Os números de mortos por Covid-19 são conhecidos e atualizados diariamente pelas autoridades de saúde, mas as preocupações dos médicos viram-se também para doentes não-Covid que estão a evitar recorrer a serviços de urgência ou a adiar tratamentos com medo de serem infetados pelo novo coronavírus. No limite, estes poderão também morrer — danos colaterais de um serviço de saúde com prioridade para doentes Covid-19 — e não entrarão para as estatísticas da DGS já que a causa de morte não foi diretamente o coronavírus.
Um estudo formulado por um grupo de docentes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, investigadores do Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde, debruçou-se precisamente sobre a questão do excesso de mortalidade registado durante o mês de março em Portugal. No artigo, publicado esta segunda-feira no Diário de Notícias, o grupo indica que “março de 2020 é um mês único” no que diz respeito à mortalidade, isto por ser o único, desde que há dados disponíveis, que apresenta um crescimento sustentado da mortalidade ao longo do mês. Ou seja: nos primeiros sete dias de março, registou-se uma média de 297 mortes por dia, sendo que esse valor subiu para 352 mortes diárias nos últimos sete dias do mês. Este movimento dinâmico costuma ser inverso, já que março inicia habitualmente com uma média de mortalidade diária superior e vai diminuindo ao longo do mês.
O ano de 2020 teve por isso os últimos dez dias de março com mais mortes dos últimos 12 anos — 3.471. O estudo apresenta duas possíveis estimativas de excesso de mortalidade em março: a primeira parte da premissa de que as mortes em excesso são aquelas que estão para lá de uma variabilidade expectável da média diária dos últimos anos, chegando ao número de 81 mortes em excesso ao somar todos os óbitos acima dessa variação natural (já subtraindo as vítimas mortais da Covid-19); a segunda propõe que março tivesse mantido a mortalidade média da primeira semana do mês e que a evolução presente nos últimos 12 anos, em que esse valor foi decrescendo com o passar das semanas, não tivesse acontecido, o que colocava o excesso de mortes em 702, também já sem as vítimas da pandemia.
Sem optar por nenhuma das estimativas, o grupo abre quatro balizas de possibilidades que podem contextualizar este excesso de mortalidade, ainda que sem estabelecer qualquer primazia de um deles: óbitos por Covid-19 não diagnosticados; óbitos que, tendo sido evitados em fevereiro, vieram a verificar-se em março; óbitos por outras condições que, fruto da situação atual, acabam por não ser evitados; ou simplesmente óbitos que já iriam acontecer nesta altura e que são quase imprevisíveis.
Certa é, pelo menos para já, a diminuição no número de pessoas que recorreu às urgências no mês de março. Ainda que o INEM dê conta de uma diminuição “pouco significativa” do número de chamadas recebidas, os médicos nas unidades de saúde — nomeadamente na área das doenças cardiovasculares — interrogam-se sobre o porquê da diminuição do número de doentes com AVC e enfarte que têm chegado às urgências. Sendo pouco provável que os números tenham diminuído significativamente sem explicação óbvia, os especialistas ouvidos pelo Observador apontam como uma das causas possíveis o receio que os doentes têm em dirigir-se às unidades de saúde.
Há também quem esteja a adiar exames pedidos pelos médicos mesmo sabendo que durante a pandemia só é dada prioridade a quem de facto a tem: situações de risco ou que precisam de ser vigiadas de perto pelos médicos. No caso dos doentes oncológicos há terapêuticas a serem adiadas, o que, não comprometendo a vida dos doentes no imediato, poderá complicar a equação da cura a longo prazo. Alguns destes fatores fazem soar as campainhas dos médicos que por ora se concentram em dar respostas à pandemia. O secretário de Estado da Saúde, António Sales, também já deu garantias que se está a delinear um “plano de futuro” para que rapidamente se recupere toda a atividade suspensa por culpa da Covid-19. Mas daqui a quanto tempo?
