Se alguém com 20 anos de idade contrair hoje o vírus da imunodeficiência humana (VIH), é muito provável que possa sobreviver até aos 70 anos, caso o diagnóstico seja feito atempadamente e o tratamento seguido de forma correta. Este é um facto que contrasta com o que acontecia no passado, quando aquela infeção era encarada como uma quase sentença de morte. Isto ficou bem patente na conversa digital que o Observador promoveu em parceria com a Janssen, no dia 18 de maio, data em que se assinalou o Dia Mundial da Vacina Contra a Sida. Na conversa participaram Kamal Mansinho, diretor do Serviço de Infeciologia e Medicina Tropical do Hospital de Egas Moniz, em Lisboa, Luís Mendão, presidente do GAT – Grupo de Ativistas em Tratamentos -, e ainda Alex D’Alva Teixeira, músico que participou no projeto “E se… em 2020”, criado pelo Observador/Janssen. No final, ficou bem claro que se é verdade que os avanços verificados em termos de terapêutica têm sido muitos – permitindo que os doentes apresentem uma carga viral indetectável e não transmitam a doença – também é verdade que essas boas notícias têm um reverso, que consiste na redução da perceção de risco associado à doença. Sensibilizar para o assunto, reforçar a necessidade de se prevenir o contágio, alertar para a importância da testagem e dar conta dos avanços que podem esperar-se no futuro foi precisamente o mote da conversa digital moderada por Ana Filipa Rosa, host da Rádio Observador.
Dez anos sem diagnóstico
O que é que sabe um jovem, hoje, sobre o VIH? Alex D’Alva Teixeira, 31 anos de idade, pode não ser um bom exemplo do que se passa na realidade, já que começa por admitir que a sua preocupação em relação à temática acompanha-o há muito, isto é, não começou apenas quando foi convidado pelo Observador para refletir sobre como teria sido se Freddie Mercury não tivesse morrido devido a complicações relacionadas com o VIH/sida, em 1991. O interesse começou muito antes, não só porque teve “uma educação privilegiada em termos de educação sexual”, mas também porque conhece de perto o trabalho desenvolvido pelo GAT, tendo frequentado os seus serviços, acedido aos testes ali disponibilizados e beneficiado da informação que lhe permitiu “esclarecer todas as dúvidas” sobre o assunto.
Experiência muito distinta – marcada pela falta de informação e de conhecimento que vigorava nas décadas de 1980 e 1990 – foi vivida por Luís Mendão, que acabou por estar “dez anos sem diagnóstico”. Isto fez com que, em 1996, quando finalmente descobriu o motivo por que a sua saúde se vinha a degradar continuamente nos últimos anos, tenha sentido “um alívio”. Mas apenas porque todos os seus sintomas passaram a fazer sentido – tinha VIH. Em contrapartida, o diagnóstico fê-lo esperar o pior, porque era isso que via acontecer à sua volta: “Preparei-me para morrer.”
Quem também, na altura, sofreu com a falta de conhecimento sobre a doença foi o médico Kamal Mansinho, que recorda como a comunidade científica se viu confrontada com uma ameaça que não sabia combater. “Viviam-se tempos de muitas incertezas, todos estávamos perante algo que desconhecíamos, a informação disponível era muito escassa”, lembra, acrescentando que “não havia sequer testes de diagnóstico com fiabilidade e as pessoas acabavam por morrer”, sendo que as vítimas eram sobretudo “pessoas relativamente jovens”.
Enorme evolução terapêutica
É inegável o enorme avanço verificado, entretanto, em termos de terapêuticas disponíveis para o VIH. Luís Mendão explica que, quando o vírus lhe foi detetado, esteve 40 dias internado e fazia dez tomas diárias de medicamentos, todos com restrições alimentares associadas. “A vida orientava-se em função da medicação”, diz, sublinhando que naqueles momentos percebeu bem as limitações enfrentadas pelos profissionais de saúde que todos os dias lutavam, com poucas armas, contra um inimigo que quase desconheciam: “Ganhei uma certa compaixão pelos médicos, porque tinham pouco para nos oferecer. Deve ser desesperante estar a seguir doentes que, em princípio, vão morrer.”
