O cerco à SIBS está a apertar-se. Depois de, em julho, a Autoridade da Concorrência acusar a dona do Multibanco de abuso de posição dominante, foi noticiado que o Banco de Portugal tinha aplicado à empresa uma “determinação específica”, exigindo mudanças na forma como atua. Já no início deste ano, uma associação de empresas de pagamentos aliou-se a setores como o comércio, a restauração e a distribuição para dar um murro na mesa: uma carta aberta, enviada aos supervisores, onde se fala de um “mercado fechado” nos pagamentos. Uma concorrente da SIBS, a Teya [ex-Saltpay], diz ao Observador que a dona do Multibanco “cobra um imposto escondido aos portugueses” e já custou à economia 11 mil milhões em 10 anos – fora custos indiretos.
“Em todos os mercados onde operamos e onde já investi, na minha carreira, nunca vi uma violação tão flagrante das regras – e já investi em mais de 100 países“, diz, em entrevista ao Observador, Ali Mazanderani, presidente do conselho de administração da Teya, o novo nome da Saltpay, companhia que em Portugal ficou mais conhecida por ter operacionalizado o programa IVAucher mas cujo principal foco é prestar serviços de pagamentos às pequenas e médias empresas.
A violação a que Ali Mazanderani faz referência é o que diz ser uma acoplagem ilegítima, por parte da SIBS, do acesso ao Multibanco e do processamento de transações. As regras europeias obrigam, há vários anos, desde 2015, a que tenha de haver uma separação dessas duas dimensões: pode haver empresas que tenham criado e façam a gestão de sistemas (como o MB) mas, depois, qualquer serviço que a mesma empresa promova de processamento de transações tem de ser vendido de forma separada – sem que as duas coisas sejam “empacotadas” em conjunto.
É isso que acontece em todos os países da Europa, de um modo geral, mas em Portugal “a SIBS está a alavancar o acesso ao esquema e a juntar a isso o processamento de transações“, o que é uma “violação clara da regulação europeia, regulação que foi criada em 2015”. “O que é confuso para mim é como é que pode estar, há tantos anos, a haver uma violação das regras… Como é que não há enforcement? [aplicação das regras]”, questiona o presidente do conselho de administração da Teya.
“Porque é que há uma ausência total de consequências para a SIBS?”, pergunta Ali Mazanderani, acrescentando que “a infração não é uma coisa abstrata, a própria SIBS tem vindo a colocar essas cláusulas restritivas nas negociações e condições contratuais com empresas terceiras“. A entrevista do presidente do conselho de administração da Teya foi concedida no início de março.
Violações podem valer coimas e suspensões para administradores
↓ Mostrar
↑ Esconder
O Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento e da Moeda Eletrónica, que transpôs a diretiva comunitária 2015/2366, estabelece, no artigo 27.º, que a “autorização de uma instituição de pagamento ou de uma instituição de moeda eletrónica pode ser revogada” caso sejam cometidas algumas das infrações “especialmente graves” previstas no artigo 151º. Entre essas infrações está, por exemplo, a “adoção ou aplicação de regras comerciais que restrinjam a interoperabilidade com outras entidades de processamento na União”.
No artigo seguinte, o 152.º, estão previstas “sanções acessórias” onde se define que “conjuntamente com as coimas, podem ser aplicadas ao responsável” pelas contraordenações castigos como a “apreensão e perda do objeto da infração, incluindo o produto económico desta”.
A sanção também pode incluir a “inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direção, gerência ou chefia em instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento e instituições de moeda eletrónica, por um período de 6 meses a 3 anos, no caso de infrações previstas no artigo 150.º, ou de 1 a 10 anos, no caso de infrações previstas no artigo 151.º”
Contactada pelo Observador sobre estas práticas, a SIBS respondeu que “já se manifestou publicamente sobre os diferentes temas questionados pelo que não tem, neste momento, nada mais a acrescentar“. Em dezembro, a empresa disse ao jornal Expresso que “disponibiliza soluções de pagamento simples e seguras em estrito cumprimento de toda a legislação e regulamentação aplicável (…) incluindo os princípios de separação entre sistemas de pagamento e entidades de processamento”.
Argumentou, também, que a realidade nacional não pode ser comparada ao resto da Europa, desde logo porque os serviços Multibanco “não têm paralelo na realidade de outros países”. Ainda assim, a “SIBS tem vindo a efetuar as necessárias adaptações para adequação às sucessivas evoluções regulamentares, mantendo a conveniência e segurança dos serviços Multibanco”, afirmou, ao Expresso.
Banco de Portugal confirma “desconformidades” e diz ter “ações em curso”
No início de março, o administrador do Banco de Portugal Hélder Rosalino confirmou que “o Banco de Portugal já emitiu uma recomendação específica à SIBS do ponto de vista de correção de um conjunto de práticas que foram detetadas como não cumprindo a regulamentação europeia” – a tal instrução feita no início de 2022.