Na oncologia, médicos temem adiamentos: “Esquecemos que as outras doenças existem”
Na quinta-feira, a Direção-geral da Saúde emitiu uma norma sobre os doentes oncológicos que veio tranquilizar os médicos que esperam, agora, possa vir a “inverter o rumo que estava a ser seguido”. Desde o primeiro momento que os doentes oncológicos, e também os diabéticos por exemplo, estavam inseridos nos grupos prioritários de doentes a quem deviam ser garantidos todos os tratamentos, exames complementares de diagnóstico e consultas, mas ao Observador o oncologista Jorge Espírito Santo diz que nem todas as unidades de saúde estavam a cumprir com essa indicação.
“Os doentes oncológicos estão a ser metidos na molhada global das doenças crónicas que não têm muito atendimento. Há coisas que estão a ser adiadas, nomeadamente e sobretudo exames complementares de diagnóstico, clínicas convencionadas fecharam ou limitam muito o acesso dos doentes, há atos terapêuticos adiados. Estão-se a reduzir as consultas, nos cuidados primários e hospital, o que não é essencial não se faz, para evitar que as pessoas se juntem. Foram definidos grupos prioritários onde não se faz isso: doença oncológica, diabéticos, descompensações de doenças crónicas e é aí é que falha um bocadinho”, diz o médico, que acrescenta ainda que há cirurgias a ser canceladas porque o doente pode vir a precisar de uma cama de cuidados intensivos que, neste momento,”é um luxo”.
O especialista recorda que há um número considerável de doentes com Covid-19 que vão precisar de cuidados intensivos para sobreviver e que a escassez destes cuidados condiciona também a decisão de operar outros doentes que não são Covid-19, mas que podem vir a precisar de cuidados intensivos.
“Se vai operar um doente com patologia oncológica e precisa de cuidados intensivos pode ser, de facto, um problema. Se não se operar um doente a doença evolui e pode perder-se a oportunidade de tratar os doentes“, afirma o oncologista.
“Ontem [quinta-feira] saiu uma norma da DGS relativamente aos doentes oncológicos, que reafirma coisas de bom senso: a continuidade de tratamentos não pode ser posta em causa — cirúrgico, radioterapia ou médico. Vamos ver se consegue inverter o rumo que estava a ser seguido de incluir o número de doentes oncológicos nos hospitais”, afirma Jorge Espírito Santo.
Uma das dificuldades relatadas pelo especialista é a de realização de exames complementares de diagnóstico. “Há exames desmarcados. Aconteceu-me com um exame de um doente que estava marcado e foi desmarcado sem nova data de realização, uma ressonância magnética. Não pode ser”, exemplificou.
Segundo o médico, assiste-se também a uma espécie de “conflito de interesses” entre os doentes Covid-19 e não Covid-19: “Com o esforço que se está a fazer por causa dos doentes infetados com o Covid, que precisam dos cuidados intensivos, as disponibilidades ficam mais reduzidas e as outras doenças continuam a acontecer”.
Para Noémia Afonso, membro da Sociedade Portuguesa de Oncologia, fica por esclarecer ainda “como será operacionalizada” a norma da DGS que indica que todos os doentes oncológicos devem ser testados antes de iniciar ciclos de tratamento. “Só ontem saiu a norma da DGS a solicitar a testagem. Não sei como se pode operacionalizar em todos os serviços e testar a cada tratamento. Há doentes que fazem tratamento a cada 2 semanas, por exemplo”, notou a especialista, que frisou ainda que um doente tenha um teste negativo hoje dentro de duas semanas pode estar infetado e nessa altura estará ainda sob o efeito da quimioterapia.
A oncologista frisa que mesmo que os doentes tenham resultados negativos nos testes à Covid-19 devem apostar nas medidas de proteção e distanciamento social para salvaguardarem a possibilidade de serem infetados com o novo coronavírus.
À semelhança do alerta do médico Jorge Espírito Santo, Noémia Afonso aponta para os “danos colaterais que serão a outra mortalidade”.
