perto da Biblioteca Municipal de Estocolmo, que continua a funcionar mas com acrílicos a proteger os funcionários e menos lugares na sala de leitura, tudo mudou. “O primeiro-ministro falou ao país, disse que a situação estava pior do que nunca e que as pessoas deviam ficar em casa. No dia seguinte, não se via ninguém nas ruas”, recorda, dando, sem se aperceber, mais um exemplo de como o povo sueco tende a responder em situação de crise. “Foi da noite para o dia, muitos restaurantes que serviam almoços fecharam, porque não há ninguém a trabalhar nas empresas, as pessoas estão todas em teletrabalho. Nós costumávamos abrir às 11h, para o almoço, mas agora só vimos às 14h, para servir jantares, e às 22h30 temos de fechar.”
Desde sábado, 21 de novembro, está proibida a venda de bebidas alcoólicas em restaurantes, bares e discotecas após as 22h. No máximo, todos os estabelecimentos com licença para vender álcool têm de fechar meia hora depois. Três dias mais tarde foram proibidos todos os ajuntamentos públicos com mais de 8 pessoas — limite extensível aos ocupantes de mesas em restaurantes; e aos espetadores de cinemas, teatros, concertos e eventos desportivos, bem como aos participantes em eventos religiosos, o que na prática fez com muitos destes locais fechassem e que os eventos já planeados fossem cancelados. Algumas lojas impuseram também este limite ao número de clientes permitidos em simultâneo, deu para perceber através dos avisos colocados nesse mesmo dia em algumas montras da zona histórica de Gamla Stan, no centro de Estocolmo. Só mesmo os funerais é que podem continuar a acontecer com mais pessoas, não muitas: 20 é agora o limite.
“Por um lado, eles dizem-nos que só devemos socializar dentro do nosso núcleo familiar próximo, com as pessoas que vivem na mesma casa; ou, no limite, aconselham as pessoas que vivem sozinhas a arranjar uma bolha, pequena, de pessoas com quem socializar. Dizem-nos: ‘Evitem as lojas, a não ser que seja para comprar comida ou medicamentos’. Mas depois, por outro lado, todas as lojas estão abertas, todos os restaurantes estão abertos, todos os ginásios estão abertos, todos os centros comerciais estão abertos, todas as escolas estão abertas… E não há restrições sobre o número de pessoas que podem estar lá dentro ao mesmo tempo”, critica a virologista Lena Einhorn, que tem 66 anos e tem cumprido à risca a regra da bolha social.
Na sua opinião, as novas medidas não são suficientes: é preciso que os liceus voltem a ser encerrados, que se expandam as quarentenas e, mais importante ainda, que o uso de máscaras seja tornado obrigatório em espaços fechados, disse ao Observador, dias antes de as autoridades lhe darem parcialmente razão e anunciarem o encerramento das escolas secundárias, a duas semanas do fim do semestre e pelo menos até ao início de janeiro, e a recomendação para que as crianças com menos de 12 anos passem também a ficar em casa, quando há alguém infetado na família.
“A Agência de Saúde Pública continua a dizer que as provas científicas de que as máscaras resultem são muito fracas. E, neste momento, a Suécia está sozinha no mundo a rejeitar as máscaras, só a Gronelândia, algumas ilhas do Pacífico ou territórios devastados pela guerra no Médio Oriente é que ainda não usam máscaras. A Suécia está mesmo isolada e o governo não vai contra isto. Estamos à espera que alguma coisa aconteça, com estes números que não param de aumentar — a curva da Suécia está pior do que a dos Estados Unidos neste momento. Todos os países europeus que tiveram níveis de infeção mais elevados já começaram a descer, está a acontecer na Bélgica, em França, mas a Suécia continua a subir”, lamenta a especialista.
“Está a tornar-se um assunto cada vez mais e mais e mais premente, as pessoas estão a falar cada vez mais sobre a questão das máscaras e agora o Mark Ryan, da OMS, até disse diretamente à Suécia que não faz mal mudar de ideias, não é errado”, acrescenta Lena Einhorn, para a seguir desvalorizar as declarações recentes do primeiro-ministro Stefan Löfven, que deixou a utilização de máscara ao critério individual. “As pessoas que são contra as máscaras dizem sempre isso: ‘Ninguém te impede de usar máscara’. O problema é que as máscaras são mais eficazes quando alguém infetado as usa. Toda a gente tem de usar.”
Questionado pelo Observador sobre a eficácia da estratégia sueca, o epidemiologista-chefe Anders Tegnell respondeu dizendo que o país não está a comportar-se de forma diferente dos restantes países europeus, no que diz respeito aos números de novas infeções na primeira vaga e agora na segunda, “apesar das diferentes políticas e medidas implementadas”. “Estamos a tentar lidar com este novo aumento da mesma maneira que lidámos com os casos na primavera, que foi, na verdade, bastante bem sucedida, e esperamos — acreditamos — que, com as medidas que temos atualmente, vamos conseguir também refrear este aumento”, disse ainda, numa breve entrevista mantida via Zoom a partir da sede da Folkhälsomyndighete, justamente a 24 de novembro, o dia em que as novas restrições nacionais entraram em vigor.
