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Quando a terra tremeu pela primeira vez na madrugada desta segunda-feira, a filha de sete anos de Abdulkafi Alhamdo virou-se para o pai e perguntou “Pai, isto é o Assad e o Putin?”. O professor de Aleppo contou à rádio canadiana CBC que foram assim aqueles primeiros momentos quando se deu o primeiro abalo de 7,8 de magnitude, na escala de Richter. “Não, desta vez não é”, respondeu o pai à criança.
Não seria estranho se fosse. A cidade de Aleppo é controlada pelo regime sírio, liderado por Bashar al-Assad, desde 2016, altura em que Assad — com a ajuda das tropas russas — conquistou a maior parte da cidade. Algumas zonas, porém, são ainda geridas pelas milícias curdas YPG, incluindo este local nos arredores onde a família Alhmdo vive.
A casa deste professor continua de pé depois dos sismos, mas, quando Abdulkafi saiu à rua, percebeu que muitos dos seus vizinhos não tiveram a mesma sorte. E este sírio teme pelo que poderá acontecer nos próximos dias. É que nesta zona de Aleppo, já há muito que a comida e os cuidados médicos escasseiam, fruto da guerra civil de 12 anos que tem lugar no país. Quando o professor falou com a CBC, cerca de 40 horas depois do sismo, ainda não tinha ali chegado nenhuma forma de ajuda.
Este bairro de Aleppo está longe de ser uma exceção. Por todo o noroeste da Síria há aldeias que ficaram arrasadas, pessoas que perderam as casas e uma falta de capacidade de resposta das autoridades locais e das próprias ONG, por consequência da guerra. Ao todo, já há pelo menos 2.600 mortos confirmados no país e o número deverá certamente subir — já que, sem maquinaria pesada suficiente, ainda não é possível começar a retirar os destroços e encontrar mais vítimas.
Os milhares de sobreviventes enfrentam um futuro negro. Antes do terramoto, 3,1 milhões dos 4,5 que vivem no noroeste da Síria já precisavam de ajuda médica; a grande maioria são deslocados, vindos de outras zonas do país, para fugir aos combates; 90% dependia de ajuda humanitária para viver, num local onde 65% das infraestruturas básicas estavam destruídas ou danificadas. As condições do dia-a-dia eram tão limitadas que, como descreve o The New York Times, neste inverno a maioria dos habitantes queimou cascas de pistáchio para se aquecer e tomou apenas um banho por semana. As condições de higiene são tão parcas que a região enfrenta desde agosto um surto de cólera.
Basta imaginar como estes números se irão agravar agora, quando um desastre natural desta dimensão se abateu sobre esta parte do país. “Em qualquer outro lugar do mundo, isto seria uma emergência. Aquilo que temos na Síria é uma emergência dentro de uma emergência”, resumiu ao Times o porta-voz do International Rescue Committee, Mark Kaye. E a política de uma guerra que ainda não está oficialmente ganha promete complicar tudo.
A mobília queimada para aquecer os vivos e os mortos transportados em carrinhas de gelados
Os relatos que chegam daquela zona da Síria — onde quase não há presença de jornalistas internacionais e onde poucas ONG têm equipas permanentes — dão conta de situações limite. À Al-Jazeera, uma responsável da UNICEF em Latakia diz que em Aleppo há quem esteja a queimar mobiliário das escolas para se aquecer, perante as temperaturas extremas que se vivem na região nesta altura do ano.
Outra testemunha conta que num hospital em Salqin os cadáveres estão a ser deixados à porta, por não haver espaço lá dentro. Raphaël Pitti, dos Médicos Sem Fronteiras, disse à Radio France International que em Idlib há apenas 70 camas de reanimação disponíveis e falta oxigénio nos hospitais. “O que podemos esperar é que nos próximos dias o número de mortos seja muito elevado”, vaticinou.
