Quando na quinta-feira Fernando Santos anunciar os convocados para o Mundial do Qatar, “Rafa não estará lá com certeza”. É desta forma que Toni responde quando questionado sobre um assunto que, na sua ótica, é assunto encerrado.
O ex-jogador e treinador benfiquista saberá deste tema como poucos. Lenda do Benfica, onde conquistou dezenas de títulos, tem sido presença assídua na tribuna do Estádio da Luz ao lado de Rui Costa. O agora presidente da águias foi treinado no início da carreira pelo próprio Toni, então adjunto de Eriksson, que vê na sua ascensão um momento de viragem no futebol português, abrindo portas a que mais ex-jogadores assumam a presidência dos clubes.
A meio de novembro, o Benfica segue na liderança do campeonato com 8 pontos de vantagem, e passou a fase de grupos da Liga dos Campeões em 1.º lugar, num grupo que incluía Paris Saint-Germain e Juventus. Toni atribui o mérito ao planeamento feito na pré-época, ao recrutamento de jogadores, e sobretudo a Roger Schmidt, o técnico “germânico de ar esfíngico” que devolveu às águias a alegria de jogar.
Em entrevista ao programa “Nem tudo o que vai à rede é bola” da Rádio Observador, o treinador abordou ainda o momento conturbado que vive o Irão, país onde treinou durante quatro anos o Tractor. Conhecedor das dificuldades que se vivem no país, e que afetam sobretudo os mais pobres, Toni não tem dúvidas: “A juventude daquele país quer a mudança”.
Como é que tem visto este ressurgimento do Benfica, que leva já 23 jogos oficiais, 20 vitórias e três empates. Estamos em novembro, mesmo num cenário otimista, conseguia imaginar um Benfica tão forte como temos visto?
Quando a época começou não projetava o Benfica para os patamares onde ele tem estado, quer a nível exibicional quer a nível de resultados. Mas penso que a escolha cirúrgica que houve na construção do plantel e naturalmente, também, do treinador, acabou por determinar que o Benfica mostrasse uma face diferente daquela que vinha mostrando nos últimos dois anos. Mesmo trabalhando nas circunstâncias em que todos os clubes tiveram que trabalhar, porque os moldes da Champions este ano foram diferentes fruto do Campeonato do Mundo, com uma densidade competitiva muito grande. Para quem quer construir uma equipa para todos os processos de jogo serem cimentados, é preciso tempo e trabalho. Tudo isso foi feito em tempo, penso eu, recorde, porque houve pouco tempo para isso. Mas o que é o facto é que o Benfica apresentou, como disse, quer do ponto de vista exibicional, quer de resultados, um projeto como há muito não conhecia.
Falou do treinador. Qual é o mérito de Roger Schimdt naquilo que está a acontecer no Benfica? Era importante nesta fase a aposta num treinador estrangeiro, que não acontecia há muito tempo, um treinador que não conhecesse o campeonato português e que pudesse colocar as suas ideias sem o condicionamento de já estar incluído no futebol português?
O treinador está sempre, para o bem e para o mal, ligado ao que acontece dentro de uma equipa. Esta aposta que o Rui Costa acabou por fazer têm-se tornado, penso que para todos, numa boa aposta. Houve uma adesão dos jogadores à proposta de jogo do treinador, e contribuiu muito o compromisso de todos para que este trajeto que está a acontecer tenha tido até agora sucesso. Não sei se vai ganhar ou não o campeonato, não sei se vai ganhar ou não outras provas, mas o que é certo é que o Roger Schmidt devolveu ao Benfica e aos jogadores do Benfica uma alegria de jogar que não se via.
Um pequeno exemplo: todos se lembram daquele golo do Rafa, em que ele corre quase 80 metros com a bola, faz golo, e depois perguntam-lhe no final do jogo o que é que ele pensava daquele golo, e ele quase que encolheu os ombros; e agora, no jogo contra o Chaves, ao fazer o 5º golo de cabeça, vê-se a maneira esfuziante como festejou. Isso traduz um estado de alma, um estado de espírito, fruto não só daquilo que é o trabalho de campo, mas também da forma de condução de uma equipa, da forma como até um germânico, como é o Roger Schmidt, aparece a dar abraços aos jogadores, a beijar os jogadores, aquele ar esfíngico que ele tem durante o jogo, mas que se transforma nos finais dos jogos.
