Nem tudo é mau quando pensamos em abundância tecnológica ou redes sociais — basta lembrar como uma videochamada permitiu esta entrevista entre Lisboa e Estocolmo. Mas, como notaria de rajada Siri Helle na mais recente edição da Pergaminho, toda a atenção é pouca com as gratificações instantâneas e superficiais — quem nunca descambou num ápice para um scroll tão infinito quanto passivo que atire a primeira pedra.
On ou off, o caminho está cheio de sentimentos negativos que bloqueiam a marcha, e há pequenas mudanças que nos podem ajudar. Entre a psicologia clínica e a escrita, a sueca de 32 anos baseia-se na terapia cognitiva comportamental, uma ferramenta para lidar com o stresse e a ansiedade, e aumentar a motivação. De forma simplificada, acredita que se mudarmos primeiro o comportamento, as emoções e os sentimentos seguir-se-ão.
Em “A Armadilhas das Emoções”, Helle desmonta mitos, defende que o autodesenvolvimento é mais importante do que a autoestima, garante que não há nada de errado com uma crise existencial, e recomenda que adicione um erro de datilografia ao seu trabalho como estratégia antes de ir para a cama.
A Armadilha das Emoções – Como os sentimentos negativos nos bloqueiam e as pequenas mudanças nos podem libertar, Pergaminho, 15,93 euros
“Não podemos forçar emoções, mas devemos criar as melhores condições”, sustenta Siri, que aposta na inclusão da saúde mental nos curriculums e já está de volta da próxima obra. Foco? A saúde existencial, do sentido da felicidade à forma como lidamos com grandes questões como a mortalidade.
Dedica-se à Teoria Cognitivo-Comportamental, está habituada a lidar com o stress, a ansiedade, temas que conhece bem e que aborda recorrentemente neste livro. Há algo que a tenha surpreendido durante a escrita?
Neste livro tentei resumir o que aprendi durante o meu curso de psicologia, e na prática clínica, e tal como disse há sempre qualquer coisa de novo que encontramos e trazemos. Fiz uma pesquisa particular sobre autoestima que me surpreendeu bastante. Durante a experiência na infância explicam-nos, e acaba por crescer connosco, que esta é essencialmente uma questão genética, mas a verdade é que é algo que podemos manobrar de forma considerável mesmo na nossa vida adulta.
Não é uma condenação à partida. É aliás um dos mitos que desmancha na obra, esse determinismo que pode tornar-se incapacitante.
Sim, isso é definitivamente o que tento trabalhar na minha prática clínica. Tentar ter uma melhor autoestima passa por nos tornamos mais assertivos, por aprendermos a dizer não, ou quando tratamos do autocuidado. Se começar por dedicar-se a coisa como estas, por exemplo, a sua autoestima vai melhorar.
Recorda precisamente a evolução do movimento da autoestima, com enfoque particular nos EUA, do boom nos anos 80 a um declínio a partir de 2003. E dir-se-ia que o tópico voltou a ser mais atual que nunca. Como analisa estes altos e baixos?
A razão para a deflação [no começo dos anos 2000] deve-se ao estudo de Leary e Baumeister [De acordo com o seu modelo, a autoestima é um indicador do valor social percebido que flutua em função do grau segundo o qual a pessoa se sente valorizada pelas pessoas em seu redor.] Mostrou que a autoestima não é tanto uma razão mas antes um resultado, quando falamos por exemplo de sucesso académico. Penso que foi aí que perdeu alguma tração no meio académico, mas quanto ao público em geral, pelo menos na Suécia, e acredito que também em Portugal, é considerada uma das mais importantes construções em psicologia. Põe limites ao que conseguimos fazer enquanto pessoas, na vida real, é algo que está na nossa cabeça mas que não tem que afetar o nosso comportamento assim tanto.
Lembra neste “Armadilha das Emoções” que se pode ser rico, lindo, bem sucedido, etc e ainda assim ter uma péssima autoestima.
Isso.
Mas já que falamos de países distintos, como Suécia e Portugal, quão determinantes podem ser as condições geográficas, sociais nesta equação? Que nuances nota de forma mais lata?
É importante perceber que a autoestima tem um efeito no nosso mood, na nossa saúde mental, como nos vemos, mas não limita aquilo que podemos fazer. Não depende de onde vivemos ou da nossa situação na vida. Claro que se viver em adversidade é mais difícil tomar controlo da sua vida.
De entre tudo o que estuda e escuta, quais os maiores desafios atualmente?
Um dos principais aspetos é que as gerações mais jovens acusam hoje muito mais desafios do ponto de vista da saúde mental, relativamente ao que se sentia há outras décadas. Hoje sente-se mais pressão para ser bem sucedido, seja na vida académica ou pessoal, na saúde, na beleza. Mas creio que a forma como lidamos com o problema pouco mudou. Há um mundo de positividade, afirmação e autoajuda que se desenvolveu, mas sabemos hoje através de pesquisas que mudar o comportamento pode ter muito mais impacto do que isso.