“Tentamos adaptar as nossas políticas de forma a que sejam o mais eficazes possível, discutimos as máscaras na semana passada e as regiões continuam a concordar connosco e não veem de que forma é que o seu uso possa melhorar a situação nesta fase”, continuou a explicar o epidemiologista estatal sueco, garantindo que nem o uso de máscaras nem a imposição de confinamentos são linhas vermelhas que as autoridades não tencionam cruzar. “A maior parte do contágio a que assistimos ocorre em casas e festas privadas e as máscaras são muito difíceis de aplicar nestas circunstâncias. Relativamente ao confinamento total, fizemos uma espécie de confinamento virtual esta primavera, que teve o mesmo efeito que confinamentos mais formais em outros países”, foi como rematou a questão, referindo-se ao comportamento de grande parte dos suecos que, de forma voluntária e obedecendo às recomendações para ficar em casa e reduzir ao máximo os contactos sociais, acabaram também por confinar.
Ainda o debate sobre as máscaras e a empresária solitária que trocou as roupas todas por elas
Ao contrário do que acontece neste momento em praticamente todos os cantos do mundo, na Suécia é muito raro ver-se alguém com máscara, sobretudo fora dos transportes públicos. Como a sua homóloga Graça Freitas defendia em Portugal nos primeiros meses da pandemia, Anders Tegnell continua a dizer que podem “dar uma sensação de falsa segurança”.
Apesar de a imprensa sueca garantir que a situação começa finalmente a mudar — Pär Svärdson, o CEO da Apotea, a maior farmácia online da Suécia, disse há cerca de duas semanas à agência de notícias TT que a venda de máscaras cirúrgicas disparou, passando de uma média de 90 mil por semana para 700 mil —, a verdade é que, nas caras de quem passa, a mudança não é visível. E apesar de a TT avançar que a procura está a fazer esgotar os stocks das farmácias suecas, tanto na Internet como com porta aberta ao público, sobretudo na área da Grande Estocolmo, o Observador não teve dificuldade em encontrar máscaras cirúrgicas à venda na primeira farmácia em que entrou, na Nordiska Kompaniet, a grande department store do centro de Estocolmo: 259 coroas suecas (cerca de 25,5 euros) cada caixa de 30.
Tendo em conta o panorama, a loja de Jenny Ohlsson, na Götgatan, em tempos normais uma das avenidas mais turísticas e movimentadas de Södermalm, o bairro trendy de Estocolmo, onde vivia a Lisbeth Salander de Stieg Larsson, surge como uma espécie de aberração. Desde há uma semana, só vende máscaras sociais, de pano, numa cidade onde aparentemente quase ninguém quer usá-las. “Resolvi tirar as roupas todas, nesta altura ninguém quer comprar roupas alegres, portanto guardei-as e agora só tenho máscaras”, explica ao Observador, minutos depois de abrir a loja, curiosamente com a cara descoberta.
Depois de, em março, ter fechado a Fröken Söt — “Até meio de abril, isto parecia uma cidade-fantasma, não tivemos um confinamento formal, mas as pessoas foram todas trabalhar para casa, e a maior parte das lojas da zona fecharam” —, no final de abril Jenny Ohlsson resolveu reabrir e pôr à venda 200 máscaras, que mandou fazer na Tailândia, às costureiras que já lhe asseguravam o resto da confeção.
“As pessoas ficaram loucas, tive de encomendar mais e mais e mais. Agora resolvi fazer all in, como se percebe”, explica, enquanto aponta para os mostruários, do chão ao teto, com inúmeros padrões e cores e modelos a condizer para mães e filhas; cada uma custa 150 coroas, cerca de 14,60 euros. “Acho que deviam ser obrigatórias nas lojas e nos transportes. É verdade que não vemos muitas pessoas a usá-las, mas eu tenho muitas clientes. Talvez sejam mais cuidadosas, talvez estejam mais em casa”, acaba por reconhecer.
Para além dos conselhos e das restrições impostas nacionalmente, as 21 regiões da Suécia, que têm autonomia na gestão da Saúde, têm implementado as suas próprias medidas. Algumas empresas também. Na cadeia de ginásios SATS, por exemplo, é obrigatório deixar os sapatos à porta e o número de utentes em simultâneo passou a ser limitado — apesar de nos terem garantido mais do que uma vez que às sextas-feiras à tarde há sempre filas para entrar nos Systembolaget, os tais supermercados de álcool, durante uma semana na Suécia os únicos estabelecimentos onde vimos pessoas à porta, à espera, foram ginásios.
De resto, e por muito que metros, autocarros e elétricos circulem geralmente com bem menos de metade da capacidade; e que, de segunda a sexta, às 16h30, hora de saída do trabalho, as filas de bicicletas em Estocolmo sejam impressionantes; as enchentes nos bares e restaurantes à sexta e sábado à noite mostram claramente que, pelo menos para determinada franja da sociedade, os conselhos não bastam para conter a pandemia.
