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Mulher chora junto às lápides de um cemitério onde foram enterrados restos mortais de vítimas do massacre de Srebrenica
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Mulher chora junto às lápides de um cemitério onde foram enterrados restos mortais de vítimas do massacre de Srebrenica

AFP via Getty Images

Mulher chora junto às lápides de um cemitério onde foram enterrados restos mortais de vítimas do massacre de Srebrenica

AFP via Getty Images

Srebrenica. "A vida destas mulheres parou há 25 anos, quando todos os homens da sua família foram mortos"

O genocídio dos Balcãs, onde 8 mil morreram, foi há 25 anos. Serge Brammertz, ex-procurador principal do caso em Haia, fala ao Observador e prefere recordar mais as vítimas do que Karadžić e Mladić.

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Foi num dia quente, muito quente. Srebrenica, um enclave de maioria muçulmana encaixada na atual República Srpska — a parte da Bósnia-Herzegovina de maioria sérvia bósnia —, fora considerada pelas Nações Unidas como uma “área segura”. Em pleno conflito no rescaldo da dissolução da Jugoslávia, milhares de bosníacos (como são conhecidos os bósnios muçulmanos) precipitaram-se para a cidade, à procura de proteção das tropas sérvias bósnias. Os Capacetes Azuis, liderados por um batalhão holandês, garantiriam a proteção.

A 11 de julho, contudo, essa proteção revelou-se insuficiente. A ofensiva que vinha sendo levada a cabo há dias pelo exército sérvio bósnio, liderado por Ratko Mladić, foi finalmente bem sucedida. As tropas de Mladić tomaram conta de Srebrenica e deram início àquele que viria a ser o maior genocídio cometido em território europeu desde a II Guerra Mundial. Ao longo de 11 dias, todos os homens e rapazes encontrados pelas tropas sérvias foram transportados e subsequentemente assassinados e enterrados em valas comuns. As mulheres, que viriam a ser igualmente deportadas, foram sujeitas a violações sexuais em massa.

Algumas das mulheres transportadas de Srebrenica para Tulza, durante os dias do massacre

Sygma via Getty Images

Em 2016, o Tribunal Internacional para os Crimes da Jugoslávia criado em Haia, em 1993, condenou o líder dos sérvios bósnios, Radovan Karadžić, a 40 anos de prisão por vários crimes de guerra, entre eles o de ter ordenado um genocídio em Srebrenica. No ano seguinte, seria a vez de Mladić, que atuou no terreno, ficando para sempre conhecido como “O Carniceiro da Bósnia”. Pelo meio, ambos estiveram fugidos durante anos, muito graças à proteção da Sérvia de Slobodan Milošević.

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Serge Brammertz foi o procurador-principal do processo em Haia que levou à condenação dos dois homens. Em entrevista ao Observador, reflete sobre o papel dos sobreviventes no julgamento, a maioria mulheres como Munira Subašić: “Ela diz-me que perder um filho é a mesma dor para todas as mães”, independentemente “do lado do conflito em que se estava”, conta o jurista. Mas Brammertz também não esquece as atrocidades que aconteceram em Srebrenica e destaca constantemente a violência sobre os que sobreviveram, como os rapazes que “se esconderam nas valas comuns, junto a centenas de cadáveres, até se fazer noite e conseguirem finalmente sair”.

Serge Brammertz, numa conferência de imprensa no Tribunal de Haia, onde foi nomeado procurador principal para os Crimes da Jugoslávia em 2008

Getty Images

O procurador belga não tem também pudor em reconhecer o “falhanço” da ONU e da comunidade internacional no terreno e assume que o Tribunal para a Jugoslávia não conseguiu incutir a ideia de “Nunca Mais” em todo o mundo, como Nuremberga fez em tempos. “Basta olhar para o que se passa na Síria ou no Iémen, onde os números de vítimas são ainda maiores do que aqueles que se registaram nos países da antiga Jugoslávia”, reconhece. E Brammertz teme ainda pelo futuro, sobretudo na Sérvia, na Bósnia e na Croácia, onde o foco continua firmemente preso no passado e a expiação dos crimes de guerra não foi feita. “Na Sérvia, quando se rouba uma bicicleta, fica-se com isso no cadastro. Mas quando se é condenado por genocídio em Haia, isso não entra no cadastro — e pode concorrer-se a cargos políticos. Tudo isto devia ser absolutamente inaceitável.