Fala das jovens gerações e da pressão extra sentida. Sente que há de facto mais ansiedade, mais gente a precisar e procurar ajuda, ou a redução do tabu e o facto de falarmos dos temas de forma mais descomplexada acaba por sugerir um excesso de casos?
Pelas nossas pesquisas somos levados a acreditar que se trata dos dois cenários, sim. Os jovens de hoje têm mais questões de saúde mental mas também é verdade que sabem melhor como pôr isso em palavras, como abordar o assunto. Hoje chamam ansiedade a um conjunto de coisas que já conhecíamos, como a dificuldade em dormir, por exemplo.
Já lá estava tudo, faltava-nos apenas dar nomes às coisas?
Completamente. Lembro-me de andar na escola e sentir uma pressão no peito e chamei-lhe apenas “o grande desconforto” (risos). Não conhecia a palavra ansiedade.
A Siri também se dedica ao fact checking no âmbito da saúde mental. Contamos hoje com mais stress, também com mais ferramentas para responder a esse desafios, como referiu, e ainda muita cacofonia sobre o tema?
Hoje há certamente mais ferramentas mas há um mundo infindável de informação online, nas redes sociais, por exemplo, onde se pode seguir todo o tipo de direções. Estou a lançar uma campanha na Suécia, chamada “Saúde Mental nas Escolas”, que defende a sua entrada nos curriculums, enquanto educação relevante, da mesma forma que educamos sobre saúde oral ou reprodutiva. É uma recomendação da OMS. Devíamos implementar isto mundo fora.
Voltando à oferta ampla, a industria da autoajuda é hoje colossal. Como navegamos entre tantos livros, redes, perfis, gurus?
É muito importante que recorramos a fontes credenciadas. Se pensarmos na nutrição, também temos uma míriade de páginas e de suplementos e tudo o mais. Precisamos de um marcador de qualidade em que possamos confiar. É necessário que isso se aplique também à indústria da autoajuda, quando falamos de conselhos.
Para além da gratificação rápida proporcionada pelas redes, o conforto imediato dos videojogos, outro ponto que assinala, enquanto travão a uma ação que possa melhorar a nossa vida.
Esse foi um dos meus primeiros estudos, fixado num livro “Mais esperto que o teu telefone”, que só existe em sueco, em que pesquiso sobre o tempo passado nos ecrãs e nas redes sociais. A minha visão é de que estamos demasiado focados nos ecrãs e devemos considerar o que fazemos e como o fazemos. Em vez de ser visto como vemos os doces, quanto mais melhor, deve ser visto como os alimentos verdes que devemos ingerir. Há “sobremesas” como o scroll passivo que nos fazem sentir pior, mas um consumo do tipo “salada” que nos faz bem. Uma utilização boa está aqui: videochamadas. Ou aprender uma habilidade nova, aprender a tocar guitarra. Não é só falar do uso do tempo. Há estudos que nos mostram que muitos miúdos que não estão bem na escola conseguem desenvolver relações frutíferas online.
Uma questão de equilíbrio. Se tivéssemos que resumir este livro em uma linha, diríamos “atividade sobre passividade”, ou que “aquilo que fazemos é mais importante do que o que sentimos”, ou ainda “não conseguimos forçar emoções mas podemos criar as condições possíveis”. De forma muito prática, como tenta ser nesta obra, que pequenas coisas podemos fazer para melhorar a forma como nos sentimos no dia a dia?
Começar por fazer pequenas pausas, recuperar de cansaço, repor baterias, como costumamos fazer. Quando nos sentimos mais stressados temos o impulso de seguir em frente, de trabalhar ainda mais, em vez de abrandar a nossa pulsação e abordar o problema de uma forma mais estratégica, e logo mais produtiva. Outra coisa: todos os dias conseguir agendar, planear, algo que desejamos. Quando falamos de felicidade e alegria, muitas pessoas procuram o pote de ouro no fim do arco-íris, o viveram felizes para sempre em vez de se focarem em pequenas coisas que podem alcançar todos os dias. É por isso que recomendo no livro que mantenham uma lista de coisas que lhes deem gozo.
Mantemos um grande idealismo que nos impede de fruir do dia a dia?
Sim, e quando estamos mais em baixo, ou stressados, temos algo preso na cabeça, e em vez de tentarmos sair da nossa cabeça tentamos ganhar essa discussão connosco próprios. Devíamos focar-nos em algo diferente. Num caso destes sugerira que ligasse a um amigo, ou fosse dar um passeio. É quase sempre melhor que tentar resolver o que quer que seja.