Os bares estão fechados e a “Polis” está por todo o lado? Fazem-se festas em hotéis
“Até agora ainda não houve mudanças muito drásticas nos comportamentos, especialmente entre os jovens”, avalia o investigador Ville Pimenoff. “O verão foi muito calmo, e acho que muita gente ficou com a ilusão de que a pandemia estava mais ou menos acabada — e também foi por isso que se falou tanto no ‘modelo sueco’. Apesar de ter havido algumas restrições no início, a ideia foi manter a sociedade mais ou menos aberta, e pude testemunhar que especialmente os mais jovens não se preocupam com a situação. Vi os comportamentos durante o verão aqui na cidade, e depois no outono, quando as universidades começaram, e parece-me óbvio que houve muitos conselhos, mas que a vida continuou como na primavera passada.”
A passear com o pai pela deserta Stortorget, a praça mais antiga de Estocolmo, na zona histórica, onde todos os anos (mas não este fatídico 2020) há mercado de Natal, Ana Diaz Gomez, estudante espanhola de Marketing a fazer Erasmus em Karlstad, na região de Värmland, confirma o cenário. Chegou à Suécia em agosto, vinda de Málaga, e durante uns tempos ainda usou máscara nas aulas. Toda a gente se afastava dela: “Como ainda por cima sou espanhola, achavam que se usava máscara era porque estava doente”, contou ao Observador, no dia em que completou 21 anos.
Apesar de na faculdade, como acontece aliás em muitas lojas de Estocolmo, existirem dispensadores de álcool gel, poucos estudantes o utilizam: “Só nós, os espanhóis, italianos e franceses, porque já estamos habituados, é que usamos, os suecos nunca lavam as mãos com álcool gel nem nada disso!”
A partir do dia em que as aulas presenciais foram finalmente canceladas — até 24 de novembro aconteceram normalmente, com uma cadeira de intervalo entre alunos —, as festas também terão tendência para abrandar, garante sem muita convicção Ana Diaz Gomez, sob o olhar atento do pai, que viajou para a Suécia de propósito para comemorar o seu aniversário.
“Quando cheguei havia um montão de festas e, durante a semana das praxes, houve festas super grandes, com toda a gente, mas, a partir de hoje, que entraram em vigor novas restrições, acabaram as festas no campus. Pelo menos as oficiais”, diz. “Noto no campus que há uma divisão entre os jovens suecos, há uns muito interessados sobre o tema do coronavírus, sabem que temos de ter muito cuidado, que há restrições e que não podemos ver todos os amigos nem fazer festas, e depois há outros que têm outra mentalidade e que dizem que, se temos de viver num campus e de partilhar a cozinha com outras 15 pessoas, vai dar ao mesmo.”
Dias mais tarde, ao longo do segundo fim de semana com todos os bares e restaurantes a fechar o mais tardar até às 22h30, ainda não eram horas e o reforço policial, em carrinhas de 9 ou mais lugares, já era visível um pouco por toda a cidade. Desde a zona da Sveavägen, a avenida onde em 1986 Olof Palme foi assassinado e onde agora existem bares e restaurantes de todo o mundo; à mais posh Stureplan, onde há pouco mais de um mês foram filmados os vídeos que chocaram o país, de dezenas de jovens suecos a dançar em discotecas, como nos tempos pré-Covid, a “Polis” estava por toda a parte.
Neste final de novembro, se há nightclubs a funcionar, não são visíveis da rua. Nos bares e restaurantes, que se confundem — na Suécia, para ser permitido vender álcool, há que disponibilizar comida também —, a vida segue com normalidade, muitas vezes sem a exigida distância de pelo menos um metro entre mesas, e, provam os abraços e cumprimentos efusivos entre amigos, quase sempre sem distanciamento social. Mas não podem estar mais de 8 pessoas à mesma mesa.
Na sexta-feira 27 de novembro, na zona da Medborgarplatsen, perto do centro histórico de Estocolmo, pouco passava das 22h30 e já os agentes se afadigavam em conversas aparentemente pedagógicas com os magotes de jovens que, na ausência de bares abertos, se amontoavam dentro ou à porta da Espresso House (a maior cadeia de cafetarias da Escandinávia) ou do Max (o primo sueco da McDonald’s) — por não terem licença para vender álcool, não estão sujeitos a qualquer restrição de horários.
Meia hora depois, durante a qual, com o auxílio do finlandês Ville Pimenoff, tratámos de fazer a nossa própria ronda, para perceber se havia estabelecimentos a violar o encerramento obrigatório, praticamente todos tinham já dispersado.
O que pode também não querer dizer nada. “Os jovens encontram sempre uma maneira. Ouvi dizer que agora, como não há sítios abertos, compram álcool, alugam quartos de hotel e fazem lá as festas”, revela o professor do Instituto Karolinska, que, além de centro de investigação e hospital, é uma das maiores faculdades de medicina da Europa.
Está explicada a encomenda de 30 pizzas tamanho familiar que, cinco dias antes, escassas horas depois da aterragem no aeroporto de Arlanda — onde até há sinalética a solicitar o uso de máscaras, mas só as utiliza quem quer, funcionários incluídos — vimos dois pares de jovens a levantar no pequeno restaurante onde juntámos almoço e jantar.