Kamal Mansinho reconhece que “a terapêutica combinada de três medicamentos de classes diferentes era muito exigente, implicava muitos comprimidos, com exigências alimentares e frequência de tomas”. “Era uma verdadeira intromissão no quotidiano”, admite, dando ainda conta dos “efeitos adversos frequentes e intensos, sobretudo nas primeiras semanas”, sendo que, apesar disso, “era importante que os doentes não abandonassem o tratamento”.
“Hoje, o tratamento não tem nada que ver com o que era naquele tempo”, explica Luís Mendão, que atualmente toma três comprimidos por dia, mas por decisão própria: “Porque não me consigo mentalizar para tomar só um.” Em relação aos efeitos secundários da medicação dos primeiros tempos, os quais também sentiu na pele, salienta que “eram pequenos face aos ganhos, ganhava-se tempo de vida”.
O reverso da medalha
A trabalhar no Hospital de Egas Moniz, em Lisboa, onde já estava quando o VIH chegou ao nosso país, Kamal Mansinho confirma “os avanços significativos que a terapêutica antirretroviral nos trouxe” e aponta uma das consequências disso mesmo: “O reverso da medalha é a modificação da perceção de risco.” Ou seja, o facto de se ter feito uma “transição para uma doença da qual já não se morre” trouxe consigo um aligeirar das preocupações habitualmente associadas ao VIH. O médico refere que, inicialmente, a terapêutica era destinada a tratar apenas doentes com sintomas, depois percebeu-se que devia também ser dada a assintomáticos com características específicas e a estratégia atual passa por “testar e, se for positivo, tratar com medicamentos”. Aliás, “evoluímos no sentido em que o próprio comprimido em conjunto com o preservativo permite não transmitir a doença” e, mais recentemente, “as pessoas não infetadas que perspetivam uma exposição de risco podem tomar alguma desta combinação terapêutica para reduzir ao máximo o risco de se infetarem”, esclareceu o clínico, referindo-se à profilaxia pré-exposição (PrEP), um instrumento de prevenção da infeção, que tem um impacto muito importante na redução da incidência do VIH.
Para o profissional de saúde, estas possibilidades são muito relevantes, uma vez que “o preservativo era a única ferramenta disponível [para evitar o contágio], mas hoje passámos a ter alternativas seguras e tão eficazes ou mais do que o preservativo”.
Estigma que permanece
Lembrando os primeiros anos de luta contra a doença, quando a informação era escassa, Kamal Mansinho afirma que os clínicos eram “simultaneamente médicos, assistentes e confidentes”, isto porque frequentemente os doentes “não tinham ninguém”. A “discriminação por orientação sexual era algo de muito intenso”, observa, já que durante muito tempo o VIH esteve erradamente associado à comunidade homossexual. Todavia, como o especialista faz questão de realçar, tal acontecia nos anos 80, mas a verdade é que “no ano 2021, 69 países em todo o mundo criminalizam a homossexualidade e, nalguns desses países, a penalização pode ser a pena de morte”. “A homofobia atravessou estes 40 anos como forma de discriminação mais ou menos subtil, mas ela está lá e continua a marcar a vida destas pessoas”, enfatiza.
Mas será que a inovação terapêutica foi acompanhada de uma redução do estigma habitualmente associado à doença? Luís Mendão reconhece que o trabalho que tem sido desenvolvido na área, nomeadamente por associações como o GAT, pode ter contribuído para melhorar esta dimensão, “mas estamos muito longe de ter uma situação normalizada”, conclui, destacando “o nível de desconhecimento, de medo e de discriminação” que é encontrado até mesmo entre profissionais de saúde. Segundo o responsável, isto mesmo ficou visível nos resultados de um estudo promovido pelo GAT há alguns anos junto dos cuidados de saúde primários das zonas de Cascais, Amadora e Odivelas.
Nas suas palavras, ainda que toda a população com vida sexual ativa possa estar em risco de contágio por VIH, há que prestar mais atenção aos grupos-chave mais vulneráveis. Entre estes, destaca os imigrantes mais pobres, com menos autonomia e os que estão em situação irregular, pois apesar da legislação em vigor em Portugal, continuam a existir barreiras que impedem estas pessoas de chegar aos cuidados de saúde, logo, os seus diagnósticos são tardios.
