José Sócrates aproveitava para fazer anúncios e tentar arrumar os assuntos por ali. Passos Coelho desdobrava-se em explicações. E António Costa usa-os para ir repetindo que a “geringonça” funciona e que o Governo de direita é que não funcionou. Os debates quinzenais completam este ano dez anos de existência e já levaram ao Parlamento mais de cem vezes três primeiros-ministros diferentes, para serem confrontados diretamente pela oposição com temas da sua escolha ou determinados pelas outras bancadas parlamentares. Não foi sempre assim, mas a reforma do regimento da Assembleia da República de 2007 introduziu esta novidade que a oposição aplaude, mas que nem sempre enche as medidas dos partidos do poder.
Desgastam o primeiro-ministro, crispam o debate a um nível nunca visto, dizem deputados das duas maiores bancadas. O atual primeiro-ministro, António Costa, até lhe chamou “uma das invenções mais estúpidas que a Assembleia da República fez nos últimos anos”. Ainda não era líder do Governo e nem sequer secretário-geral do PS, quando criticou uma reforma que foi precisamente desenhada pelo seu antecessor no partido, António José Seguro.
O que mudou nos debates com o PM?
↓ Mostrar
↑ Esconder
Os debates com o primeiro-ministro eram mensais e bem mais longos do que agora. O tema do debate era escolha do primeiro-ministro que abria a discussão. Depois, havia três rondas de perguntas das bancadas. Em 2007, o Parlamento aprovou uma alteração regimental, coordenada pelo socialista (então deputado) António José Seguro.Os mensais mudaram:
- A escolha do tema do debate passou a rodar entre o primeiro-ministro e as bancadas parlamentares. Quando é o chefe do Governo a escolher, abre o debate com uma intervenção de 10 minutos. As bancadas têm depois tempo para as perguntas, proporcionalmente distribuído de acordo com o tamanho dos grupos parlamentares, mas apenas uma ronda para o fazer.
- Quando são os partidos a escolher o assunto do debate — de forma rotativa para que não seja sempre o mesmo grupo a abrir — o primeiro-ministro tem de responder logo de seguida a cada intervenção e tem o tempo igual ao que foi usado pelo deputado.
- Os debates passaram a exigir que o primeiro-ministro se apresentasse na Assembleia da República de 15 em 15 dias. Mas em setembro de 2007, altura em que a reforma entrou em vigor, estava a decorrer a Presidência Portuguesa da União Europeia, por isso, foi acordado com o Governo que a presença quinzenal só seria exigida a partir de janeiro de 2008.
O líder parlamentar Carlos César concorda, mas o PS nada fará para alterar estes debates ou outras figuras parlamentares criadas na última alteração ao regimento — como as audições ordinárias dos ministros nas comissões da área — que o socialista considera contribuírem para a “degradação do debate parlamentar por exaustão”. Questionado pelo Observador especificamente sobre as críticas recorrentes à violência verbal nos debates quinzenais e sobre a necessidade de rever o regimento outra vez, César admite que “seria útil refletir-se sobre essa matéria”, mas numa “reflexão integrada para melhorar o funcionamento da instituição parlamentar em geral”. Pode ser desencadeada nos próximos tempos? Nem por isso. Da parte do PS, o líder parlamentar diz que são de evitar “suspeitas sobre o partido que apoia o Governo de privar a oposição do debate parlamentar”.
A verdade é que há sempre concertação entre os partidos que apoiam o Governo e o próprio Executivo. Era assim na legislatura anterior, admite Nuno Magalhães, líder parlamentar do CDS ao Observador, onde PSD e CDS “dividiam jogo” para abordar os vários temas mais convenientes ao poder. O mesmo acontece agora entre a “geringonça”, que tem uma “lógica de discussão coletiva” em tudo inclusive nos debates quinzenais, como reconhece o Bloco de Esquerda. Todos valorizam a dimensão democrática e a vertente escrutinadora do debate, mas no PSD reconhece-se que o modelo atual pode propiciar mais o “folclore” em vez da “política”. “A periodicidade quinzenal era importante se o estilo fosse o do esclarecimento”, diz o líder parlamentar social-democrata, Luís Montenegro, ao Observador, acusando o atual Governo e o PS de protagonizarem debates “comiceiros”, “ao estilo de Sócrates”, onde o primeiro-ministro foge às perguntas dos deputados.