“Estamos tão concentrados na Covid-19 que esquecemos que as outras doenças existem. Todos temos que refletir”, afirmou, considerando ainda que ao adiar tratamentos e exames a doentes oncológicos estes doentes se “podem perder ou comprometer o tratamento”.
A oncologista da Fundação Champalimaud Maria João Cardoso afirma que “daqui a um ano” quando a taxa de mortalidade for revista será possível perceber exatamente “qual foi o impacto” da Covid-19 e os número de mortos não Covid-19 que poderão aumentar. A especialista deu ainda o exemplo de Itália e Espanha que, no momento em que se encontram da pandemia, já não conseguem dar resposta aos doentes oncológicos.
Situação semelhante já tinha relatado ao Observador um pneumologista do hospital de Guimarães que se mostrava preocupado com a canalização dos recursos da unidade quase na totalidade para doentes Covid-19, deixando os outros descurados. Diz que exames que permitiriam detetar “nódulos” que numa situação normal os doentes seriam tratados com brevidade, estão a ser adiados e a resposta a estes doentes também, permitindo a evolução da doença que não aconteceria numa situação normal.
Outro dos problemas que os oncologistas enfrentam prende-se com o tempo que as amostras demoram a chegar aos laboratórios para serem testadas. “Um teste que demoraria seis dias pode demorar duas a três semanas”, afirmou a médica, notando que a transportadora DHL está a trabalhar com um terço dos funcionários, condicionando a capacidade de recolhas e entregas das encomendas.
A oncologista recordou ainda a importância de se acompanhar os doentes que vão tendo as suas consultas ou cirurgias adiadas para que não fiquem a sentir-se esquecidos. “Esta norma da DGS veio na altura certa, para chamar a atenção de que não se pode esquecer estas pessoas [doentes oncológicos]. As pessoas confundem um bocadinho, trabalhar em casa é fazer as coisas em casa, ser capaz de telefonar aos doentes. Há doentes que podem esperar, em vez de operar podemos fazer tratamentos hormonais para que esperem e é seguro, mas é preciso falar com as pessoas”, afirmou.
No hospital de S. João mais de metade dos doentes estava a faltar aos exames agendados
O S. João, no Porto, foi o hospital de referência no norte do país na primeira fase da pandemia da Covid-19 em Portugal e mantém-se neste momento como o hospital com mais casos de internamento por Covid-19 e mais de metade dos doentes seguidos na unidade de saúde com exames agendados deixou de aparecer. O serviço de radiologia do hospital S. João constatou que mais de metade dos doentes estava a faltar aos exames — convocados através do sistema tradicional de carta enviada para o domicílio — e optou por contactar telefonicamente todos os doentes com exames agendados, explica ao Observador o diretor do serviço de Radiologia, António Madureira.
O serviço já está a funcionar a metade da capacidade normal e mesmo essa metade estava a ser desperdiçada com doentes que não se dirigiam ao hospital para fazer os exames. “Agora as marcações são feitas por telefone e os doentes informam logo se querem vir ou não, alguns deles preferem não vir”, afirma ao Observador o responsável que esclarece que cerca de 30% desses doentes recusa realizar o exame.
Note-se que todos os atos médicos não urgentes foram cancelados e que apenas estão a ser seguidos doentes já classificados pelos médicos como casos que “devem ser avaliados e seguidos” pelo que se tratam de exames que os doentes deviam estar a realizar e que, ao adiar, podem comprometer o tratamento futuro. No S. João todos os doentes “oncológicos e doentes urgentes” continuam a ser acompanhados pelos médicos, frisou o responsável pelo serviço de radiologia.
“A mensagem que se pode transmitir é que não podem descurar a sua saúde. É normal que tenham medo, mas o hospital tem condições para os exames”, nota o especialista recordando os diferentes corredores que os doentes seguem e a devida “desinfeção” e “higienização” dos espaços bem como a “distância de segurança” que é preservada entre os doentes na sala de espera.