A Agência France-Press testemunhou essa vaga de mortandade num cemitério em Aleppo, para onde os cadáveres chegam a ser transportados em camiões que costumam levar gelados. “Chegou um grupo com os corpos de 11 membros da família. Pediram ao coveiro para reservar mais uma cova para um 12.º corpo — de um familiar ainda preso depois dos destroços”, descreveu a AFP.
Ao mesmo tempo, a oportunidade para resgatar vítimas ainda vivas dos escombros começa a esgotar-se. Os “Capacetes Brancos”, uma das poucas organizações que atua em algumas das regiões controladas pelos rebeldes, têm dado conta dos seus esforços de resgate, mas dizem-se impotentes. “Precisamos de mais técnicos e de mais equipamento de resgate, de peças, de combustível para as ambulâncias”, confessou um porta-voz do grupo à BBC, acrescentando que precisam “desesperadamente da comunidade internacional”.
هيبة الموت…. وضجيج البحث الحياة
جنديرس في ريف #حلب اليوم الثلاثاء الثلاثاء 7 شباط، أثناء البحث عن ناجين تحت الأنقاض بعد زلزال مدمر ضرب شمال غربي #سوريا أمس الاثنين 6 شباط. #الخوذ_البيضاء #زلزال_سوريا #سوريا pic.twitter.com/Rp0ZpxnWmP— الدفاع المدني السوري (@SyriaCivilDefe) February 7, 2023
O país onde a ajuda humanitária “é politizada” e as ONG não chegam a todo o lado
As ONG que estão presentes no terreno tentam ajudar como podem, mas os seus stocks já estão limitados. Joshua Landis, académico da Universidade de Oklahoma e autor do blogue Syria Comment, lembra que o auxílio alimentar à Síria, por exemplo, tem estado em queda acentuada desde o início da guerra da Ucrânia por dois fatores: por um lado, porque “as pessoas estão a enviar dinheiro para a Ucrânia e a esquecerem-se da Síria”; por outro, porque a inflação associada a esse conflito está a fazer com que a alimentação doada esteja efetivamente a reduzir.
Para além disso, apesar de estarem disponíveis para auxiliar em todo o país, muitas das organizações não conseguem ir a determinadas partes do território, por estarem efetivamente sob o controlo dos rebeldes e não do governo sírio. Na Síria, a ajuda humanitária, resumiu um dos diretores regionais da Cruz Vermelha Internacional ao Washington Post, é “politizada”. “Não estamos presentes em Idlib e noutras áreas. Não temos acesso por razões políticas, não por razões humanitárias”, acrescentou Fabrizio Carboni noutra entrevista.
A chegada de mais donativos é travada por questões logísticas associadas a essa disputa de território entre o regime de Damasco e os rebeldes, que incluem uma mistura de atores tão heterodoxos como grupos pró-turcos, curdos, rebeldes sírios e grupos considerados jihadistas pelo Ocidente como o Hayat Tahrir al-Sham (com ligações à Al-Qaeda). “A Síria ainda é uma zona cinzenta do ponto de vista legal e diplomático”, resumiu à AFP Marc Schakal, responsável dos Médicos Sem Fronteiras no país.
Na prática, atualmente o único ponto de entrada para as zonas rebeldes no noroeste da Síria, a partir da fronteira com a Turquia, é a passagem de Bab al-Hawa, cujas estradas de acesso foram agora danificadas pelo terramoto. Isto porque as restantes passagens foram fechadas em 2020, devido ao veto da Rússia no Conselho de Segurança da ONU, que invocou a soberania do governo de Assad sobre aquele território como essencial.
É por esta razão que a ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, pediu esta terça-feira ao executivo de Vladimir Putin que exerça influência para que sejam abertos mais corredores de acesso à região. Damasco, porém, está irredutível: “Se alguém quer ajudar a Síria, pode coordenar-se com o governo”, afirmou o enviado do país nas Nações Unidas, Bassam Sabbagh.