Para Luís Montenegro, tal como está a ser utilizado, o modelo de debates quinzenais faz com que “aumente a crispação” política. Por isso deixa uma sugestão: “Talvez fosse positivo intervalar o debate com o primeiro-ministro com uma sessão de perguntas diretas ao Governo, tal como acontece em Espanha ou Inglaterra”. Um regime onde não havia lugar a considerandos, apenas a perguntas e respostas. Mas qualquer mudança, para já, não está em cima da mesa.
O CDS, pelo contrário, é o maior fã do modelo quinzenal. Paulo Portas até queria que fosse semanal. “Os debates mensais eram mais parecidos a monólogos dos vários partidos do que a debates propriamente ditos”, diz Nuno Magalhães. Goste-se ou não, os quinzenais vieram para ficar. Até porque os tempos são outros, e a comunicação social também mudou. E isso não é de somenos, já que o palco mediático, de duas em duas semanas, não é de desaproveitar.
Por isso os truques são muitos, e são usados por todas as bancadas. Há os que preferem números políticos com mais humor, os que preferem o sistema de pergunta-resposta como se de um interrogatório se tratasse, ou os que preferem levar gráficos para ilustrar realidades.
O tempo para cada partido é escasso, e muitas vezes esgota-se na réplica. Daí que seja obrigatória muita precisão e alguma criatividade. Não é raro o debate atingir picos de intensidade e crispação, como no mês passado, quando Passos Coelho perguntou diretamente a António Costa sobre o valor do défice sem medidas extraordinários e este recusou responder, ou quando Assunção Cristas o acusou duramente de mentir sobre a assinatura formal do acordo de concertação social (que estaria a decorrer àquela hora). Ou até picos de humor, como quando, no Natal, a líder do CDS ofereceu prendas ao primeiro-ministro. Há para todos os gostos — e para todas as ocasiões.
Tirar anúncios da cartola para desviar atenções
Posso ainda anunciar que o Governo aprovará esta semana…”
É a mais antiga arma dos Governos para fintar dias parlamentares que prometem ser incómodos. Ainda recentemente, no auge da polémica sobre o chumbo do PSD à redução da TSU (acordada em concentração social como moeda de troca pelo aumento do salário mínimo) António Costa foi ao Parlamento para um quinzenal que se esperava ser desconfortável para o Governo, que tinha parceiros e o maior partido da oposição juntos no chumbo de uma medida central. A escolha do tema era sua e o que fez António Costa: discorreu sobre a a economia nacional e ao terceiro parágrafo do discurso anunciava que o défice de 2016 não seria superior a 2,3%. Não que a TSU tenha passado à margem do debate, mas aquele anúncio focou as atenções da comunicação social e esquivou-se dos ataques da oposição.
Está longe de ser um exclusivo deste modelo de debate. Esta estratégia era até bastante comum quando o tema era escolhido pelo Governo, com os primeiro-ministros a fazerem a gestão da agenda governativa também com um olho nos debates mensais, onde normalmente aproveitavam para anunciar planos para a área setorial escolhida. Mas a verdade é que este foi um truque para controlar os debates que continuou a ser usado quando o modelo mudou. José Sócrates era um dos utilizadores mais frequentes desta manobra e, quando a escolha do tema era sua, levava não raras vezes “decisões importantes” para anunciar aos deputados em primeira mão.