Já há doentes cardiovasculares que interromperam a medicação
Não são apenas os doentes com doenças do foro oncológico que estão a correr mais riscos de ver a mortalidade aumentar. Os doentes com doença cardiovascular integram o grupo de doentes Covid-19 já estudados com uma mortalidade mais elevada e o receio de serem infetados numa ida aos serviços de saúde está a fazer com que corram riscos e adiem ao máximo a ida às urgências.
“Há dias recebi um doente que esteve três dias em casa a ver se passava o AVC”, relata ao Observador a médica internista e coordenadora da unidade Cérebro-vascular (stroke unit) do hospital S. José, em Lisboa, Ana Paiva Nunes que alerta para o perigo que os doentes correm ao adiar a ida aos serviços de urgência: “Quanto mais tarde tratar um AVC menos provável é que consiga recuperar”.
Situação semelhante está a ocorrer com doentes vítimas de enfarte: “Temos um registo permanente das intervenções coronárias e houve uma diminuição de 26% das intervenções coronárias em fase aguda”, explica ao Observador o presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia (SPC), Victor M. Gil. Segundo o cardiologista, os médicos espanhóis relatam uma situação semelhante no país, com os doentes a recearem deslocar-se aos serviços de urgência com receio de serem infetados com o novo coronavírus.
A situação piora se forem tidos em conta os números da China, os únicos até agora conhecidos e pelos quais os especialistas se têm guiado: os doentes com doença cardiovascular têm “maior risco de contrair a doença e um maior risco de mortalidade” [dos 40 mil doentes estudados, 10,5% da mortalidade aconteceu em doentes com doença cardiovascular]. Em Portugal, os doentes com doença cardiovascular continuam a ter que recorrer aos serviços de saúde mensalmente para conseguir receita para os medicamentos anticoagulantes, essenciais para o tratamento, o que está a fazer com que alguns deles deixem de tomar medicamentos essenciais.
“Os medicamentos anticoagulantes não têm receitas triplas, todos os meses têm que ir levantar. São medicamentos muito caros e nem toda a gente tem capacidade de comprar logo seis caixas, por exemplo. São obrigadas a deslocar-se todos os meses ao centro de saúde para que lhes passem novo receituário”, afirmou o especialista, que defende que perante a atual pandemia, quando se pede às pessoas que permaneçam em casa, esta situação devia ser corrigida.
Ainda que se tenham implementado medidas de teleconsulta ou soluções alternativas para acompanhar os doentes e reduzir ao mínimo as deslocações até unidades de saúde, Victor M. Gil diz que as pessoas continuam a sentir-se “muito sós” e que “nem todos os serviços criaram linhas diretas de contacto”.
O acesso médico neste momento está limitado. Ao estar limitado, as pessoas podem não ter facilidade em renovar receituários, acabam medicamentos. Já temos conhecimento de situações em que as pessoas abandonaram ou interromperam terapêuticas“, afirmou o especialista.
Além da interrupção de terapêuticas essenciais para controlar as doenças cardiovasculares, o “retraimento” dos doentes em procurar ajuda médica nos serviços de urgência está a gerar grande preocupação junto da comunidade médica. “Não se pode agora pensar que é só a Covid-19. A insuficiência cardíaca tem uma mortalidade de 20% ao ano. A probabilidade de morrer de insuficiência cardíaca é maior do que de Covid”, frisa Victor M. Gil, recordando que “todas as unidades de cardiologia no país continuam operacionais” e que os doentes “não podem ficar à espera que passe, têm que ativar o 112”.
“Perante sintomas de suspeita de enfarte (ou AVC) ativem o 112 da mesma maneira. As pessoas do 112 têm que continuar a tratar da mesma maneira e a levar os doentes. Existem corredores limpos nos hospitais, há covidários e outras vias para os restantes doentes”, notou o especialista.
Os cardiologistas têm registado, nos últimos tempos, um aumento no “número de casos com maior gravidade do que o habitual”, podendo indiciar que as pessoas estão a esperar mais tempo do que esperavam perante os primeiros sintomas de enfarte, condicionando o tratamento possível ou levando à morte do doente.
