Desde a antevéspera que se assistira a um curioso minuete de fugas de informação controladas (surgia “acidentalmente” no site da IMU, União Matemática Internacional, responsável pela atribuição das medalhas, alguma informação sobre os vencedores que, minutos depois, desaparecia). A expectativa aumentava, num crescendo equivalente, para os matemáticos, à tensão que antecede o anúncio dos Óscares.
Os prémios foram conhecidos na tarde do dia 12 de Agosto, 12 horas antes da cerimónia da respectiva entrega. É oficial: as Medalhas Fields de 2014 foram atribuídas à iraniana Maryam Mirzhakani, ao canadiano-americano de origem indiana Marjul Bhargava, ao brasileiro Artur Ávila e ao austríaco Martin Hairer. Sugiro ao leitor que clique nas ligações fornecidas: são os “vídeos oficiais” que apresentam estes matemáticos. Não se arrependerá.
Maryam Mirzhakani recebe a Medalha Fields das mãos da presidente sul-coreana, Park Geun-hye.
Foto: Yonhap/AFP/Getty Images
Maryam Mirzhakani, a iraniana que gosta de fazer desenhos
Maryam Mirzhakani (n. 1977) é uma matemática iraniana, professora na Universidade de Stanford. Nasceu e cresceu em Teerão, e quando era criança tinha o sonho de ser escritora. Mais tarde descobriu a Matemática; curiosamente, começou por não ser muito boa aluna. Afirma que na altura não tinha verdadeiro gosto por Matemática. “Sem entusiasmo, compreendo que a Matemática pareça fria e sem significado. A beleza da Matemática só se revela aos seguidores mais pacientes”.
Foi o irmão mais velho que lhe foi despertando esse entusiasmo quando, chegado da escola, lhe mostrava e explicava problemas mais avançados. Maryam recorda-se de ter ficado fascinada com uma clássica história do matemático alemão Carl F. Gauss. Quando este tinha 7 anos de idade o seu professor pediu aos alunos para somarem os inteiros de 1 a 100. Segundos depois, Gauss mostrava a sua lousa, com a resposta correcta: 5050 (o truque é “casar” os números aos pares: 1 com 100, 2 com 99,…: cada par soma 101, e existem 50 pares). “Foi a primeira vez que consegui apreciar a beleza de uma solução”, diz Maryam.
A jovem Maryam com os pais em Isfahan, Irão.
Maryam teve a sorte de começar a escolaridade logo depois do final da guerra Irão-Iraque, num período de normalização social. Destacou-se nas Olimpíadas Internacionais de Matemática de 1994 e 1995: ganhou medalhas de ouro, tendo sido a primeira estudante iraniana a conseguir uma classificação de 100%. Em 1999 licenciava-se na Universidade Sharif e iria realizar o Doutoramento em Harvard sob orientação do também medalha Fields Curtis McMullen. Foi Clay Research Fellow, depois professora em Princeton e agora é Full Professor em Stanford.
Resolver um só destes problemas isoladamente teria sido sensacional: 99% dos matemáticos jamais atingirão um resultado comparável. Maryam não só resolveu os três como mostrou que eles estavam relacionados a um nível profundo.
A sua tese de Doutoramento, terminada em 2004, não só resolvia um problema de sabor geométrico tremendamente difícil (contagem do número de geodésicas fechadas simples em superfícies hiperbólicas) como, pelo caminho, estabelecia novas ligações e resolvia outros dois problemas até aí considerados independentes (um sobre espaços moduli, outro relativo a uma intratável conjectura de Witten, também ele medalha Fields). Resolver um só destes problemas isoladamente teria sido sensacional: 99% dos matemáticos jamais atingirão um resultado comparável. Maryam não só resolveu os três como mostrou que eles estavam relacionados a um nível profundo, característica por vezes muito mais fértil do que a solução em si.
Sobre esses dias, afirma McMullen: “ela tinha uma espécie de imaginação arrojada. Construía na sua mente uma imagem do que deveria estar a acontecer, e depois vinha ao meu gabinete e começava a descrevê-la. No final perguntava-me «isto está bem?». Eu ficava sempre muito lisonjeado por ela achar que eu sabia responder!”.
Desde então expandiu as áreas em que trabalha e que hoje em dia incluem Geometria Diferencial, Sistemas Dinâmicos e Análise Complexa, baseando-se em conceitos abstractos como espaços de Teichmüller. “Gosto de cruzar as fronteiras imaginárias que as pessoas erguem entre diferentes áreas”, afirma. “Há imensas ferramentas à disposição, e nunca se sabe quais podem ou não funcionar. É preciso ser optimista e tentar relacionar as coisas”.