Mas Hélder Rosalino revelou, além dessa recomendação específica, que “há um conjunto de ações em curso“, na sequência de se ter detetado “um conjunto de desconformidades”, designadamente “no retalho e nas operações cujo acesso não está a ser permitido a outros operadores que querem entrar em Portugal e aceder ao serviço”. Quando podem surgir resultados para essas “ações em curso”? “Não no imediato, mas no médio prazo“, disse o administrador do supervisor financeiro.
Já do lado da Autoridade da Concorrência (AdC), desde julho que não há notícias sobre a acusação feita no verão passado – e que foi articulada com o Banco de Portugal. Na sua investigação, a “AdC concluiu que existem indícios fortes de que o acesso a um conjunto importante de serviços (serviço primário) foi condicionado à contratação de outros serviços distintos (serviço secundário) junto do mesmo grupo empresarial, sem que fosse dada possibilidade de contratar apenas o acesso ao conjunto de serviços pretendido”.
Autoridade da Concorrência acusa SIBS de abuso de posição dominante nos pagamentos eletrónicos
Várias fontes do setor ouvidas pelo Observador assinalam que nos últimos meses a SIBS tem alterado um pouco a sua conduta – e as exigências que coloca nos contratos. Porém, dizem as mesmas fontes, as mudanças ainda não são suficientes.
“Noutros países europeus há também sistemas nacionais (em Itália, nos Países Baixos, entre outros) mas nesses casos, depois, há uma separação com o processamento que pode, ou não, recorrer ao esquema“, afirma Ali Mazanderani, da Teya, ao Observador. “Mas nesses países não existe esta acoplagem, esta junção das duas coisas”, explica, recorrendo a uma analogia com a ferrovia para ilustrar o que, na sua análise, é irregular:
A construção da infraestrutura digital pode ser comparável à construção da infraestrutura real, no passado”, diz Ali Mazanderani, que é também um académico ligado à História da Economia. “Comparo muito a construção da infraestrutura dos pagamentos à criação da rede ferroviária nos EUA. Um exemplo, Rockefeller, que tinha petróleo, queria transportar esse petróleo, por isso construiu a ferrovia para o transportar. Depois, Carnegie queria transportar aço de Pittsburgh até ao porto e, como não havia ninguém a construir a infraestrutura, construiu-a ele. Mas depois, passado algum tempo, tornou-se óbvio que esta é uma estrutura ineficiente, porque é impossível concorrer com quem controla a rede de distribuição”, explica o empresário, ao Observador.
“O que é necessário é que a infraestrutura seja neutral. Com a SIBS passou-se isso: eles queriam promover o seu produto, construíram a infraestrutura para isso – uma infraestrutura que hoje se pode considerar legacy, ineficiente… O problema não é eles terem feito isso – foi uma coisa boa, na verdade – o problema é o que fizeram depois, que foi como dizer que ‘qualquer outro que queira levar carvão – e carvão é a única forma de energia que vamos permitir que seja transportada aqui – tem de usar a nossa infraestrutura, não pode construir uma infraestrutura de alta velocidade para transportar carvão por lá’. Eles estão a juntar as duas coisas, apresentando-as como uma só, e o consumidor diz ‘eu quero carvão’, não está a dizer ‘quero carvão que me seja transportado pela ferrovia criada pela SIBS’“.
11 mil milhões de custos para a economia, em 10 anos (só em custos diretos)
Os números mostram que Portugal tem, há vários anos, um panorama pouco animador na inovação nos pagamentos. Desde que saiu a primeira Diretiva dos Serviços de Pagamentos (DSP] europeia, em 2010, só 13 empresas se licenciaram no Banco de Portugal como Instituições de Pagamentos e apenas uma como Instituição de Moeda Eletrónica. No mesmo período, no Reino Unido surgiram mais de 1.200, na Lituânia 123, em França 85 e na Irlanda 41.
Mais recentemente, desde que entrou em vigor a diretiva revista (DSP2), em 2016, nenhuma empresa de Open Banking foi licenciada pelo Banco de Portugal. Este é um dos argumentos que levam a Teya a considerar que o atual estado de coisas retirou à economia portuguesa 11 mil milhões de euros na última década – “e, indiretamente, muito mais do que isso”, comentou Ali Mazanderani: “indiretamente, travou-se o investimento, a criação de empregos, a maior digitalização que teriam existido se não houvesse esta situação”.
Falando apenas no que se consideram custos diretos, o presidente da Teya fala num “imposto escondido” cobrado aos portugueses. “O custo de fazer uma transação é muito maior em Portugal do que noutros países. O preço do processamento de uma transação em Portugal é o dobro do que nos Países Baixos [0,34% versus 0,17%, segundo o BCE]. E é múltiplas vezes maior do que noutras zonas do globo, já que o próprio setor europeu também não é muito eficiente”, afirma Ali Mazanderani.