“Karadžić só foi detido em 2008 e Mladić em 2011. Estas pessoas continuam a ser muito poderosas e a ter muita gente que os protege”

O Tribunal Internacional para os Crimes da Jugoslávia foi criado em 1993 e o massacre de Srebrenica aconteceu em 1995. Como é que se envolveu neste processo e se tornou o procurador principal dos crimes que ali aconteceram?
Comecei a trabalhar como procurador na Bélgica, em 1989, portanto já trabalhava como procurador antes de rebentarem as guerras na antiga Jugoslávia. Claro que, como todos os cidadãos europeus, vi o que estava a acontecer ali nos anos 90 e fiquei chocado. Eu tinha estado de férias naquela parte da Europa! Ninguém imaginava que viria a ocorrer ali um genocídio daquela dimensão, no meio do continente europeu.

Entretanto, a minha carreira como procurador na Bélgica foi evoluindo. Trabalhei em Bruxelas na Rede Judicial Europeia, inclusivamente com colegas de Portugal, porque Portugal e Bélgica são ambos países muito ativos na promoção da cooperação internacional. E depois, alguns anos mais tarde, entrei no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Em 2008, fui nomeado para suceder a Carla del Ponte, a procuradora-chefe do TPI. Portanto não foi algo muito planeado. Nessa altura, no fim da mandato de Del Ponte, o grande desafio era: irão Karadžić e Mladić ser detidos ou irá o tribunal fechar sem que aquelas duas pessoas sejam trazidas à justiça? Esse era o grande desafio quando lá cheguei e queríamos muito apanhar os dois mentores da guerra na Bósnia-Herzegovina e, em particular, autores do que aconteceu em Srebernica.

Ao início, a questão nem era se eles seriam condenados, era se seria possível tê-los em tribunal?
Sim. Lembro-me como se fosse ontem. Quando assumi o cargo, a comunidade diplomática, as vítimas, todos estavam pessimistas, porque, à altura, o plano de encerrar o tribunal já estava em marcha. Milošević acabou por morrer antes disso [em 2006], mas sentíamos que, se o tribunal encerrasse antes de conseguirmos deter Karadžić e Mladić, esse seria um capítulo muito negro na História da justiça internacional.

Portanto, em 2008, esse era o meu principal foco e da minha equipa. E nunca esquecerei o meu primeiro encontro com as Mães de Srebrenica. Era tão óbvio… Aquelas sobreviventes ainda hoje vivem numa situação muito difícil. A vida delas parou há 25 anos, quando alguém matou o seu filho, o seu marido, o seu pai. Foram todos brutalmente executados durante aquele genocídio em Srebrenica. Mas elas não se queixavam da sua situação ou das suas vidas difíceis. Elas só diziam que a sua principal prioridade era ver os responsáveis detidos e acusados. Quando isso aconteceu, os nossos pensamentos estavam com elas. Elas queriam que o julgamento acontecesse e que fosse feita justiça.

Brammertz (à direita), no início da sua carreira em Haia

AFP via Getty Images

E demorou bastante tempo a conseguir que a justiça sérvia cooperasse…
Sim. O genocídio foi em 1995. Karadžić só foi detido em 2008 e Mladić em 2011. Este sempre foi o grande problema dos tribunais internacionais: enquanto o conflito ainda perdura, estas pessoas continuam a ser muito poderosas e a ter muita gente que os protege. Mas o tempo joga contra elas, porque à medida que passa eles vão perdendo apoio, a sua rede de apoiantes vai diminuindo e começa a tornar-se mais provável que os procuradores internacionais consigam apanhá-los.