Uma coisa será ler este livro quando nos sentimos numa boa fase. Mas imaginei colocar-me no lugar de alguém que se sente em baixo. Todos nós já passámos por isso, e sentimos nessa hora que uma coisa são as palavras, outra é conseguir passar aos atos. É como dizer a alguém, com resultado pouco produtivo: “deixa de estar deprimido”. Pode ser mais útil a quem está à volta?
É bom trazer isso à baila porque é importante referir que este livro não é uma forma de tratamento, é apenas uma forma proativa de cuidar da sua saúde mental. É como uma prescrição de exercícios físicos mas neste caso mentais.
Como um músculo que se trabalha continuamente.
Sim, e claro que se está a passar por uma depressão necessita de ajuda profissional. É uma perturbação que exige tratamento. Se tiver este filtro negativo sobre os seus pensamentos não vai conseguir identificar sequer o que o vai fazer feliz.
Focamo-nos em quem precisa de ajuda mas por vezes muito pouco em quem rodeia essa pessoa, e na melhor forma de ser prestável. Que recomendaria?
Para pessoas que têm alguém que está a passar por estes desafios, o mais importante é encorajá-los a procurar ajuda profissional, estar presente, tentar não ser crítico e fazer juízos de valor.
Ser feliz, melhor pessoa, mais bem sucedido, etc etc. Pela sua experiência recente, quais são hoje os maiores desejos e prioridades?
A pesquisa mostra que a maioria procura uma vida feliz, o que se inscreve na evolução cultural. Dantes diria que a maioria procurava uma vida com sentido, moralmente justa, mas agora a felicidade e o bem estar pessoal estão na ordem do dia. Mas claro que quando falamos de depressões profundas as pessoas só querem estar “ok”, ter uma vida normal.
Há uma viragem no sentido do “eu”? Como vivemos hoje a experiência em comunidade?
É um facto que os países ocidentais tornaram-se mais individualistas, é algo bom para a liberdade mas nem sempre para a saúde mental. O sentido de comunidade é importante, é o que nos fazer sentir bem, que fazemos parte enquanto indivíduos. Falo precisamente disso no meu novo livro, que acaba de sair há um mês na Suécia. É sobre saúde existencial, sobre o sentido da felicidade e a forma como lidamos com questões existenciais, com a mortalidade.
Continuamos assolados por esse tipo de dúvidas?
Sim, as emoções levam-nos a pensarmos o que podemos fazer para ultrapassar os desafios do dia a dia, para conseguirmos os nossos valores e objetivos. Mas que valores e objetivos são esses? Muitas pessoas queixam-se de que passam muito tempo no telefone. Mas o que fariam com esse tempo livre? Se lhes perguntamos não sabem o que dizer. Talvez deva fazer exercício, ou ler livros, pensam…mas é importante ter resposta para esse tipo de perguntas e muitos não a têm.
Centrámo-nos mais nos jovens. Quanto aos mais velhos, continua a ser um desafio mostrar-lhes que vale a pena, e que é possível, mudar hábitos em idades avançadas?
Claro, tenho interesse em todas as faixas, apesar de sabermos que ainda é mais estigmatizado; o interesse cresce pouco ainda, mas de forma sustentada. O que encontro é que muitas vezes fazemos a diferença a colocar as suas experiências por palavras. “Como é que sabia?” Bom, porque não está sozinho. Isso abre uma porta para falar.
A que anda a dedicar-se neste momento? Que grandes tópicos pensa que vão tomar conta da discussão num futuro próximo?
Tenho algumas ideias, depois da armadilha das emoções, a saúde existencial. Penso que as questões existenciais vão e vêm. Senti muito isso depois da pandemia, grandes dúvidas sobre o propósito da vida, como conseguir ultrapassar a adversidade, não conseguimos ser felizes e alegres o tempo todo.
Continua a sentir-se o impacto brutal da pandemia?
Sem dúvida. Nota-se como a questão da mortalidade e do propósito foi colocada muito mais em cima da mesa, grandes questões.
E grandes temas como o clima, a guerra?
Também, sim, e sobre o impacto da Inteligência Artificial. As pessoas perguntam-se como lidar com tudo isto, como conseguem manter-se fortes com tanta turbulência em redor. É por isso que esta campanha que tenho liderada é tão relevante para mim. É importante fornecer este tipo de ferramentas desde tenra idade. O conhecimento e as ferramentas para manobrar a sua vida. É tão importante ensinar competências sobre como ler e escrever, como a ensinar a resolver problemas, a lidar com as emoções.
O que é mais decisivo nesse combate?
Há muitas ferramentas mas tentar acalmar-se, regular as suas emoções, é sempre útil. Quando se sente ansioso, stressado, é quando caímos nas armadilhas de que falo, e quando acabamos por fazer coisas que não são muito produtivas. Quando falamos de grandes ameaças como a crise climática, que nem sabemos bem como lidar, nada melhor que tentar ser racional. Não melhora enfiar a cabeça na terra nem agir de forma emotiva. Agir em pânico é muito pouco eficaz.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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