Se não estiver em rodagem, o mais certo é que Soraia Chaves esteja bem longe de Portugal, muitas vezes sem rede no telefone ou acesso à Internet. Por sorte, conseguiu ver o email da agente a falar-lhe de Um Rei na Boca do Inferno. “Estava no Sri Lanka e fiquei logo empolgada. Fui ouvir os podcasts anteriores e disse logo que sim”, recorda ao Observador.
Os episódios de mais um título da série Podcast Plus estão já todos disponíveis e contam com a atriz como narradora (é a voz da. Para este desafio diferente, foi buscar experiência à representação: “Temos de transportar o ouvinte para a cena que estamos a narrar. É uma peça jornalística, mas conseguem transformá-la numa cena quase cinematográfica”.
Atualmente vive afastada da cidade, dedica-se cada vez mais à meditação e sente que aproveita realmente todos os momentos importantes. Porém, cresceu num ambiente muito mais agitado, mas “imensamente feliz”. Em casa eram cinco irmãs e é sempre a imagem de uma mão cheia de miúdas a correrem de um lado para o outro que lhe vem à cabeça quando pensa na infância. “A praia, o mar e os passeios de bicicleta” na Costa da Caparica estão igualmente presentes em todas as memórias.
Na escadinha das idades, Soraia Chaves é a quarta de cinco — tem três irmãs mais velhas e uma mais nova. A casa de família ainda existe e é onde os pais continuam a viver. “Nasci em Lisboa, mas vivi lá a partir dos cinco anos e ainda é bom ter esse cantinho porque, para mim, a família é o meu porto seguro. Tenho agora 42 anos, mas há momentos em que continuo a querer ir para aquele quartinho.”
O pai é o sonhador da família, a mãe sempre teve os pés na terra, mas para Soraia Chaves esse acordo mútuo funciona na perfeição. “Nascemos literalmente num berço de amor e de proteção. O que os meus pais fizeram por mim, fizeram por todas, que foi dar-nos a oportunidade de tentar aquilo que queríamos. Aliás, fazemos todas coisas muito diferentes.”
Apesar de uma infância livre, quando tinha 14 anos “já só queria descobrir o mundo”, recorda. “Queria ser independente e comecei a procurar formas de fazê-lo.” Encontrou o que pretendia no mundo da moda — “esse glamour estava muito na berra nos anos 90”. Procurou uma agência e começou a fazer trabalhos como modelo. Os pais acompanhavam-na sempre — incluindo a uma viagem a Nice, França, onde foi representar Portugal numa competição internacional, depois de se ter sagrado vencedora do concurso Elite Model Look Portugal.
“Apesar de estar acompanhada pela organização, de ter hotel, de ter tudo tratado, os meus pais fizeram questão de ir. Meteram-se no carro com uma das minhas irmãs e uma prima e foram até Nice. Ainda hoje falam dessa aventura.”
Com o primeiro ordenado comprou um bilhete para Londres e levou uma das irmãs. Nessa altura já tinha uma avidez por viagens, que começou provavelmente com um intercâmbio do 10.º ano que a levou a passar uma semana em casa de um aluno de Roma, Itália, e vice-versa.
Os trabalhos sucederam-se, mas os estudos continuaram até ao 12.º ano. Por essa altura, a paixão pelo cinema já estava enraizada, mesmo que Soraia Chaves ainda não tivesse percebido que o caminho a seguir seria o da representação. “O meu pai tinha uma coleção gigante de filmes e grande parte do nosso tempo, quando éramos miúdas, era passado precisamente a ver esses filmes. Sempre senti que queria fazer qualquer coisa daquele género — não sabia se seria bailarina, cantora ou atriz, mas tinha um fascínio incrível pelo cinema.”
Tímida e reservada, percebeu com as primeiras sessões fotográficas que se transformava por completo perante uma câmara. “Anos mais tarde, vi as imagens da primeira sessão de todas e fiquei espantada. Não era eu aquela menina, tinha uma forma de me transportar de forma instintiva para outro mundo. Ali já encarnava outra personagem”, recorda.
O plano era ir estudar teatro, já que soube desde sempre que a moda não seria um projeto para alimentar a longo prazo. Porém, com os trabalhos a surgirem uns atrás dos outros, a formação foi sendo sucessivamente adiada. Aos 21 anos começou a ficar cansada da vida de modelo e, durante uma viagem à África do Sul, onde passou dois meses a trabalhar, definiu os passos seguintes. “Queria ser atriz mas não fazia ideia que passos dar, ninguém na minha família era dessa área, fui descobrindo tudo sozinha. Então pensei: ‘Vou para Londres estudar representação’.”