Quando Mladić e Karadžić foram finalmente presentes a tribunal e o julgamento pôde arrancar, sentia que tinha matéria suficiente para uma condenação por genocídio? Ou temia que fosse difícil provar que a intenção das tropas sérvias não era apenas a de conquistar militarmente aquele enclave, mas sim a de levar a cabo uma limpeza étnica?
A vantagem de um julgamento como este ter começado anos depois do crime é que tínhamos dezenas e dezenas de outros casos que tinham sido presentes a tribunal, e que estavam relacionados com Srebrenica, onde um grande número de pessoas já tinha sido condenado. Logo, já tínhamos testado as nossas provas muitas vezes. Por exemplo, os sobreviventes que evitaram ser executados, as comunicações via rádio de Mladić com quem estava no terreno, os relatórios forenses, as valas comuns… Por isso estávamos relativamente confiantes de que iríamos conseguir uma condenação. É claro que só podemos ter a certeza quando há um veredito e é verdade que ainda estamos à espera de uma confirmação da sentença no processo de recurso de Mladić. Mas, como procurador, fiquei obviamente muito satisfeito que ambos tenham recebido penas de prisão perpétua.

“Os únicos heróis que conheci ao longo destes dez anos são os sobreviventes que testemunharam em tribunal”

Que papel é que considera que as testemunhas tiveram neste julgamento? Porque existem muitos sobreviventes, a maioria mulheres que viram homens e rapazes serem mortos, mas que também elas foram vítimas de outro tipo de violência, como serem violadas. Imagino que o testemunho emotivo delas em tribunal possa ter sido relevante.
Sim, sem dúvida. As pessoas pensam sempre neste genocídio como os oito mil homens e rapazes que foram executados, mas outro parte fulcral da história do genocídio é que quase 40 mil crianças, mulheres e idosos foram forçados a sair daquela região. Essa limpeza étnica é obviamente também parte do genocídio.
As testemunhas foram absolutamente essenciais. Tivemos mais de quatro mil testemunhos de sobreviventes que foram a tribunal. Alguns eram vítimas de violência sexual. Outros eram sobreviventes que viram os seus entes queridos serem levados e executados. E alguns eram também rapazes à altura que, à medida que cerca de mil pessoas iam sendo mortas a tiro ao longo de algumas horas, se esconderam nas valas comuns, junto a centenas de cadáveres, até se fazer noite e conseguirem finalmente sair. É claro que muitos enfrentam problemas psicológicos, mas conseguiram sempre reunir forças para voltar a testemunhar uma e outra vez. Alguns contaram a sua história ali cinco ou seis vezes. E para os juízes é muito importante ouvir a história pela boca dos sobreviventes, para entender a gravidade do caso.

Os testemunhos das mulheres que sobreviveram a Srebrenica foram fulcrais para as condenações por genocídio

AFP via Getty Images

Como procurador, como é que se lida não apenas com uma história trágica, mas com centenas de relatos de pessoas a contarem coisas como terem sido vítimas de violência sexual ou terem-se escondido numa vala comum durante horas? Uma história já é dura, aqui falamos de centenas. Emocionalmente, foi esgotante?
É claro que ninguém consegue ouvir estas histórias sem ficar emocionalmente marcado pela tristeza que está por trás delas. Perguntei-me a mim mesmo ao longo da minha carreira, várias vezes, como é possível que seres humanos façam coisas destas a outros seres humanos. De uma perspetiva humana, não faz qualquer sentido. Mas para mim e para a minha equipa, acabou por ser muito gratificante termos feito um trabalho que foi bem sucedido e que tinha significado. É claro que as histórias dos sobreviventes são muito tristes, mas ao falarmos com eles recordamo-nos de por que é que o nosso trabalho é tão importante e por que é importante trazer criminosos de guerra à justiça.