“Imagine um comerciante, um café – o dono tem lá um terminal de um banco português que aceita o esquema MB. Se eu entro pela porta e ofereço o meu terminal, que é mais inovador e mais moderno (e aceita Visa, Mastercard e outras). Como ele, claro, não quer deixar de ter o MB, que é o mais usado em Portugal, tenho de convencê-lo a colocar lá um segundo equipamento, um terminal paralelo, ou seja, obrigo o comerciante a ter o dobro da infraestrutura, dois terminais, não é lógico. São duas ferrovias a correr uma ao lado da outra…”, diz Ali Mazanderani, atirando que “a SIBS está a empatar a digitalização da economia portuguesa“.
E como se chega a esse número, de 11 mil milhões em custo direto para a economia pelo que os concorrentes consideram ser uma “fecho do mercado de pagamentos imposto pela SIBS“? Através da “perda de eficiência da infraestrutura de pagamentos de retalho devido à existência de menos concorrência e menos inovação”, explica a Teya, acrescentando que nesta estimativa se comparou o custo social de instrumentos de pagamento de retalho de Portugal com o da Dinamarca, “um país com uma infraestrutura de aceitação de pagamentos mais digital e, consequentemente, mais eficiente”.
Com base num estudo do BCE, que é uma compilação de estudos feitos pelos bancos centrais nacionais a partir de dados de 2017, o custo anual para a economia dinamarquesa de suportar a infraestrutura de pagamentos era de 0,53% do Produto Interno Bruto (PIB). Em contraste, em Portugal esse custo era de 0,99%, quase o dobro. Para esta diferença contribui, também, o facto de a Dinamarca ter uma economia menos baseada em numerário do que Portugal – em Portugal 64% das transações envolvem dinheiro vivo, ao passo que na Dinamarca são 12% (e em países como a Finlândia e os Países Baixos também são menos de 20%).
“Outro benchmark que seria interessante é o dos Países Baixos”, diz a Teya, um país onde a autoridade da concorrência em 2004 multou os bancos, em 30 milhões, por abuso de posição dominante em relação ao esquema doméstico, o Interpay. O banco central holandês estimou os custos privados para os comerciantes (apenas para comerciantes, não para a sociedade como um todo) e concluiu que o custo anual é de 0,19% do PIB – dados de 2017.
Em Portugal, falando também apenas dos custos para os comerciantes, o valor equivalente é 0,62%, três vezes mais (como mostra a tabela 9 do mesmo estudo do BCE).
“Consequências inegáveis para consumidores, comerciantes, emigrantes e turistas”
Foi destes custos que se queixou publicamente uma “comunidade de empresas fintech e comerciantes” que se aliaram à recentemente criada Associação Nacional de Instituições de Pagamento e Moeda Electrónica (ANIPE) para enviar uma carta aberta na qual falam de “consequências inegáveis para consumidores, comerciantes, emigrantes e turistas que impactam de forma real e efetiva a economia nacional”.
Os comerciantes deparam-se com “uma falta de inovação e de alternativas de pagamentos”, alternativas que “já se encontram banalizadas na maioria dos mercados europeus”, segundo a carta aberta. Isso “resulta, obviamente, em preços muito elevados para as poucas opções existentes” e gera uma “desvantagem concorrencial importante no processo de digitalização e internacionalização” das empresas, por “não existir um acesso universal a todos os esquemas de pagamentos”.
A “falta de dinâmica” e “escassa concorrência no mercado” penaliza, também, os emigrantes, que têm dificuldades em “pagar os seus compromissos com entidades públicas e grande parte das privadas utilizando as contas e cartões do seu país de residência”, porque nem o Estado promove uma “neutralidade tecnológica”, pode ler-se na carta aberta.
Já os turistas que visitam o País “estão impedidos de pagar em diversos locais com os seus cartões e porta-moedas eletrónicos sem restrições” porque “uma parte substancial dos terminais não permite a utilização de múltiplos processadores, estando vinculados apenas a uma determinada marca” – o Multibanco/MB Way, da SIBS.
“No futuro, gostaríamos de ver a promoção da paridade concorrencial e uma verdadeira proporcionalidade na abordagem de risco ao setor, suavizando as barreiras de entrada e desenvolvimento do setor, estimulando mais alternativas para comerciantes e consumidores”, diz a comunidade de fintech e comerciantes, argumentando que “Portugal pode tornar-se uma referência de inovação, desenvolvimento, digitalização e retenção de talento no setor dos pagamentos, com todos os benefícios que isso traz à economia e ao bem-estar de todos”.
[Já pode ouvir a série toda: ouça aqui o sexto episódio da série em podcast “O Sargento na Cela 7”. E ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio, aqui o quarto episódio e aqui o quinto episódio. É a história de António Lobato, o português que mais tempo esteve preso na guerra em África.]