Regressou a Portugal e, no dia seguinte, recebeu uma chamada que acabaria por definir toda a sua carreira. “A Patrícia Vasconcelos ligou-me para ir fazer um casting para O Crime do Padre Amaro. Já tinha feito um casting aos 17 anos, mas não tinha conseguido o papel, portanto aquilo, naquele momento, pareceu-me uma coincidência surreal.”
O projeto, que começou como uma série para a SIC, transformou-se depois em filme, conseguindo mais tarde tornar-se no filme mais visto em Portugal em 2005.
Percebendo que Soraia Chaves não tinha qualquer experiência no cinema, um dos produtores colocou-a a fazer formação com o realizador João Canijo. “Esses três meses foram a minha primeira escola. De repente já não ia para Londres, a vida estava a oferecer-me aquilo e eu aproveitei ao máximo.”
Não estava preparada para as repercussões de ter interpretado Amélia, uma jovem sensual que se envolve com o padre que protagoniza a história, e demorou a descolar-se dessa imagem de sex symbol. “Expus o meu corpo sem medos e sem pudor, simplesmente aceitando isso como fazendo parte da minha natureza. Até hoje continuo a acreditar nisso.”
Para muitos, a estreia de Soraia Chaves enquanto atriz resumiu-se a essa questão: a exposição do corpo. Porém, apesar de ter pouco mais de 20 anos, teve a capacidade de não permitir que a encaixassem nessa imagem. “Claro que me abalou, mas consegui defender-me porque sabia qual o caminho que queria para mim. Nunca deixei que me objetificassem.”
Decidiu afastar-se e foi estudar para fora de Portugal. Fez workshops em Nova Iorque (EUA) e Moscovo (Rússia). Estava precisamente nos EUA quando recebeu o guião de Call Girl, de António-Pedro Vasconcelos. Meteu-se num avião e voltou para Portugal para fazer o casting, tinha a certeza de que o papel de Maria era para ela.
Com o filme estreado em 2007 correu novamente o risco de ficar presa a um preconceito. “Ele [António-Pedro Vasconcelos] foi uma pessoa extremamente importante na minha vida e na minha carreira porque conseguiu identificar o preconceito que acontecia à minha volta. Deu-me um papel feminino fortíssimo que, mais uma vez, veio chocar. Era uma mulher sexual, sim, não tinha qualquer pudor e, se fosse preciso, ia usar esse poder. Senti que essa falta de pudor era um empoderamento para a posição da mulher na sociedade.”
Call Girl (2007) valeu a Soraia Chaves um Globo de Ouro de Melhor Atriz e uma ligação profissional a António-Pedro Vasconcelos (seguiram-se A Bela e o Paparazzo e Amor Impossível) e de admiração mútua que durou até à morte do realizador, em março de 2024.
Nova etapa, nova mudança: para Madrid seguiu a fim de estudar na escola Juan Carlos Corazza, mas dos quatro anos de curso de representação só fez dois, por não conseguir conciliar o trabalho e os estudos. Sentia-se bem em Espanha porque passava completamente despercebida.
“Ainda hoje tenho dificuldade em falar do lado mais pessoal, em dar entrevistas, talvez porque não me tenha sentido muito respeitada no início. Quando foi aquele boom de O Crime do Padre Amaro, as notícias que saíram, a forma como os artigos foram escritos — era tudo tão distante da minha realidade que me deixou desconfortável. Ganhei uma certa fobia a essa exposição, fobia essa que demorei alguns anos a tratar.”
É reservada e gosta de passar despercebida. Veste quase sempre calças de ganga, calça uns ténis e usa uma T-shirt básica. No entanto, garante que isso não a inibe de frequentar todos os sítios que quer. “Quando fui para Madrid fugi realmente a esse contacto, mas agora estou demasiado livre para deixar que isso aconteça. E, tendo em conta as histórias que oiço de colegas estrangeiros, aqui temos um público que respeita bastante a nossa privacidade. As pessoas são muito simpáticas quando me abordam.”
Quando lhe perguntam sobre a vida pessoal, já consegue dizer que não responde. “Desde o início que não falo sobre namorados. Sobre a maternidade já falei porque acho que é uma questão que influencia o papel da mulher na sociedade. Não sinto necessidade de explicar porque não quero ser mãe, mas acho importante deixar claro que pode ser só uma escolha. Ou pode haver ’n’ motivos e a pressão não ajuda nenhuma mulher. Acho importante uma mulher, seja figura pública ou não, poder dizer: ‘Eu não sou mãe e não tenho de explicar porquê’.”
Viajar é um dos seus maiores prazeres e fá-lo muitas vezes sozinha e durante vários meses. Europa, Ásia, América do Sul ou África já estão carimbados no passaporte, mas garante que ainda lhe falta conhecer muito mundo. No início do ano esteve no Nepal. A viagem foi interrompida a meio. “Levei todo o material para subir aos Himalaias e fazer um trekking de dez dias. Mas, foi tudo decidido à última hora, não me lembrei que era janeiro, logo o mês mais frio. Queria fazer meditação e assim era impossível.”