Digo isto muitas vezes, porque nos media lemos e vimos muitas vezes mais coisas sobre os criminosos, sobre Karadžić e Mladić, sobre aquilo que eles disseram em tribunal ou sobre a sua aparência. A triste realidade é que estes criminosos de guerra ainda são vistos como heróis nas suas comunidades pelos massacres que cometeram — e isso, por si só, é um escândalo. Aquilo que digo sempre é que estes tipos são o oposto de heróis… Um herói é alguém que demonstra humanidade num contexto de conflito. Estes homens foram condenados porque violaram a Convenção de Genebra, porque executaram prisioneiros, porque enviaram soldados para cometer violações em massa. Eles destruíram casas de civis, mataram mulheres e crianças. Aquilo que gostava mesmo de sublinhar é que os únicos heróis que conheci ao longo destes dez anos são os sobreviventes que testemunharam em tribunal e que, apesar do imenso sofrimento que sentiam, voltaram uma e outra vez. Para alguns foi extremamente difícil, do ponto de vista emocional, mas outros sentiram que aquele era o momento mais importante, em que podiam contar a sua história. No fim de contas, é claro que este não é um trabalho fácil, do ponto de vista pessoal. Mas creio que o reconhecimento que recebemos dos sobreviventes pelo trabalho que fizemos tornou isto um privilégio.

Como foi a reação em tribunal, quando o veredito foi lido?
Não estive no tribunal nesse dia, porque deixei as alegações finais para os meus colegas que tinham feito as sessões em tribunal. Mas é claro que estava a acompanhar em direto e foi um momento de grande satisfação profissional. Os nossos pensamentos foram de imediato para os sobreviventes que estavam sentados nas galerias e que choraram, gritaram, soltaram todas as emoções. Após um veredito, costumo reunir-me com a minha equipa e, dessa vez, chamámos para o meu gabinete alguns dos sobreviventes. Foi um momento muito pessoal e sinto que foi muito importante estarmos juntos e reconhecermos que um capítulo importante tinha sido ali alcançado: os mentores de um genocídio iriam agora passar o resto da sua vida na prisão.

Falava há pouco em como foi difícil retirar o foco de Karadžić e Mladić e tentar antes colocá-lo nas vítimas. E não foi também difícil atravessar o julgamento sem cair na tentação de os ver simplesmente como figuras malévolas? Como é que se mantém o distanciamento e a simples ideia de conseguir justiça? Como não os tornar heróis, mas também como não fazer deles vilões, no fundo?
É aqui que é importante mostrar que somos diferentes destes homens. Que, mesmo relativamente a indivíduos que foram responsáveis pela morte de milhares de pessoas, demonstramos a humanidade necessária ao olhar para os factos e para os crimes. Pessoalmente, não tenho sentimentos em relação aqueles indivíduos. Prefiro antes olhar para os crimes que cometeram e conseguir uma condenação. Não estou ali para fazer uma análise psicológica, para compreender como algo assim pode acontecer. Estou ali para conseguir uma condenação e ficámos muito contentes com esse resultado.

Radovan Karadžić durante o julgamento em Haia

POOL/AFP via Getty Images

Dito isto, acho mesmo importante marcar a diferença entre aqueles criminosos de guerra e a justiça que representamos. Demonstrámos que não agimos com a mesma brutalidade, mas sim que respondemos com humanidade, ao levar a cabo um julgamento justo, onde os direitos da defesa foram respeitados. E, no final de tudo, tivemos um julgamento que serviu para demonstrar a magnitude dos crimes cometidos e a responsabilidade dos indivíduos diretamente ligados a esses crimes.