Situação semelhante relata a internista Ana Paiva Nunes que nota que há “muito menos pessoas nas unidades de AVC e nas ativações do CODU [Centros de Orientação de Doentes Urgentes do INEM]”. “Nesta situação excecional que estamos a viver as pessoas estão cheias de medo. Temos relatos de pessoas a recusarem-se a ir aos hospitais e bombeiros a obrigar”, afirma a especialista, notando que “tudo continua a funcionar como é suposto”.
“Ainda temos capacidade para tratarmos destas situações, não estamos numa situação de catástrofe em que não seja possível tratar outras coisas que não a Covid-19. Há emergências que continuam a ocorrer com ou sem Covid-19. Essas situações têm tratamento na urgência”, realça a coordenadora da stroke unit do S. José, em Lisboa, que levanta a hipótese de os doentes estarem “a ser tratados mais tarde” porque adiaram a procura de ajuda médica.
Já a médica Adelina Pereira, do Colégio de Emergência Médica da Ordem dos Médicos, nota que as conclusões em relação à afluência às urgências só serão possíveis “mais tarde”, mas lembra que a diminuição no recurso às urgências se deve muito aos casos que não eram verdadeiramente urgentes, habitualmente classificados com pulseira verde, mas que continuavam a recorrer aos serviços de urgência. Ainda que não descarte também uma diminuição no número de outros doentes, mais urgentes, frisa que “só mais tarde” será possível fazer uma análise “objetiva”.
INEM nota quebra nas chamadas de doentes “não urgentes”
O número de chamadas para o 112, que são encaminhadas para o CODU (Centro de Orientação de Doentes Urgentes), mantém-se dentro da média quando comparada com anos anteriores. Exceção feita aos dias seguintes à declaração de estado de emergência e ao último domingo do mês de março, quando se registaram números bastante mais baixos (das cerca de 3.700 chamadas diárias para menos de 3 mil), tendo — por oposição — os dias com mais chamadas do mês de março sido os que se seguiram à decisão de encerrar os estabelecimentos de ensino (12, 13 e 14), explica ao Observador o responsável do CODU, António Táboas.
Segundo o médico, a principal diferença está no tipo de chamadas que têm recebido: “Há uma quebra de doentes que considerávamos não urgentes. Esses, os que eram triados como não urgente, estão a ligar menos”, mas há também casos em que depois de ser enviada ajuda ao local os doentes “recusam ir ao hospital”.
Em março de 2019, as chamadas para o 112 dos portugueses ativaram o CODU 116.514 vezes, tendo este ano — durante a pandemia da Covid-19 — o número reduzido para 111.033 pedidos de ajuda. Uma diferença que António Táboas diz ser pouco significativa quando comparada com outros anos. Segundo os dados do INEM, em março de 2018 tinham sido 118.314 chamadas e 112.782 em 2017, por exemplo.
“As pessoas têm algum receio de contaminação, com a entrada na fase de transmissão comunitária, há esse risco, não especificamente [o receio] de ir ao hospital”, afirma, dando os exemplos de doentes que sofrem acidentes de viação ligeiros ou quedas em casa, que normalmente optariam por ir ao hospital e agora recusam.
“Agora preferem ficar em casa em vigilância, querem salvaguardar-se”, nota o médico, esclarecendo que o transporte ao hospital é sempre decisão última do doente (desde que esteja na posse de todas as faculdades mentais no momento).
Relativamente aos pedidos de ajuda de pessoas com sintomas de AVC ou enfarte, o responsável diz que os pedidos de ajuda para casos de enfarte “aumentaram” ainda que o número de pessoas que liga desde o início dos sintomas até duas horas depois tenha “baixado ligeiramente” e o número de pessoas que liga até às 12 horas de evolução dos sintomas tenha “subido ligeiramente”. Segundo o médico, a diferença “não é significativa”, mas nota que há também doentes que recorrem diretamente às urgências dos hospitais sem ligar o 112.