Escolher o tema é uma arte
Em 115 debates com o primeiro-ministro que se realizaram depois das alterações de 2017, em 62 a economia foi tema principal”
Olhar para o registo de debates quinzenais — e foram mais de 100 desde que o modelo mudou, em setembro de 2007 — dá por si só várias pistas sobre a gestão que os partidos fazem destes momentos em que podem confrontar os primeiros-ministros no Parlamento, cara-a-cara. Quando o novo formato destes debates entrou em vigor (ver na caixa o que mudou entre mensais e quinzenais), os temas eram mais variados e também mais afunilados, com os partidos ou o Governo a aproveitarem o momento para falar de educação, saúde, energia, ou temas do momento, como o Tratado de Lisboa. Mas o impacto da crise financeira internacional fez o país centrar-se nas matérias económicas que entraram (para ficar) nos debates quinzenais em 2008. Aliás, logo em outubro desse ano, José Sócrates foi ao Parlamento anunciar medidas de apoio às empresas, explicando-as com “o impacto da conjuntura internacional desfavorável” na economia portuguesa.
A partir daí, as “questões económicas”, como quase sempre aparecem referidas, pegaram de estaca nos quinzenais. Nas contas do Observador, nos 115 debates com o primeiro-ministro que se realizaram depois das alterações de 2017, em 62 a economia foi tema principal. Sobretudo desde 2012, quando o país estava intervencionado pela troika. Foi também a partir daí que partidos e Governo começaram a recorrer insistentemente aos debates quinzenais “sobre questões de relevância política, económica e social” é uma fórmula onde cabe tudo e mais alguma coisa. Um achado parlamentar de que agora todos abusam quando se trata de ditar o tema dos quinzenais. “Permite-nos falar do que é mais estrutural, que é o que interessa”, diz fonte do PSD ao Observador.
Quando é o Governo a escolher o tema, aí sim, pode ser mais variável. Para esta quarta-feira, é o primeiro-ministro a abrir as hostilidades e escolheu o tema do Plano Nacional de Reformas (PNR), que foi apresentado pelo Governo em abril do ano passado e que prevê absorver 25 mil milhões de euros até 2020, sendo cerca de metade em fundos comunitários e 6,7 mil milhões de comparticipação nacional.
O vice da bancada do PS João Paulo Correia nota que “a partir de dada altura passou a ser moda” usar este tema porque se torna “mais fácil para a oposição para poder abordar vários assuntos no debate. Por outro lado, como não tem de antecipar nenhum assunto concreto e o primeiro-ministro não pode preparar-se sobre um tema específico de forma mais aprofundada“. O deputado socialista lembra que o modelo teve uma falha, porque quando os debates com o primeiro-ministro passaram a quinzenais, “o que se esperava era que pudessem ser mais temáticos”. Na história dos quinzenais, apenas por cinco vezes temas como a Educação estiveram nestes debates e por duas vezes o tema escolhido foi Saúde.
Raras foram as vezes em que a discussão afunilou e se focou de forma muito concreta a um tema que estava a agitar o debate público naqueles dias, mas também já aconteceu. Em 2012, por exemplo, era Passos Coelho primeiro-ministro quando levou ao Parlamento, num debate quinzenal, o Sistema de Informações da República Portuguesa. O tema era bastante delicado naquela época, já que uma polémica sobre as secretas atingia em cheio o seu ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares (e também seu braço direito) Miguel Relvas.
Levar adereços para chamar a atenção
Trouxe-lhe aqui um presente, tive o cuidado de colocar uma fita cor de rosa, numa homenagem ao seu Governo”
Esta é uma manha (quase) exclusiva do CDS. Já era com Paulo Portas, teve praticantes como Nuno Melo e continuou com Assunção Cristas. Desde que está à frente do CDS, há quase um ano, já recorreu por mais do que uma vez ao truque dos “presentes”. A primeira vez foi quando se iniciou a guerra dos gráficos, com António Costa a mostrar em plenário gráficos com dados do crescimento económico, exportações e investimento, sem fonte, e que depressa mereceu acusações de serem dados “martelados”. Pouco depois foi a vez de Assunção Cristas chegar ao debate munida com um “presente envenenado”: um gráfico, envolto em fita cor-de-rosa (numa alusão ao PS), com a “variação homóloga do PIB, do investimento e das exportações, para que o primeiro-ministro pudesse “colocar no seu gabinete” dados que “são verdadeiros, fonte do INE”.