Desafios que nos esperam
Tendo em conta que a ONUSIDA (Programa das Nações Unidas para o VIH/sida) estipulou a meta de eliminar a epidemia de sida até 2030 ou, pelo menos, chegar aos 95% de casos identificados e em tratamento, importa saber se é expectável que tal venha a acontecer em Portugal. De acordo com Kamal Mansinho, para que essa meta seja atingida “é necessário muito trabalho”, mas reconhece que “fizemos um percurso imenso com impactos muito significativos”, dando como exemplo a redução do número de casos de VIH entre os consumidores de drogas. Ainda assim, faz coro com Luís Mendão ao considerar a necessidade de se “manter um rastreio continuado para o diagnóstico de novos casos”, pois só assim se atingirá o objetivo estabelecido pela ONUSIDA. Mas também lembra que “estamos na fase em que é necessário testar muito para encontrar os casos positivos”.
Por outro lado, chama a atenção para as consequências que podem resultar do facto de duas pandemias coincidirem no tempo, referindo-se ao VIH e à Covid-19. Isto porque, “o VIH continua a ser uma pandemia muito grave e é um problema de saúde pública que continua a preocupar-nos, não enquanto país apenas, mas enquanto cidadãos do mundo”.
A este propósito, frisa que “desde a década de 80, quando o vírus foi isolado, o VIH1 já infetou 75 milhões de pessoas em todo o mundo e metade destas pessoas morreram; em Portugal, cerca de 60 mil pessoas foram infetadas, 22 mil desenvolveram quadros de sida e possivelmente mais de um quarto das pessoas morreram com esta infeção”. Portanto, considera que este é um problema de saúde que merece atenção, até porque “quando estas duas pandemias colidem, as consequências são ainda mais devastadoras e são tão mais devastadoras quanto mais frágeis as pessoas são”. A título de exemplo, partilhou resultados de modulações levadas a cabo por diversas organizações, estimando-se que “uma falha de fornecimento de tratamento antirretrovírico para 50% das pessoas infetadas por VIH durante seis meses na África subsariana pode levar a um excesso de mortalidade de 296 mil mortes num ano” e “a interrupção durante seis meses dos serviços de assistência materno-infantil nas mulheres grávidas pode aumentar a transmissão mãe-filho de VIH em cerca de 40 a 60%”. “Estamos perante situações para as quais não podemos, em nenhuma circunstância, deixar de olhar com preocupação e voltar a reassumir compromissos políticos e de financiamento para que não recuemos novamente”, sintetiza.
Esperança no futuro
Para ajudar a sensibilizar para o assunto, é possível contar com as pessoas do sector da cultura, que dispõem de uma plataforma que lhes permite chegar a grande parte da população. Essa é a convicção de Alex D’Alva Teixeira, para quem é necessário “mantermos este assunto a rolar”, até porque nota uma diferença substancial de mentalidades entre gerações: por um lado, pessoas mais velhas que assistiram aos primeiros casos de infeção por VIH e ficaram marcadas ao ponto de “algumas terem dificuldade em manter relações que são sadias”, o que contrasta com uma geração mais nova e menos informada, que vive “o mito de que a sida já está controlada e que não é um problema tão grave”. Perante este estado de coisas, o compositor e intérprete considera que “é mesmo importante que haja informação, não só sobre a evolução dos tratamentos, mas também sobre a proteção e a prevenção”.
Prevenir é fundamental – como sempre foi – pelo menos até que uma vacina esteja disponível. “A vacina é a solução por que todos aspiramos”, enfatiza Kamal Mansinho, dando como exemplo o que aconteceu com o desenvolvimento da vacina contra a Covid-19 para mostrar que, quando há uma “conjugação” de esforços e investimentos, tal acaba por ser possível. “O VIH é um vírus de uma complexidade muito maior, com exigências diferentes”, admite, mas há esperança de se conseguir chegar à vacina, estando uma a ser testada na África do Sul, “que vai seguramente trazer informações adicionais que nos podem abrir novos horizontes”, explica, referindo-se à vacina que está a ser desenvolvida pela Janssen e que constitui uma esperança para um futuro sem VIH.