Menos 45% de doentes nas urgências em março
Em comparação com o mês de março do ano passado, os portugueses procuraram 45% menos os serviços de urgência. Foram 295.451 os episódios de urgência registados em março, o que coloca o mês fora do “limite do intervalo de confiança estimado” segundo os dados analisados, pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), entre os anos de 2014 e 2019. Os dados são de um estudo de investigadores da ENSP divulgados na sexta-feira pela agência Lusa.
Há dados positivos: as urgências de cor verde, que apontavam para um recurso inadequado aos serviços de urgência de casos que não eram realmente urgentes, diminuíram.
Mas também há dados que causam alguma inquietação nos investigadores: a redução de urgências de cor amarela pode ter impacto direto na não resolução dos atuais problemas e “no adiar de situações que se tornarão mais graves no futuro”.
Ainda que admitam algumas limitações no estudo, por estar a ser realizado numa altura de pandemia, os investigadores notam que o facto de os portugueses permanecerem em casa em cumprimento da recomendação do isolamento social reduz naturalmente “as razões que motivam a ida às urgências”, os acidentes de trabalho, de viação ou ainda a procura por “baixas profissionais momentâneas” e a redução dos “traumatismos desportivos”.
Há outras causas que, com a permanência em casa, podem levar a uma subida, como sejam os acidentes domésticos, a violência familiar ou a criação de dependências, mas os investigadores frisam a “falta de informação sobre as características da utilização” dos serviços de urgência.
Com o recurso tardio aos serviços de urgência poderá acontecer que ocorra “um impacto direto na saúde dos indivíduos” que serão depois atendidos “numa forma mais grave e diferida” da doença, sustentam os autores do estudo.
Doentes cardíacos e oncológicos também preocupam italianos e espanhóis
Olhando para Espanha e Itália, os países europeus mais afetados pela pandemia, as dúvidas e incertezas relativamente a estes doentes “colaterais” repetem-se. A mesma tendência nos doentes cardíacos foi registada em Espanha, como alertou o presidente da SPC de Portugal, mas também em Itália. Isso foi comprovado através de um estudo da Sociedade Italiana de Cardiologia que, ao analisar 50 unidades de hospitais italianos durante a semana de 12 a 19 de março, concluiu que foram hospitalizadas apenas 349 pessoas por urgência cardíaca, comparadas com as 693 registadas na mesma semana do ano passado.
“Em pacientes com ataques cardíacos, vimos uma redução surpreendente das hospitalizações em mais de 50%”, declarou ao La Repubblica Ciro Indolfi, presidente da Sociedade e médico cardiologista. “As razões para esta redução drástica estão a ser analisadas. Não há dúvidas de que o receio dos pacientes em serem hospitalizados e contraírem Covid-19 tem um papel importante nisto”, acrescenta. “Não podemos achar que, neste momento, um ataque cardíaco é menos importante do que a Covid-19 e baixar a nossa guarda”.
E os doentes cardíacos não são os únicos a serem afetados por esta situação. Os pacientes renais são outro exemplo. “Eles têm de ir três vezes por semana aos hospitais [fazer diálise], que é onde estão os grandes focos de contágio. Têm a incerteza de não saber se vão ser contagiados [por Covid-19]”, alertou Dani Gallego, presidente da Federação de Associações de Doentes Renais ao El País. Por essa razão, a Sociedade Espanhola de Nefrologia assinou um protocolo com o Ministério da Saúde espanhol para que o número de passageiros em ambulância até às unidades de diálise não possa ser superior a quatro.
As soluções para estes e outros doentes crónicos em ambos os países passam muitas vezes pelas teleconsultas e pelo contacto frequente com os médicos que os seguem. Salvador Tranche, presidente da Sociedade Espanhola de Medicina Familiar e Comunitária, contou também ao El País que a app criada pela Sociedade para colocar doentes e médicos em contacto tem servido mais para esclarecer dúvidas sobre outras doenças do que sobre a Covid-19: “A maioria das perguntas são de pacientes crónicos que não sabem o que fazer com o seu problema de saúde. Por exemplo, um diabético que teme as consequências de não poder ir passear e de engordar”, ilustra.