Isto foi em outubro e o truque repetiu-se pelo Natal. Cristas ofereceu ao primeiro-ministro uma caixa verde, com um grande laço vermelho, e três presentes lá dentro: um par de óculos, um soro da verdade e um pacote com as propostas que o CDS apresentou ao longo do ano. Costa agradeceu a “generosidade”, mas lamentou não ter ido preparado para a sessão natalícia. Se se tivesse lembrado também não deixaria a líder centrista sem presente no sapatinho… dava-lhe nada mais nada menos do que “um retrovisor”, para olhar para trás, para as políticas do anterior governo PSD/CDS.
Se resulta? O CDS acredita que é uma boa forma de chamar a atenção (dos jornais e das televisões). Não se trata, no entanto, de um exclusivo da bancada centrista: ainda esta semana, num debate sem o primeiro-ministro, a deputada ecologista Heloísa Apolónia levou um brinquedo de peluche para demonstrar como se vende embalado em vários plásticos considerados desnecessários, mas a verdade é que, os números políticos com humor e os soundbites mais arrojados fazem “escola” no CDS, como diz ao Observador Nuno Magalhães, lembrando os tempos de Paulo Portas, que foi quem inaugurou o estilo britânico da pergunta curta e incisiva.
A tática das perguntas curtas e incisivas
O compromisso de não aumento dos impostos é ou não para valer?”
Era Paulo Portas (novamente) líder do CDS quando sugeriu a Sócrates num debate, em abril de 2007, que o primeiro-ministro passasse a ir ao Parlamento para responder aos partidos da oposição uma vez por semana. “Está disponível para aceitar um sistema democrático de controlo a que o primeiro ministro venha uma vez por semana ao Parlamento para responder a perguntas curtas dos partido da oposição?”, questionou, inspirado principalmente no modelo parlamentar britânico. A resposta deu abertura à discussão: “Este estilo de debate talvez devesse ser mudado. Se reparar, estou aqui 3 horas, é muito exigente.”
As mudanças regimentais não foram tão longe, mas dali a uns meses os debates com o primeiro-ministro passaram a ter outro modelo que Portas foi o primeiro a explorar, lançando perguntas curtas ao primeiro-ministro então em funções, José Sócrates. No tempo atribuído ao CDS, levantava-se e fazia uma única pergunta e depois sentava-se. Repetia mais umas duas vezes a tática — que na primeira vez que foi usada ainda beneficiou do efeito surpresa — e só à terceira é que elaborava o raciocínio sobre a questão que levantara e adaptava-se à resposta do primeiro-ministro.
O estilo fez escola, sobretudo no CDS e quando o partido voltou a estar na oposição, com Assunção Cristas a recorrer com frequência ao método do ex-líder, ainda que acabasse por somar sempre mais do que uma pergunta de uma vez. E este truque já trouxe algum ganho? Sim. O último debate quinzenal foi exemplo disso mesmo. Começou com Pedro Passos Coelho (que nem sempre intervém, alternando com o líder parlamentar), que questionou diretamente António Costa sobre o real valor do défice, sem medidas excecionais. Perguntou uma e outra vez, e ao fim de muita insistência, o primeiro-ministro acabou por dar uma resposta vazia: “Respondo-lhe quando o diabo chegar”. O cenário repetiu-se quando foi a vez de Assunção Cristas falar. Perguntou-lhe sobre o valor real da dívida (tema recorrente). Perguntou uma e outra vez, e ao fim de muita insistência, o primeiro-ministro lá pediu à líder do CDS para “não fazer perguntas retóricas para as quais já sabe a resposta”.