Os objectos matemáticos com que Mirzakhani trabalha na sua mente são totalmente abstractos e não existem no mundo físico. Enquanto pensa neles, Mirzhakani gosta de rabiscar e desenhar esboços do que estes possam ser; diz que a ajuda a concentrar-se e a construir uma imagem mental do que eles são. O marido, Jon Vondrak, afirma: “ela tem folhas enormes espalhadas no chão e passa horas e horas a desenhar aquilo que me parece ser a mesma figura vezes sem conta”. Os artigos científicos e os livros estão espalhados de forma aparentemente desordenada pelo escritório. A sua filha de 3 anos, Anahita, diz muitas vezes, “olha, a mãe está a pintar outra vez!”. “Talvez ela ache que sou pintora”, diz Mirkhazani.
Inevitavelmente, Maryam Mizhakani transformou-se da noite para o dia numa celebridade mediática à escala planetária. Contando com isto, a Universidade de Stanford já avisou na página oficial onde anuncia a conquista de Maryam que ela não estará disponível para entrevistas. Os perfis “oficiais” dos medalhados são disponibilizados pela União Matemática Internacional, já com ligação à respectiva entrada na Wikipedia (que portanto se pode supor 100% correcta, pois foi elaborada pela IMU) e, para os mais afoitos, com uma descrição em três páginas dos principais resultados científicos. Outras peças jornalísticas já se encontravam produzidas.
Manjul Bhargava e a Teoria dos Números
Se as luzes da ribalta vão inevitavelmente para Maryam, os outros medalhados são personalidades igualmente fascinantes. Manjul Bhargava (n. 1974), de origem indiana, nascido e crescido no Canadá e hoje em dia também com nacionalidade americana, faz investigação em Teoria de Números.
Como Mirzhakani, também ele foi um prodígio nas Olimpíadas Internacionais de Matemática. Conquistou fama por, muito novo, ter construído uma demonstração original de uma surpreendente conjectura de Gauss, o teorema 15, que mais tarde generalizou para teorema 290. Doutorou-se em Princeton com o célebre Andrew Wiles (Wiles é famoso por ter demonstrado o Teorema de Fermat, tendo conseguido não ganhar a Medalha Fields em 1994 porque foi descoberto um erro na sua demonstração que demorou dois anos a resolver, tendo Wiles entretanto completado 40 anos).
Também ele foi um prodígio nas Olimpíadas Internacionais de Matemática.
Bhargava atingiu resultados espectaculares em teoria algébrica de números, designadamente na Conjectura de Birch e Swinnerton-Dyer, um dos problemas do Milénio do Clay Research Institute (cuja solução vale um prémio de um milhão de dólares). Essa conjectura afirma que uma certa classe de objectos, as curvas elípticas, devem ter um comportamento muito específico. Bhargava mostrou que isso acontece “na maioria dos casos” (especificamente, em mais de 66,48% dos casos). Anteriormente, sabia-se que a conjectura se verificava em… 0% dos casos. Assim, a situação é infinitamente melhor – mas o problema ainda não está resolvido!
Manjul Bhargava num momento de descontracção
Bhargava respeita muito a sua cultura de origem. Sempre reforçou os seus laços, passando temporadas na Índia, e a sua forma preferida de descontracção é tocando tambores tabla, que estudou com profissionais na Índia. Podemos ouvi-lo ao vivo aqui.
Artur Ávila, o trabalho dos 5 martinis
O brasileiro Artur Ávila (n. 1979), da prestigiada escola do IMPA, é desde a adolescência considerado um wunderkind. Especialista em Sistemas Dinâmicos (que descrevem a evolução dos sistemas quais sistemas? No tempo, englobando fenómenos de caos determinista e estocástico, isto é, com elementos aleatórios é um verdadeiro virtuoso da Análise Matemática.
Ávila é a desconstrução viva do mito do “cientista solitário”. A sua abordagem colaborativa é uma inspiração para gerações de matemáticos.
Aos 26 anos tornou-se famoso por provar a “Conjectura dos 10 martinis” – um difícil problema sobre operadores de Schrödinger proposto em 1980 pelo matemático americano Barry Simon e popularizado por Mark Kac, que ofereceu 10 martinis a quem o resolvesse.
Ávila terá ganho apenas 5 martinis, pois o seu trabalho foi em co-autoria com a russa Svetlana Jitomirskaya. Mas o seu virtuosismo e a sua produtividade são absolutamente prodigiosos: com 70 artigos científicos de primeiríssima linha e mais de 30 co-autores em todo o Mundo, Ávila é a desconstrução viva do mito do “cientista solitário”. A sua abordagem colaborativa é uma inspiração para gerações de matemáticos.
Artur Ávila: o céu é o limite. Sem nuvens.
Aos 35 anos, Maitre de Recherches no CNRS (Centre National pour la Recherche Scientifique) francês, Catedrático do IMPA no Brasil, liderando várias áreas científicas ao mesmo tempo, o céu é mesmo o limite para Ávila.