Outro dos casos mais preocupantes nestes dois países é igualmente o dos doentes oncológicos, cujo sistema imunitário mais frágil os coloca em maior risco de contrair o novo coronavírus. Para além disso, muitos deles necessitam de tratamentos de quimio ou radioterapia que os obrigam a deslocar-se até aos hospitais ou até mesmo de cirurgias urgentes. Tanto Itália como Espanha se têm focado em analisar caso a caso e perceber que tratamentos e cirurgias são adiáveis e quais são indispensáveis, mesmo fazendo o paciente correr riscos.
“Todos os dias telefonamos a cerca de 500 pacientes que é suposto virem cá no dia a seguir”, contou Giuseppe Curigliano, diretor do Instituto Europeu de Oncologia, ao Corriere della Sera. “Um grupo de médicos e enfermeiros contacta-os um a um e faz uma espécie de triagem: pedem-se exames, responde-se a perguntas sobre possíveis contactos com infetados, sobre sintomas… Temos de perceber como é que eles estão e se correm risco de serem infetados.”.
O oncologista espanhol Javier de Castro aponta na mesma direção: “É necessário personalizar cada caso e ver se os tratamentos hospitalares podem ser atrasados ou se têm de continuar”. As consultas de doentes oncológicos em Espanha foram “provavelmente” quase todas adiadas, explica Begoña Barragán, presidente do Grupo Espanhol de Pacientes com Cancro à BBC. Mas os tratamentos extremamente necessários não foram suspensos: “Não se interromperam as radioterapias nem as quimioterapias”, garantiu.
O risco, contudo, está sempre lá. E, sabendo disso, tanto Espanha como Itália começam a procurar soluções para colocar a salvo os seus doentes com outras patologias que, se contraírem Covid-19, correm ainda mais risco do que os infetados saudáveis. Em Espanha, são vários os casos de hospitais que começam a transferir doentes não-Covid para outras áreas de Saúde — é o caso do Hospital Geral de Valência, por exemplo, mas também em Madrid, por iniciativa da Comunidade Autónoma, que reencaminhou doentes oncológicos para uma clínica privada, a fim de não os colocar em hospitais com infetados por Covid-19.
Em Itália, o movimento é por vezes contrário: “As unidades de Cuidados Intensivos de pequenos hospitais estão a converter-se em unidades de Cuidados Intensivos de Covid-19, para que os grandes centros possam respirar”, explicou à BBC um enfermeiro do hospital de Udine. O importante é que pacientes infetados com o novo coronavírus e os restantes estejam separados — e que o material de proteção possa ser distribuído em todos os hospitais, para garantir que não há infetados assintomáticos a propagarem o vírus num local descontaminado.
Mas tal como a melhor forma de impedir a Covid-19 de se propagar pela população em geral é garantir que as pessoas ficam em casa, o mesmo se aplica, sempre que possível, a outros doentes. É por essa razão que organizações como a Cittadinanzattiva estão a tentar promover sistemas que permitam o acompanhamento médico de doentes em casa: “Precisamos de ativar protocolos que permitam um plano B para os cuidados domiciliários, bem como de uma desburocratização que permita a estas pessoas evitarem ir ao hospital quando só precisam de resolver questões administrativas”, como é o caso das receitas, explicou o dirigente Antonio Gaudioso ao Linkiesta.
Por essa razão, a Cittadinanzattiva escreveu uma carta para as várias regiões de Itália pedindo às autarquias que ativem sistemas que permitam cuidados médicos ao domicílio para doentes oncológicos ou crónicos. “Aquilo que pedimos é uma alocação extraordinária de mais de um bilião para cuidados domiciliários, para garantir que o compromisso das regiões é vinculativo”. A carta já conta com a assinatura de representantes de vários partidos, desde o Partido Democrático ao Movimento 5 Estrelas, passando pelo Forza Itália de Silvio Berlusconi.
Há mais gente a morrer de outras doenças em Espanha e Itália?