Pode-se dizer que as bancadas da oposição tenham ganho o debate por falta de comparência do adversário? Talvez. É certo que o modelo dos debates quinzenais tende a beneficiar quem está no poder porque o Executivo tem pelo menos uma bancada (neste caso são três) a defendê-lo e a lutar por si na arena, mas não é raro a oposição conseguir ganhar alguns rounds. “O atual primeiro-ministro não responde às perguntas e diz o que lhe apetece num debate que devia servir para o Governo prestar contas ao Parlamento”, diz ao Observador fonte do PSD próxima do presidente do partido. E reconhece mesmo: “O PSD e o CDS [quando apoiavam o Governo] também aproveitavam para fazer análises positivas do que estava a ser feito, mas pelo menos faziam questões”, nota. Ou seja, disfarçavam.
O truque é até usado noutras bancadas, também da oposição. Heloísa Apolónia, dos Verdes, tem nestes debates um tempo disponível bem mais limitado (uma vez que é distribuído de forma proporcional pelas bancadas parlamentares), mas já conseguiu elevados níveis de eficácia utilizando o estilo da pergunta curta no tempo de intervenção a que tem direito. Em abril de 2010, questionou o primeiro-ministro Sócrates muito diretamente: “O compromisso de não aumento dos impostos é ou não para valer?” Sócrates comprometeu-se: “O que vamos fazer é o que está no Programa de Estabilidade e Crescimento. A senhora deputada vê lá o aumento do IVA? Não vê”. Mas a palavra teve a perna tão curta como a pergunta de Heloísa Apolónia e, em setembro desse mesmo ano, o Governo aumentava o IVA para 23%.
Estatísticas e gráficos distribuídos (também aos jornalistas)
A guerra dos gráficos tem sido um episódio recorrente nos debates parlamentares. Aconteceu esta legislatura, quando António Costa, numa resposta a Passos Coelho sobre o suposto fraco crescimento da economia e a inversão da curva das exportações, sacou de um conjunto de folhas. Tinha antecipado a intervenção do adversário e ia preparado para aquele número. “Agradeço a sua pergunta porque me dá a oportunidade de desmontar três mitos sobre a nossa situação económica”, começou por dizer. E passou para os gráficos. Três mitos, três gráficos: um sobre a suposta evolução favorável das exportações de bens e serviços, outro sobre a evolução em cadeia do investimento, que estaria a subir desde o início de 2016, outro sobre o crescimento que teria desacelerado no segundo semestre de 2015 e desde o início deste ano tinha vindo a recuperar.
Só que os gráficos não tinham sequer fonte identificada, e depressa foram apelidados de “números martelados”. Nos corredores do Parlamento, e sobretudo na bancada de imprensa, vieram à memória os tempos de José Sócrates e Pedro Silva Pereira que recorriam muitas vezes a esta acrobacia. Depressa os assessores económicos da oposição, do PSD sobretudo, trataram de imprimir novos gráficos sobre os mesmos temas mas com outros valores, que mostravam outra realidade. O deputado social-democrata, António Leitão Amaro, até aproveitou a boleia para, já fora do debate, falar aos jornalistas com os gráficos na mão para contrariar a desmistificação dos mitos.
As pesadas heranças do passado
Após quatro anos de tanto esforço e de se querer ir além da troika, o resultado foi falhar no objetivo fundamental de reduzir o défice abaixo dos três por cento.”
O passado é outro dos temas recorrentes e é usado por todas as bancadas, quer do Governo, quer da oposição, quer dos partidos que apoiam os executivos. É usado como vantagem ou desvantagem, consoante quem a ele recorre e exemplo disso é o que tem acontecido no último ano.