Martin Hairer e o canivete suíço da edição de som
Martin Hairer (n. 1975) , matemático austríaco, professor na Universidade inglesa de Warwick, trabalha na área das equações diferenciais parciais (equações que regem fenómenos tão diversos como, por exemplo, o movimento de fluidos, a dinâmica da atmosfera, a actividade solar ou as partículas subatómicas.
As equações diferenciais parciais puras descrevem uma evolução determinista. Hairer desenvolveu uma teoria geral para equações que têm uma componente estocástica (isto é, aleatória). A teoria correspondente, chamada teoria de estruturas de regularidade, representa uma abordagem radicalmente nova: pode permitir compreender a evolução de fenómenos físicos que contêm processos aleatórios.
Hairer é também um programador de excelência. Ainda estudante, desenvolveu software de edição de som (chamado Amadeus) descrito como “o canivete suíço da edição de som”.
Um exemplo simples é um incêndio florestal: na ausência de vento, sabemos como evolui a fronteira entre a área ardida e a área não ardida em função da topografia do terreno. Juntando o vento, que tem uma evolução imprevisível, torna-se impossível prever a evolução de forma determinista. A teoria das estruturas de regularidade pode ajudar à compreensão deste tipo de problemas. E os exemplos são potencialmente em número infinito: cada equação é um caso!
Além de tudo isto, Hairer é também um programador de excelência. Ainda estudante, desenvolveu software de edição de som (chamado Amadeus) descrito como “o canivete suíço da edição de som”. E criou também a sua própria empresa, a Hairersoft, para o comercializar. Embora o seu trabalho matemático não dependa de computadores, Hairer afirma que a programação de pequenas simulações o ajuda a construir intuição para os fenómenos gerais.
E Portugal?
O leque de galardoados com a medalha Fields mostra bem que o talento matemático nem é genético nem surge geograficamente confinado: as medalhas deste ano tiveram como países de origem dos galardoados Irão, Índia/Canadá, Brasil e Áustria. As anteriores, em 2010, tiveram como protagonistas nacionais de França, Rússia, Vietname e Israel. Este facto evidencia bem que, ao contrário do que por vezes se ouve, não existe um hipotético “gene matemático”. A explicação é bastante mais prosaica.
O nível de topo numa disciplina científica como a Matemática não se atinge por acaso. Exige um grande esforço consciente e colectivo. Começa por ser necessário estabelecer um ensino generalizado e universal de grande qualidade, para cativar os mais motivados e dotados. Segue-se um conjunto de mecanismos para a detecção precoce dos talentos, e a criação de estruturas que permitam dar-lhes uma formação adequada.
É significativo que três dos quatro medalhas Fields deste ano tenham tido participações arrasadoras nas Olimpíadas Internacionais de Matemática enquanto adolescentes: revela motivação muito precoce para a Matemática e detecção muito precoce dos talentos. Na verdade, os países mais bem classificados têm escolas especiais para a preparação dos seus “olímpicos”. Esta preparação intensiva pode durar anos, tal e qual como a dos atletas de alta competição para os Jogos Olímpicos. Foi provavelmente essa a razão pela qual Mirzakhani melhorou a sua pontuação de 90 para 100 pontos da primeira para a segunda participação. Por outro lado, uma participação deste nível nas Olimpíadas não pode ser fruto do acaso, assinalando imediatamente um talento fora-de-série.
Finalmente, são necessárias escolas de pós-graduação de nível mundial: no caso dos medalhados deste ano, Harvard, Princeton, Stanford, IMPA, Warwick. Escolas de primeira categoria atraem mentes de primeira categoria; escolas de segunda categoria atraem mentes de quinta categoria.
Entre nós, a entidade responsável pelas Olimpíadas de Matemática é a Sociedade Portuguesa de Matemática. Há meia dúzia de anos que Portugal tem participações cada vez mais positivas nas Olimpíadas; veja-se o que ocorreu este ano. Estamos ainda longe de ter um aluno com classificação máxima; mas poderemos sonhar com medalhas Fields, digamos, em 2034?
Talvez, se decidirmos apostar convictamente na detecção precoce do talento, na excelência do ensino e no trabalho sério e diferenciado para a nata da nata (estas condições são necessárias, mas não suficientes). Curiosamente, estas afirmações nem sequer são específicas para a Matemática: mutatis mutandis, foram a detecção precoce do talento e a preparação específica e intensiva dos melhores que permitiram o aparecimento no futebol de um Cristiano Ronaldo. Se ser o melhor do Mundo funciona assim para o futebol, por que razão seria algo diferente para a Matemática?
A outra opção é não fazer nada. Continuaremos portanto, daqui a 20 ou 40 anos, como hoje, a olhar para Mirzakhani, Bhargava, Ávila, Hairer e seus pares como seres exóticos, e talvez mesmo a manter a ficção de que Portugal “teve azar” numa imaginária lotaria genética.
A decisão cabe, organicamente, a todos nós em conjunto. Quereremos pagar o preço da excelência?