E depois a sua comunicação: não se põe em bicos de pés, tem um discurso tentando apagar a euforia que vai nos adeptos fruto deste trajeto todo, o conhecimento que mostra do jogo e das pessoas — porque os jogadores são pessoas, os jogadores são humanos. Há aqui um conjunto de fatores que estão na bagagem de Roger Schmidt e que são fundamentais para uma equipa, como a comunicação, a liderança, o conhecimento. E tudo isso ele tem trazido e tem posto em prática, e os jogadores aderiram a essa proposta de jogo.
Aproveitando exatamente essa deixa, perguntava-lhe se, tendo em conta que o Benfica acaba por ser a equipa dos grande que menos roda, mas ainda assim que melhor fisicamente está, porque continua a jogar com a mesma intensidade desde o início da época, se esse fator anímico tem sido diferenciador em relação às outras equipas? E se acha que esta paragem para o Mundial poderá de certa forma voltar a equilibrar as forças no campeonato?
Pois, esta paragem do campeonato vai ser uma situação nova para todos, para jogadores e para treinadores, porque é a primeira vez que um Campeonato do Mundo é disputado a meio da época normal. E daí tenha que se adaptar a essa nova realidade. Depois, vendo quantos jogadores de cada equipa estarão ao serviço das diversas seleções durante o campeonato do mundo, isso será um fator que pode ser influenciador, porque ainda praticamente só está jogado um terço do campeonato. Em relação à forma como Roger Schmidt agarrou inicialmente em 38, salvo erro foram 38, jogadores (até houve algumas críticas), os levou para estágio e começou a preparar um primeiro objetivo, que era a qualificação para a Champions: não havia muito tempo, e ele agarrou num 11 base que foi praticamente aquele que definiu nos jogos que antecederam a época.
Depois recebeu e incorporou o Enzo Fernández que, felizmente para o Benfica, viu o River Plate ficar pelo caminho na Taça Libertadores; esse foi realmente um trunfo muito forte que chegou ao Benfica e que pegou de estaca. Essa base escolhida por Roger Schmidt acabou por ser aquela que praticamente fez, com uma ou outra lesão, uma ou outra alteração — como na lateral direita por exemplo, usando ou Bah ou Gilberto, ou nos centrais, onde houve ali uma ou outra lesão. Mas a base, ela estava lá e tem dado do ponto de vista físico respostas, até porque com as vitórias a confiança instala-se, a equipa até parece menos cansada, e menos cansada também porque o modelo de jogo que o Benfica adotou é um modelo de jogo que pode ter varias situações onde, quando perde a posse da bola pode recuperar logo, em vez de andar atrás dela, e daí pode até desgastar-se menos tendo a bola. Esse pode ser também um dos segredos para que o Benfica continue a apresentar-se com uma forma física muito boa. Veja-se o caso do João Mário, que é um jogador que veio para patamares que, para mim — só talvez olhando um pouco para a época em que ele foi o melhor jogador da Liga no Sporting — penso que estará provavelmente a fazer a melhor época de sempre da sua carreira.
O Toni tem visto alguns jogos no Estádio da Luz, na tribuna, bem perto de Rui Costa. Como é que olha para esta ascensão que ele teve, desde o miúdo que o próprio Toni treinou antes de ir para Série A, para a Fiorentina, para o Milan, e que agora chegou a presidente do Benfica e faz questão de ter todas as figuras do clube por perto. Dá-lhe alguns conselhos de vez em quando?
Esta chegada do Rui à presidência do Benfica pode ser também o momento de… não direi que todos os clubes passarão a ter antigos jogadores como presidentes, mas pode ser um momento de viragem. Pelo menos em entrevistas aparecem nomes, como ainda agora o Figo, que não descarta poder vir a ser presidente do Sporting. O Rui teve a preocupação de ter um espaço, que deve ser um espaço da história do Benfica, feita por jogadores do Benfica; a história é feita com dirigentes, alguns, que ao longo da história do Benfica deram muito do seu esforço e da sua dedicação, mas também um espaço para gente com história.
Em todos os jogos andarão entre 25, 30 jogadores que fizeram história dentro do Benfica, e que naturalmente estarão sempre com o Benfica e torcerão sempre pelo êxito do Rui Costa. E é importante nestes seus primeiros tempos de mandato — ele tem pouco mais de um ano de mandato — que tenha sucesso, porque se esse sucesso não surgir aparecerão sempre fantasmas que nada contribuem para que o Benfica seja um clube estável e sem conflitos, porque um clube dividido nunca será um clube forte. Interessa que estejamos todos à volta de um presidente, quer ele hoje seja Rui Costa, e espero que continue por vários anos, quer seja outro, desde que perfile os valores e os princípios do Benfica.