É claro e assumido pelos próprios que a maioria de esquerda não é um bloco sem brechas. Há divergências que os partidos admitem e que até levam a debate, como aconteceu recentemente com a TSU. É nesses momentos que os partidos da esquerda mais cerram fileiras contra a direita, para desviar de si o foco da atenção. É aliás uma das táticas mais usadas pelo atual primeiro-ministro e pelos líderes dos partidos que apoiam o Governo no Parlamento: apontar o dedo a PSD e CDS para mostrar que estão unidos na separação do lado direito do plenário. Um dos ataques mais frequentemente utilizado por António Costa e arremessado à bancada do PSD nestes debates quinzenais é o “falhanço” no cumprimento de metas orçamentais, mesmo com “oito retificativos em quatro anos”, como Costa tem feito questão de sublinhar a cada debate, recuperando os tempos da anterior governação.
Por outro lado, as divergências da maioria de esquerda têm sido também muitas vezes apontadas pelas bancadas da direita para tentar fragilizar a atual solução governativa. Mas a verdade é que têm sido também usadas à esquerda como balão de oxigénio, nestes quinzenais, para dar prova de autonomia. Por exemplo, é frequente ouvir de Jerónimo de Sousa, mas sobretudo de Catarina Martins, uma referência ao problema da dívida pública e à necessidade de renegociá-la. O tema é dos que divide o PS dos seus parceiros e todos o assumiram publicamente, logo que assinaram posições conjuntas, mas nem por isso o evitam no debate. É uma divergência consensualizada entre as partes e permite aos partidos à esquerda do PS manterem o seu discurso próprio.
João Paulo Correia, do PS, considera que este modelo tem “ajudado o atual Governo porque é sustentado por uma maioria diversificada e o primeiro-ministro tem aproveitado os debates para clarificar divergências e acertar convergências”. Mas nem sempre corre sobre rodas. Ainda em abril passado, Catarina Martins abriu um quinzenal com avisos fortes ao Governo sobre a banca e a solução para o crédito malparado. Era marcante na crítica ao dizer que já por “demasiadas vezes” os portugueses foram “chamados a pagar os desmandos da banca”. E exigia a António Costa que uma solução deste género não se repetisse. O tom da líder bloquista apanhou desprevenidos alguns socialistas e levantou até queixas. O deputado e dirigente socialista Porfírio Silva mostrava-se incomodado com “a agressividade” de Catarina Martins, num post que publicou no Twitter ainda decorria o debate quinzenal.
Como eles se preparam para entrar na arena
José Sócrates foi o primeiro-ministro que mais anos seguidos esteve exposto neste modelo e preparava sempre milimetricamente as suas intervenções parlamentares. Quando era ele a abrir o debate, a intervenção vinha sempre escrita e durante a discussão, muitas vezes era possível ver nos corredores parlamentares os seus assessores de imprensa, com pastas e fotocópias, para munir com argumentos o primeiro-ministro sentado na bancada do Governo.
Este corrupio externo à sala do plenário passa ao lado dos olhares públicos mas é comum e mais visível quando o Parlamento recebe um debate quinzenal. Os assessores de imprensa entram pela bancada da comunicação social adentro várias vezes durante o debate, vindos dos vários grupos parlamentares, para distribuir intervenção escritas, gráficos, alguma fotocópia de notícia ou de qualquer documento que prove o que o primeiro-ministro ou deputado acaba de dizer na arena política. Era assim com Sócrates, era assim com Passos Coelho, é assim com António Costa.