É isso que os países aliados de Assad — ou que têm registado maior aproximação — têm feito. Irão, Rússia, Iraque, Argélia e Emirados Árabes Unidos já enviaram ajuda humanitária diretamente para aeroportos controlados pelo regime em toda a Síria. O governo procede depois à distribuição nas zonas do noroeste da Síria que controla, muitas vezes com a ajuda das tropas russas — como confirma uma notícia da agência de Moscovo Interfax, que dá conta de como o exército do país já distribuiu comida em partes de Aleppo.
O braço-de-ferro de Assad: “Têm de trabalhar comigo ou através de mim”
Mas se os aliados colaboram sem problemas com Assad, os países que se opõem ao regime não sabem exatamente como podem enviar essa ajuda sem que a distribuição seja controlada pelo regime de Damasco. Os Estados Unidos afirmaram claramente que não irão colaborar com Assad, já que seria “algo irónico, se não mesmo contraproducente, contactar com um governo que brutalizou o seu povo ao longo de 12 anos”, nas palavras do porta-voz do Departamento de Estado, Ned Price.
O governo sírio responde, dizendo que os sírios “escavam os destroços à mão” por não terem acesso às ferramentas banidas pelas sanções norte-americanas. Embora Washington tenha um regime de sanções aplicado à Síria, a ajuda humanitária está fora deste âmbito e os norte-americanos dizem-se disponíveis para a enviar através das ONG no terreno.
As críticas do regime de Assad não visam apenas os EUA. Na segunda-feira, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse que tinha recebido um pedido de ajuda do governo sírio e que tencionava responder. Horas depois, Damasco negou ter feito tal pedido e acusou Netanyahu de estar a “explorar a catástrofe” para fins políticos.
Sobra a União Europeia, a quem o regime sírio pediu oficialmente apoio esta quarta-feira, através do Mecanismo Europeu de Proteção Civil — apesar de a Europa também ter sancionado o regime de Assad. A Comissão Europeia disse estar a “encorajar” os Estados-membros a participarem numa missão, mas também anunciou que irá monitorizar de perto a entrega de ajuda humanitária, para garantir que esta “não é desviada”. É que não seria a primeira vez que o regime de Damasco impedia que a alimentação e apoio médico chegassem a quem de direito: no passado, os Estados Unidos acusaram o regime nas Nações Unidas de ter chegado a desviar leite em pó que tinha como destino zonas controladas pelos rebeldes.
E a situação é particularmente grave se tivermos em conta que a maior parte das zonas afetadas pelo sismo na Síria “parecem ser controladas pela oposição ligada à Turquia e não pelo governo sírio”, alertou Mark Lowcock, ex-responsável de Assuntos Humanitários na ONU. “É pouco provável que o governo sírio faça alguma coisa para ajudar”.
Aron Lund, especialista na Síria da Century Fundation, resumiu a situação ao The Guardian como uma oportunidade perdida para Bashar al-Assad: “Se ele fosse esperto, permitia a entrega da ajuda às áreas fora do seu controlo e conseguia uma oportunidade para ser retratado como um ator responsável.” Em vez disso, prevê, o líder sírio irá querer usar a situação para mostrar aos governos estrangeiros que é quem tem maior força no terreno: “Têm de trabalhar comigo ou através de mim”, resume Lund.
Enquanto o braço-de-ferro diplomático continua, no terreno os sírios testemunham que não está a chegar ajuda à maior parte das zonas controladas pelos rebeldes. “Pela passagem de Bab al-Hawa só passou uma equipa técnica egípcia de 20 pessoas, incluindo médicos, sem equipamento”, disse um responsável dos “Capacetes Brancos” à Al-Jazeera.
Um dos coordenadores residentes da ONU na Síria, El-Mostafa Benlamlih, deixou um apelo emocionado aos vários atores esta quarta-feira: “Coloquem a política de lado e deixem-nos fazer o nosso trabalho humanitário. Não podemos dar-nos ao luxo de ficar à espera enquanto negociamos, quando acabarmos está tudo terminado”. Mas, a avaliar pelo historial dos apelos das Nações Unidas a propósito da guerra na Síria, o mais provável é tudo continuar na mesma.