No que diz respeito aos números, a única coisa que parece para já certa, em ambos os países, é que a mortalidade disparou ao longo destes dias, devido à Covid-19, mas torna-se difícil perceber qual o efeito que a pandemia está a ter nas outras patologias.
A isto é preciso acrescentar que vários especialistas consideram que os números de mortes por Covid-19 em ambos os países podem estar subestimados: “Muitas das mortes acontecem em casas ou em lares sem que as pessoas sejam testadas, o que complica as contas”, apontava por exemplo ao El Independiente o professor de Saúde Pública da Universidade Autónoma de Madrid Fernando Rodrígues-Artalejo. Em concreto, há o facto de nem todos os infetados estarem a entrar para as contas, por não terem sido testados. E, acrescenta outro catedrático de Saúde Pública, Ildefonso Hernández, numa situação de escassez de testes “tem mais sentido usá-los num médico de Cuidados Intensivos para ver se ele pode continuar a trabalhar com os pacientes do que para tirar as dúvidas sobre um falecido”.
É por isso mesmo que, até nos casos de infetados por Covid-19, é difícil ter certezas quanto a números. E, para complicar o cenário, nos casos em que um doente infetado com Covid-19 tem já outras patologias (como doença respiratória, cancro ou problemas cardíacos), torna-se muito mais difícil determinar se aquilo que provocou a morte foi este novo coronavírus ou uma das patologias de que já sofria.
Isso deverá ter impactos na taxa de mortalidade não apenas agora, mas nos meses após a pandemia, como explicou no El País o professor de Estatística Miguel Ángel Martínez. “Possivelmente, ao excesso de mortalidade a que assistimos nestes dias seguir-se-á uma descida da mortalidade nas próximas semanas ou meses, quando a mortalidade por Covid-19 se atenue ou, no melhor dos casos, desapareça”, explica. “A mortalidade deverá então ser possivelmente menor do que a de anos anteriores nessas mesmas datas”. Porquê? “Porque as mortes por Covid-19 afetam principalmente a população mais frágil em termos de saúde, que possivelmente seriam, pelo menos de forma parcial, as mortes que iriam ocorrer nas semanas ou meses seguintes.”
Quanto ao facto de a pandemia estar a fazer aumentar ou diminuir o número de mortes por outras razões, não há consenso entre especialistas espanhóis e italianos. Miguel Ángel Martínez aponta para uma descida, “não só porque aqueles que poderiam estar a morrer com outras doenças estão a morrer com esta”, mas também porque “a conjuntura atual estará provavelmente a reduzir a mortalidade por outras causas como os acidentes de carro ou acidentes de trabalho”.
Já o médico italiano Vittorio Ramela aponta noutro sentido: “As pessoas continuam a ficar doentes como antes. E, assim que ficam mais tempo em casa, poderemos vir a assistir a um aumento de acidentes domésticos que muitas vezes são subestimados”, afirmou ao Il Sole 24 Ore, dando como exemplo uma queda de um escadote para mudar uma lâmpada.
Os dois fenómenos têm nome e são aquilo que a diretora do Instituto de Saúde Carlos III (em Espanha), Raquel Yotti, classifica como “mortalidade adiantada” e “mortalidade indireta”. A primeira é o caso de um doente com outra patologia que contrai Covid-19 e morre: “Alguém com uma doença de base importante e uma esperança de vida curta que, ao infetar-se, fica clinicamente descompensado. O resultado é que se adianta uma morte que ia ocorrer em breve”.
Mas o contrário também acontece, segundo confirma a especialista, que define o fenómeno como mortalidade indireta. “É algo que ocorre em situações de epidemias ou catástrofe, quando a estrutura sanitária e social é alterada de forma abrupta. As pessoas adiam o momento de ir ao hospital, para evitar saturá-los ou por terem medo do contágio”, explica. “Existem grupos vulneráveis, como os mais idosos que vivem sozinhos e que, nestes dias, ficam sem rede familiar ou social, que normalmente deteta e alerta quando lhes acontece algo. A desestruturação de todos os sistemas de apoio tem feito aumentar a mortalidade a todos os níveis.”