É um momento que se repete a cada 15 dias, duas vezes por mês (só interrompidas se o primeiro-ministro estiver fora, por exemplo), mas é um acontecimento sempre bem preparado pelos vários intervenientes. António Costa alinha as suas intervenções parlamentares sobretudo com a secretária de Estado Adjunta, Mariana Vieira da Silva, e com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos. Este último contributo é importante no atual desenho parlamentar, já que é Pedro Nuno Santos que gere no Parlamento as forças que apoiam o Governo: PS, PCP, BE e Verdes. E há coordenação entre as partes na preparação destes debates com o primeiro-ministro.
https://www.instagram.com/p/BFWOzRLFJCT/?taken-by=antoniocostapm&hl=en
O Bloco de Esquerda assume-o claramente, ao dizer ao Observador que “o Bloco tem uma lógica de discussão coletiva, a própria esquerda é um projeto coletivo, e a preparação dos debates quinzenais não é exceção”. No PS, João Paulo Correia explica que está assumido entre as várias partes que “quando há alguma coisa fora do que é esperado, normalmente informa-se” as outras partes. O mesmo para quando algum dos quatro partidos vai avançar com um tema mais específico no debate quinzenal. À esquerda garante-se que a informação entre as bancadas circula numa base diária, com a intenção de nunca nenhuma das partes ser apanhada em falso publicamente pelo parceiro.
Todos os inputs que chegam à bancada parlamentar socialista são comunicados a António Costa que, depois, também recorre aos responsáveis políticos nas áreas setoriais — quando elas estão em causa — para acertar algum pormenor mais técnico. Escreve umas fichas que tem à sua frente durante as suas intervenções, e é muito raro distribuir um discurso escrito aos jornalistas, preferindo basear-se em notas que traz alinhavadas nesses cartões de leitura.
Já Catarina Martins prepara-se juntamente com os deputados do seu núcleo duro, como Mariana Mortágua, o líder parlamentar Pedro Filipe Soares, Jorge Costa ou José Manuel Pureza. Também recorre aos assessores de imprensa que, do lado de fora do debate, acompanham as intervenções dos seus líderes e são um braço importante para os partidos junto da outra bancada a que os políticos que falam no plenário querem chegar: a da imprensa.
É também com os olhos naquilo que sabem, pelo rumo que o debate está a tomar, que vai marcar as manchetes dos jornais e as peças televisivas, que a bancada do CDS vai fazendo as escolhas sobre os temas durante o debate. “Chegamos ao debate com quatro ou cinco tópicos que sabemos que queremos abordar, mas no momento avaliamos o que é melhor usar em função da ordem das intervenções, do que o primeiro-ministro já respondeu ou não respondeu, e do rumo que o debate está a tomar”, diz o líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, explicando que se o tema da dívida, por exemplo, estiver a marcar o debate, então o CDS (mesmo que seja o quarto ou último partido a intervir) também vai abordar esse tema, até “para não ficar de fora dos alinhamentos das notícias”.
O PSD tem uma particularidade: enquanto os restantes partidos (à exceção do PS) recorrem sempre ao líder para intervir no duelo com o primeiro-ministro — Catarina Martins, Assunção Cristas, Jerónimo de Sousa –, o PSD alterna entre o presidente, Pedro Passos Coelho, e o líder parlamentar, Luís Montenegro. “São os dois ativos mais visíveis do partido e por isso vão-se revezando em função do momento político atual, do que se passou naquela semana, da conjuntura”, explica uma fonte próxima de Passos Coelho. Se o país estiver num pico de tensão mais aceso, como foi o caso recente da TSU, o líder vai a jogo. Caso contrário tem a possibilidade de ficar em segundo plano, com o líder parlamentar a assumir o comando.
Questionado pelo Observador, o PCP não quis responder às questões sobre a forma como são preparados os debates. Mas é sempre Jerónimo de Sousa que intervém, aproveitando várias vezes para lançar questões ao Governo que, regra geral, já estão concertadas. Foi o caso recente da precariedade no Estado e nas empresas públicas: foi em resposta ao repto lançado pelo secretário-geral comunista no último debate quinzenal que o primeiro-ministro anunciou que, até ao final dessa semana, o Governo teria pronto um relatório com o levantamento dos precários no Estado. Bem dito, bem feito. É também para isso que servem os aliados no ringue político a cada quinze dias.