“Toda a gente já aceita que Srebrenica foi um falhanço e que a comunidade internacional devia ter feito mais”

Como analisa o papel da comunidade internacional relativamente à guerra nos Balcãs e, em particular, em relação a Srebrenica? Houve de facto alguma responsabilidade por parte das Nações Unidas e, em particular, do batalhão holandês de Capacetes Azuis no que aconteceu… O  julgamento ajudou a que tal fosse reconhecido?
Creio que as Nações Unidas e a comunidade internacional em geral já reconheceram que falharam em Srebrenica. Era uma área protegida pela ONU e não devia ter sido possível que as tropas sérvias bósnias tivessem tomado o controlo da área tão rapidamente e executado tanta gente. Acho que toda a gente já aceita que foi um falhanço e que a comunidade internacional devia ter feito mais. Também acho que já foi compreendido que, no terreno, uma centena de soldados holandeses, com poucas armas nas mãos, não era suficiente. Mas este é um debate que ainda continua e é claro que foi uma parte do problema. No entanto, o julgamento não foi sobre o papel da comunidade internacional e sobre se ela podia ter impedido o massacre. O julgamento foi sobre os responsáveis diretos pela matança.

Dois dos principais comandantes dos Capacetes Azuis, responsáveis pela segurança dos que estavam em Srebrenica

AFP via Getty Images

Passaram-se 25 anos e, contudo, ainda há cerca de mil pessoas cujos restos mortais nunca foram encontrados. Este sábado é dia de mais uma cerimónia fúnebre de mais nove vítimas, que entretanto tiveram os corpos recuperados. Como é que este problema se arrasta há tanto tempo?
Uma das partes mais negras desta história é que o Tribunal Criminal para a Jugoslávia foi criado em 1994 e o massacre de Srebrenica aconteceu um ano depois. Há a ideia de que, se a justiça funcionar como dissuasora, isso tem um impacto e impede que sejam cometidos crimes. Bem, Srebrenica mostrou-nos que não é sempre assim. O genocídio aconteceu quando o tribunal já estava a funcionar. Durante muitos meses foi do domínio público a informação de que oito mil homens e rapazes tinham desaparecido e que ninguém sabia onde estavam. Depois, no Conselho de Segurança, foram mostradas imagens de satélite e alguns sobreviventes vieram a público falar na matança de milhares de pessoas, mas ninguém tinha ainda visto as provas. Foi preciso mais de um ano até o primeiro investigador do tribunal conseguir chegar ao terreno. E, durante esse ano, as forças sérvias bósnias aproveitaram para transportar milhares de corpos das primeiras valas comuns para muitas dezenas de valas secundárias e terciárias. Ou seja, quando o nosso investigador chegou a Srebrenica, só se encontraram 200 ou 300 corpos num local onde, segundo as testemunhas, deviam estar milhares.

Foi preciso tempo ao longo da investigação para ir descobrindo essas valas secundárias. E é muito macabro, porque as forças sérvias usaram maquinaria pesada e vários corpos foram desmembrados. Por isso, ao longo dos anos, foram encontrados restos mortais da mesma pessoa em diferentes locais. Já imaginou o que é para um familiar ir recebendo, ao longo dos anos, vários telefonemas para lhes dizerem que encontraram o seu filho, mas que é apenas parte do corpo? E, dois anos depois, receber outro telefonema? E foi muito difícil para os investigadores ligarem as valas comuns secundárias às valas principais, porque era necessário provar que todos eles tinham sido mortos no mesmo dia, mais coisa menos coisa. Por isso tivemos de usar amostras do solo, analisar balas e tentar estabelecer que tinham sido mortos pela mesma arma, por exemplo. Foram feitas mais de mil análises de ADN para ligar restos mortais.

Os restos mortais dos 8 mil homens assassinados em Srebrenica foram espalhados pela República Srpska. Ainda hoje é mil cadáveres por encontrar

