Cinquenta anos após o fim do holocausto, seis anos após a queda do muro de Berlim e da Cortina de Ferro, em pleno ano de 1995, aconteceu, uma vez mais, em plena Europa, um genocídio brutal e perturbadoramente revelador da capacidade humana para a banalidade do mal e da animalidade, seja em que tempo histórico for.

Estávamos em Julho de 1995, a Apple lançava o Macintosh Performa 6200, a Sega lançava a Sega Saturn, estava no início a revolução das “.com” com o nascimento da Amazon e do Ebay, e a Microsoft lançava o Windows 95. O mundo ocidental fervilhava em desenvolvimento e inovação, as bolsas estavam em alta, as economias cresciam, viviam-se tempos de pleno emprego e os negócios viviam tempos dourados depois de décadas de Guerra Fria. O mundo livre celebrava em pleno os valores da liberdade, da tolerância e da paz.

Contudo, num recanto quase esquecido do continente europeu desenrolava-se a guerra mais sanguinária na Europa desde 1945. A Jugoslávia não resistiu aos duros golpes do tempo, não resistiu ao fim do mundo bipolar e à queda do muro de Berlim, não resistiu ao atraso, não resistiu às pressões internacionais e não resistiu à sua própria diversidade étnica e religiosa.

Em Julho de 1995, as tropas de Ratko Mladic ocupam Srebrenica (cidade considerada zona de segurança sob protecção da ONU) e obrigam os seus cerca de 27 mil habitantes bósnios a abandonar a cidade. Com o abrigo da ONU cheio de refugiados, 23 mil bósnios ficaram à sua sorte.

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As condições degradavam-se e foram organizadas negociações de fachada entre Mladic, os capacetes azuis da ONU e representantes dos refugiados, negociações onde apenas Mladic tinha poder negocial pela via da força. Mladic promete transferir os refugiados para uma cidade limítrofe com uma larga frota de autocarros.

O que aconteceu de seguida foi o que todos sabemos. Os homens foram separados das mulheres, milhares de mulheres foram violadas, os homens foram transportados como gado para lugares isolados, teatros, cinemas, e abatidos por pelotões de fuzilamento. Crianças foram mortas em frente aos pais, houve torturas arbitrárias de refugiados, mutilações de partes do corpo e todos os cadáveres foram enterrados de imediato em valas comuns, algumas pessoas enterradas ainda vivas.

Tudo isto aconteceu sob as ordens de Ratko Mladic, o homem que foi recentemente condenado pelo tribunal de Haia a prisão perpétua por crimes contra a humanidade, o único tipo de crime onde, na minha óptica, a pena perpétua é uma pena perfeitamente aceitável. Acompanhou-o também, Radovan Karadzic, capturado em 2008, que tomou a decisão de levar a cabo o genocídio bósnio em Srebrenica.

Ambos estes seres, desprovidos de um pingo de humanidade e movidos por ódios étnicos viscerais, são, quer queiramos quer não, homens do nosso tempo, pessoas nos seus 70 anos, não são pessoas de outros tempos históricos. Precisamente por isto, é importante perceber que o ser humano não deixa de ser um animal com queda para a crueldade se o formatarem para tal e se lhe concederem os instrumentos necessários. Tanto Mladic como Karadzic morrerão com a convicção de que fizeram aquilo que deveriam ter feito e que as respectivas condenações não passam de uma injustiça, pois o sentimento de impunidade é enorme num ser humano formatado para a maldade e com poder nas mãos. Aqueles homens tinham uma missão, missão essa que não tinha como opção olhar a meios para atingir qualquer fim, onde o profundo ódio racial serviu de catalisador para que, novamente em solo europeu, uma força estatal tentasse limpar do mapa uma etnia diferente.

A guerra dos balcãs foi bem mais do que este evento em particular. Houve massacres étnicos ou tentativas por parte de praticamente todas as facções, grande parte em pequena escala, e era mútuo o ódio entre Sérvios, Croatas, Bósnios e restantes povos. No entanto, foi o massacre de Srebrenica que abriu definitivamente os olhos à comunidade internacional para a gravidade dos acontecimentos. E quão graves foram.

Quando políticos dos nossos dias incitam ao ódio a determinadas minorias étnicas com o único objectivo de consolidar ou expandir posições de poder, eis mais um exemplo de como tudo isto acaba.

Exemplos de como começa, não faltam no nosso tempo.