Olhando para os miúdos nesta altura da formação, temos um Florentino que voltou e pegou de estaca depois do empréstimo que teve em Espanha; temos também a ascensão do António Silva. Pelo momento que atravessam, já são hipóteses de seleção? E, como dizia Fernando Santos, ainda tem esperança que o telefone do selecionador toque com o número do Rafa?
Em relação ao Rafa acho que não vale a pena estarmos sequer a discutir uma situação onde o jogador tomou uma posição que me pareceu irreversível. Acho que não, quando na quinta-feira forem anunciados os 26, Rafa não estará lá com certeza.
E em relação ao Florentino e ao António Silva? É um cenário diferente apesar de tudo.
Claro. O Florentino fez parte do leque de jovens que naquela altura ajudaram Bruno Lage e o Benfica a serem campeões. Depois estranhamente o Florentino saiU da órbita dos titulares, foi fazer um pouco o caminho das pedras, e voltou. Penso que refinou mais aquilo que tinha como jogador. É um jovem que continua a evoluir e pode ainda chegar mais além. Tem sido, ele e Enzo Fernández, para mim — o futebol do Benfica passou muito também pelos dois homens do meio-campo. Esses dois homens do meio-campo mudaram o paradigma do futebol do Benfica. Não foram só esses dois, mas o contributo deles foi muito determinante para que o futebol do Benfica se diferenciasse das épocas anteriores.
O António Silva, nem meia dúzia de jogos fez na equipa B, mas os jogos que tem feito na equipa A, e fruto de lesões é que é possível termos o António Silva a jogar, e ele em cada jogo que lhe surgiu essa oportunidade, vem-se afirmando. Com alguns erros, naturalmente, mas fez agora 19 anos. Mas tem uma personalidade fortíssima, não se deixando abalar por esses pequenos erros que irão fazer parte do seu crescimento, é já um valor firme, mesmo ainda com, não sei se tem pouco mais de 10 jogos na equipa A, e é um valor já firmado no Benfica, e penso que poderá estar no lote dos 26.
O Toni passou quatro anos no Irão, acabou por abrir a porta para outros treinadores portugueses que também têm tido sucesso, como é o caso recente do Ricardo Sá Pinto que acabou de ganhar a Supertaça. Como é que tem visto o que se passa no país, as dedicatórias feitas pelos jogadores à população, sendo que nesta altura até um grupo de figuras iranianas pediu a um escritório de advogados espanhóis para avançar com uma queixa para a FIFA, a dizer que a seleção do Irão devia ser afastada do Mundial por tudo o que se está a passar, por violar os direitos humanos. Como é que olha para tudo isto, acha que este cenário de afastamento do Mundial poderia ser justo ou sequer possível?
Passei lá quatro anos e nunca nas minhas abordagens falei acerca do ponto de vista político do que acontecia no Irão. Na minha zona, o Tractor era uma bandeira de 40 milhões de adeptos. E esses 40 milhões de adeptos são de uma zona, digamos quase que independentista. E esses contornos tentei sempre não traduzir naquilo que era o Tractor. As pessoas todas parece que estavam a dizer que era um clube com uma fábrica de tratores; realmente a fábrica de tratores existia lá, só que por trás dessa bandeira do Tractor havia coisas que se passavam nessa região do Azerbaijão — nessa parte, aquilo é uma parte do Azerbaijão.
Por isso vivi, tal como hoje continua a haver, o embargo que existe há mais de 30 anos, quer da Europa quer dos Estados Unidos, fruto das situações que todos conhecemos em relação à parte nuclear. E então esse embargo torna difícil a vida, com todas estas sanções, e isto reflete-se depois no povo. Têm sido de uma coragem, o Taremi tem sido de uma coragem de quem percebe e sente que a juventude daquele país quer a mudança. O Taremi com as posições que tomou… não sei que reflexo é que eventualmente poderá ter, inclusive até à participação da seleção, não sei.
O que é facto é que, em relação àquilo que é o Irão enquanto potência futebolística da Ásia, penso que o Irão neste momento é a primeira potência futebolística da Ásia, com um contributo inestimável de Carlos Queiroz, se realmente essa situação dos advogados espanhóis não vier a influenciar (o que não acredito, porque estamos mesmo muito em cima do evento). Depois outros treinadores portugueses que passaram pelo Irão e que estão agora também no Irão dão um contributo inestimável para um pais que tem grandes jogadores. Nós agora com o Taremi descobrimos que afinal o Irão tem jogadores de grande qualidade do ponto vista físico, do ponto vista técnico, tático. Têm evoluído muito, e daí serem a primeira potência da Ásia, com a qual nós em Campeonatos do Mundo tivemos oportunidade, não só de ver, mas também de ver no confronto com eles.