Getty Images

Isto significa também que se encontram valas mais pequenas a cada um ano, ao longo dos últimos 25 anos. A cada 11 de julho, os corpos que foram encontrados e identificados são enterrados e continuamos a ter mil pessoas que desapareceram no genocídio de Srebrenica. Temo que durante muitos anos no futuro continuaremos a ir à mesma cerimónia a cada 11 de julho, onde se enterram novas vítimas que foram encontradas e identificadas entretanto e cujas famílias estiveram mais de 25 anos à espera para saber do seu paradeiro. Continua a ser um exercício muito doloroso e é por isso que isto não é apenas um evento histórico que aconteceu há 25 anos. Isto continua a ser o centro da vida destas mulheres, cuja vida parou de certa forma há 25 anos, quando todos os homens da sua família foram mortos. Por exemplo, a líder das Mães de Srebrenica, Munira Subašić. Aproximei-me muito dela ao longo destes dez anos e ela tornou-se quase uma mãe para mim também… Ao todo, 25 membros da sua família foram assassinados ao longo daqueles dias. Para estes sobreviventes, isto permanece na sua cabeça todas as manhãs, todas as noites…

Continuam numa espécie de luto perpétuo.
Sim, nunca acaba. E estas mulheres de Srebrenica são tão impressionantes, são tão fortes. A Munira, por exemplo, é uma mulher super poderosa, carismática, energética, mas também gentil. Quando falo com ela sobre Karadžić e Mladić, ela diz-me que perder um filho é a mesma dor para todas as mães. Incluindo para as do outro lado, cujos filhos eram soldados e morreram em combate. Ela reconhece que é sempre dramático, não importa de que lado do conflito se estava. E por isso é uma pessoa muito marcante.

“Não podemos aceitar que haja pessoas com posters gigantes do general Mladić a dizer ‘Obrigado por ter libertado Srebrenica”‘”

Como é que uma pessoa como Munira lida com o facto de, 25 anos depois do massacre, haver mais e mais negacionistas deste genocídio? O presidente da câmara atual de Srebrenica, que é um sérvio bósnio, diz que houve ali crimes terríveis, mas que o que aconteceu não é um genocídio…
Este é, sem dúvida, o maior problema que enfrentamos hoje em dia e que está a impedir uma reconciliação e a impedir que os dois países avancem, porque em todos os países da antiga Jugoslávia o nacionalismo continua a ser algo muito prevalente. É um completo insulto às vítimas e aos sobreviventes que líderes políticos dos países em cujo território se cometeram estes crimes digam que nunca ocorreu um genocídio. Vemos na República Srpska o mito na escola, onde se retiram todas as referências ao genocídio de Srebrenica e até ao cerco de Sarajevo, onde mais de 10 mil pessoas morreram, vítimas de bombardeamentos e de snipers. Essas referências são retiradas dos livros de História, porque eles dizem que elas nunca aconteceram. Isto é um insulto completo, é totalmente inaceitável e, pessoalmente, gostaria de ver uma reação mais forte por parte da comunidade internacional.

Um homem vende na rua calendários com os rostos de Milošević, Karadžić e Mladić

AFP via Getty Images

Discutimos hoje a discriminação, o racismo, a tolerância e não podemos aceitar que um edifício de uma universidade na República Srpska tenha o nome de Radovan Karadžić, que foi condenado a uma pena perpétua pelo genocídio em Srebrenica. Não podemos aceitar o que aconteceu na semana passada em Srebrenica, onde havia pessoas com posters gigantes do general Mladić que diziam “Obrigado por ter libertado Srebrenica”. Não podemos aceitar que uma figura como o general Lazarević, que foi condenado por este tribunal por limpeza étnica no Kosovo, seja convidado para dar uma palestra na academia militar em Belgrado com honras de apresentação do ministro da Defesa, que disse “você sabe como ganhar uma guerra, deve ensinar os nossos alunos”. E não podemos aceitar que o Ministério da Defesa esteja a financiar um memorial em Belgrado ao mesmo criminoso de guerra condenado. Não podemos aceitar que a maioria dos partidos estejam orgulhosos de ter um criminoso condenado no meio deles como forma de patriotismo. Na Sérvia, quando se rouba uma bicicleta, fica-se com isso no cadastro. Mas quando se é condenado por genocídio em Haia, isso não entra no cadastro — e pode concorrer-se a cargos políticos. Tudo isto devia ser absolutamente inaceitável. E é sobre isto que nós, enquanto comunidade internacional, devíamos ser mais assertivos e falar mais alto. Porque aquelas vítimas que foram vitimizadas há 25 anos estão novamente a ser vitimizadas pelos seus líderes políticos, que deviam era estar a reconhecer os erros do passado e a lutar pela reconciliação, em vez de continuar o ódio.