Descreve-se como uma “romântica a marcar viagens”. Parte com os voos de ida e regresso marcados — apesar de inúmeras vezes ter de trocar a volta por não partir do local previsto ou na data inicialmente definida. Leva uma mochila e reserva as primeiras noites num hotel confortável enquanto não conhece o país. A partir daí, vale tudo.
Ia decidida a fazer um retiro de meditação — já tinha feito um em Tomar que lhe trouxe tanta calma que ficou a vontade de experimentar mais. Porém, no Nepal não estava a funcionar. “As instalações lá são simples, não gosto de ir para sítios luxuosos. Estava a fazer ioga com duas camisolas, dois pares de meias, apanhei uma gripe. Tornou-se claro que não ia ter resistência para subir aos Himalaias.”
Procurou então uma alternativa com temperaturas mais elevadas para fazer um retiro e deixou tudo para trás: material de trekking e roupa de inverno. Destino seguinte: Tailândia, com uma mochila às costas completamente vazia. “Não tinha um único biquíni nem roupa de verão, mas acabei por lá ficar [na Tailândia] dois meses.”
O budismo é um tema que a tem fascinado e a que tem dedicado alguma atenção. Há mais de 20 anos, quando tinha 18, comprou O Livro Tibetano da Vida e da Morte, de Sogyal Rinpoche. “Nessa altura não tive capacidade para perceber o conteúdo, mas fiquei desde aí com uma curiosidade enorme em relação ao Nepal, ao Tibete e ao budismo.” Sempre foi muito intuitiva e recentemente tem dado mais importância à espiritualidade. “Sinto que já tive outra vida, muito urbana, a descobrir a arte nas grandes cidades. Depois, perto dos 40 anos, comecei a sentir que precisava de me ligar à natureza.”
Comprou uma casa nos arredores de Lisboa, mas a transição não foi tão fácil como esperava. “O engraçado é que não conseguia ficar, tive de voltar para a cidade.” Ainda assim, manteve a casa, onde agora vive finalmente. “Estou sempre a mudar de planos, mas agora tudo faz mais sentido. Comecei a sentir necessidade de apaziguar algumas lutas internas, a ansiedade, as dúvidas sobre o que estamos aqui a fazer e o que quero nas décadas que se seguem.”
Há alguns anos falou publicamente sobre uma depressão que atravessou. Tal como a questão da maternidade, sentiu que podia ajudar outras pessoas com o seu testemunho. “A saúde mental é tão importante quanto a física mas, por causa do tabu que existe, muitas vezes ignoramos. Eu própria adiei durante muito tempo aquilo que estava a passar, que era uma depressão prolongada.”
Não percebeu logo que o descontentamento que sentia não se devia apenas ao desagrado de algo que estava à sua volta. “Depois percebi que era uma coisa consistente, que tinha fases depressivas, fases positivas e fases negras. Temos de aprender a gerir e a viver com estas flutuações.”
Procurou ajuda profissional, “que fez toda a diferença”, e seguiu o conselho do primeiro terapeuta. “Falou-me da importância de uma figura pública falar abertamente sobre isso, porque poderia ajudar a desconstruir e a derrubar muitos obstáculos relativos à saúde mental. Sinto que as pessoas à nossa volta estão frágeis. Há que reconhecer e falar sobre isso.”
Soraia Chaves não tem medo de abordar temas complexos — nem na vida pessoal, nem na profissional. Por isso, tem colecionado personagens femininas fortes, como Natália Correia em 3 Mulheres (2018), ou Maria Luísa Paiva Monteiro, em A Generala (2020), uma figura verídica que se sentia presa num corpo que não era dela e que lutou contra os preconceitos à sua volta. Na novela da SIC que está a gravar agora, A Promessa, será Olga, mais uma personagem impactante (que ainda não apareceu no ecrã).
É para as gravações que segue quando terminamos a nossa conversa. Se se imagina a fazer o mesmo daqui a 10 ou 20 anos, pelo menos por equanto não sabe responder, mas tem a certeza de que “a paixão pela representação nunca vai desaparecer”.
Durante a pandemia, quando o futuro era incerto para todos, chegou a questionar se voltariam a fazer-se novelas. Imaginou então uma vida diferente. “Pensei: vou plantar um campo de alfazemas. Não me perguntes porquê alfazemas, mas chegava a sonhar com isso. Até fui pesquisar o que era preciso, mas precisava era de um terreno bem maior do que aquele que tenho agora.”
O plano das alfazemas está em pausa, pelo menos para já, enquanto ainda há muitas viagens para fazer, incluindo regressar ao Nepal. “Mas em janeiro não, isso é certo.”