Sente que os crimes da antiga Jugoslávia são mais esquecidos relativamente a outras crises? Em particular pelos líderes da Europa, se tivermos em conta que estamos a falar de problemas que ocorreram e ocorrem em território europeu…
Tenho de dizer que a União Europeia (UE) teve um grande papel na captura do último fugitivo que detivemos. E há que recordar que a UE impôs a política de condicionalidade à Sérvia, à Croácia e à Bósnia, que precisam de cumprir uma série de condições para avançarem para o nível seguinte de integração com a UE. Uma das condições é a cooperação total com o Tribunal de Haia. Ou seja, para mim é claro que a agenda e os incentivos da Europa, bem como a pressão dos Estados-membros da UE e de Bruxelas tiveram um papel muito importante para se conseguir deter os fugitivos. Hoje em dia isso é claro como água.

Agora, é verdade que quando olhamos para o mundo, há tantos conflitos a decorrer que muita da atenção nos últimos anos se tem concentrado no Iémen, na Síria, em Myanmar. Tenho a sensação, porém, de que começa a haver sinais, e até mais noção dentro da Europa, de que os países da antiga Jugoslávia e, em particular, a Bósnia, não estão a avançar na direção certa. Como é possível avançar enquanto sociedade se não se reconhecem os erros do passado? Como é possível avançar se na Bósnia-Herzegovina a História do conflito é completamente diferente , consoante se estuda numa escola mais croata, sérvia ou bósnia? Se não é possível chegar a um consenso sobre o passado, como é possível sequer olhar para a frente e chegar a consenso sobre o que se quer para o futuro? E tudo isto é uma grande desilusão se acrescentarmos o facto de que há muitos políticos irresponsáveis hoje que assumem um papel negativo ao glorificarem criminosos de guerra e ao negarem um genocídio. Provavelmente precisaremos de esperar que outra geração futura altere isto.

Munira Subašić, uma das representantes das 'Mães de Srebrenica' à saída do tribunal em Haia

AFP via Getty Images

Acredita mesmo nisso? Há esperança numa geração futura quando os sentimentos nacionalistas nos Balcãs continuam tão presentes?
Sabemos que o multilaterismo em geral está sob pressão e que os nacionalismos se tornaram muito presentes em todo o mundo. Não é só na antiga Jugoslávia. Mas estou otimista. Não tenho outra opção, não é? Temos de ser otimistas e lutar para que haja mais justiça, mais responsabilização. Encontro-me regularmente com ONG da sociedade civil, de jovens, que estão a fazer um excelente trabalho de informação na sociedade e de explicar o que realmente aconteceu e de que aqueles homens não são heróis, mas criminosos de guerra. Em Haia temos muitas vezes estagiários da Sérvia, da Croácia, da Bósnia, do Montenegro… E quando conheço pelo menos parte desta nova geração, fico com esperança de que haja gente suficiente que é razoável e que dará mais atenção à reconciliação do que aos nacionalismos.

“Se olharmos para os conflitos de hoje, há pouco consenso entre a comunidade internacional para dar uma resposta a uma só voz”

Depois do julgamento de Nuremberga, a Europa interiorizou a ideia de “Nunca Mais”. Mas vimos o que aconteceu anos depois na antiga Jugoslávia. Acha que este julgamento ajudou a voltar interiorizar essa ideia de “Nunca Mais”?
Bem, a um nível global, é claro que o “Nunca Mais” que surgiu depois dos genocídios do Ruanda e em Srebrenica infelizmente fracassou. Basta olhar para o que se passa na Síria ou no Iémen, onde os números de vítimas são ainda maiores do que aqueles que se registaram nos países da antiga Jugoslávia. É claro que tenho esperança de que não volte a haver violência pelo menos nesses países, mas aquilo que muitos dos meus amigos da região dizem é: “Os acordos de Dayton terminaram com a guerra, mas continuamos a não ter paz verdadeira”. Para ter paz é necessário um projeto. E para ter um projeto é preciso haver uma visão de conjunta daquilo que se quer atingir para o país e para o povo de um país. Mas muito do discurso dos políticos da região é um discurso de discriminação, é um discurso de ódio, e não de reconciliação. Portanto, é claro que me sinto pessimista quando oiço políticos irresponsáveis, mas ainda acredito nas novas gerações. E enquanto existirem ali sobreviventes dispostos a contar a sua história, espero que haja pessoas dispostas a ouvi-las.

Acha que alguma vez assistiremos a um julgamento como aquele em que participou para crimes de guerra na Síria ou uma possível limpeza étnica dos Rohingya? Ou Srebrenica foi a última vez que a comunidade internacional foi capaz de dizer que algo assim era inaceitável?
É verdade que quando os dois tribunais foram criados havia um amplo consenso entre a comunidade internacional de que devíamos tentar apostar na responsabilização. E aquilo que vimos ao longo dos últimos 25 anos é que o tribunal para a Jugoslávia e o tribunal para o Ruanda fizeram um trabalho muito importante de reunir mais de 250 casos que foram julgados em tribunais internacionais. Mas tem razão: se olharmos para os conflitos de hoje, há pouco consenso entre a comunidade internacional para dar uma resposta a uma só voz. Como todos sabemos, o Conselho de Segurança não consegue chegar a acordar para criar um tribunal especial ou para enviar casos para o Tribunal Penal Internacional. Contudo, no Conselho de Direitos Humanos em Genebra foi criada uma comissão de investigação para a Síria, um mecanismo que foi autorizado pela assembleia-geral das Nações Unidas. Também há um mecanismo relativo aos crimes cometidos contra os Rohingya. Portanto, os mecanismos existem. Não são tribunais, mas talvez sejam o melhor que conseguimos, tendo em conta o mundo da realpolitik. E esses mecanismos trabalham em conjunto com as autoridades nacionais: por exemplo, em relação a crimes cometidos na Síria, tem havido investigações na Alemanha, em França e noutros países. Daí que seja importante que as autoridades judiciais nacionais de todo o mundo tomem parte na justiça penal internacional, que não deve estar cingida a tribunais com competências limitadas. Deve ser responsabilidade de todos. É por isso que encorajo sempre as jurisdições nacionais a avançarem com casos e a assumirem parte da responsabilidade para que consigamos promover mais responsabilização face a crimes em massa como estes.

Cerimónia em Srebrenica este sábado, quando se assinalam os 25 anos do massacre, com o enterro de nove vítimas cujos cadáveres foram encontrados recentemente

AFP via Getty Images

Que planos tem para este sábado, em que se assinalam os 25 anos de Srebrenica? 
Esperava poder estar em Srebrenica, era o que estava planeado. Já lá estive quando se assinalaram os 20 anos, o que foi um momento muito emotivo. Desta vez gravei um vídeo aqui no tribunal com uma mensagem pessoal para os sobreviventes, que será mostrada na cerimónia deste sábado. Eu passarei o dia em Haia a dar entrevistas, porque penso que é importante aproveitar este momento para relembrar toda a gente da importância do que aconteceu, mesmo tendo-se passado 25 anos. E é claro que recordarei a minha visita mais longa a Srebrenica, em 2010, onde passei muitas horas com as vítimas, que me mostraram fotografias dos seus familiares ou objetos deles que encontraram nas valas comuns. Todos me contaram as suas histórias. Neste dia celebramos a vida dos que a perderam, celebramos a vida dos que sobreviveram e eles devem estar no nosso pensamento. Até porque nos ajudam a recordar aquilo que a guerra faz aos seres humanos.

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