O Tribunal de Justiça da União Europeia considerou, num parecer proferido no final de abril, que o Novo Banco não pode recusar responsabilidades num caso de uma cliente espanhola, idosa, a quem em 2008 foram vendidas ações de um banco islandês que faliu pouco depois. O caso corre nos tribunais espanhóis há mais de seis anos – sempre com decisões desfavoráveis ao Novo Banco. Agora, com a opinião do mais poderoso tribunal da Europa, torna-se mais provável que o Novo Banco acabe mesmo por ter de indemnizar esta e, potencialmente, outros clientes. E, nos termos do acordo de venda à Lone Star, é o Fundo de Resolução que terá de compensar o banco por esse custo de vários milhões.
Da queixosa apenas se conhecem as iniciais – V de um primeiro nome, R de um apelido. É por “VR, pessoa física” que a espanhola é referida no acórdão do Tribunal Europeu de Justiça. Não sabemos se a cliente ainda é viva. Se for, terá hoje mais de 80 anos e tinha 68 quando, em 2008, entrou no seu balcão do BES Espanha, em Bilbau, e saiu de lá dona de uma pequena fortuna em ações de um banco islandês, cerca de 166 mil euros delas.
Esse banco chamava-se Kaupthing Bank e, poucos meses depois de VR comprar as ações, foi à falência. Foi um dos vários bancos islandeses que implodiram na crise financeira de 2008 e cujos responsáveis foram rapidamente punidos pela justiça – poucos anos mais tarde vários receberam pena de prisão efetiva pelas irregularidades graves que cometeram.
VR esteve longe de ser a única espanhola a perder dinheiro com títulos de bancos islandeses – em 2009 houve em Madrid grandes manifestações de “afectados”, clientes de vários bancos, que perderam as suas poupanças no Kaupthing e noutros. Mas foi só vários anos mais tarde – em fevereiro de 2015 – que VR interpôs uma ação em tribunal contra o seu banco, alegando que não tinha literacia financeira e perfil de risco adequados àquele tipo de investimento nem tinha sido informada sobre os riscos associados. Queria não só tentar anular aquele contrato de venda de ações mas, também, pedir uma indemnização.
O problema é que o seu banco, em 2015, já não era o BES (Espanha), porque o BES tinha colapsado no verão de 2014. O seu banco, agora, chamava-se NB España e quando foi chamado a tribunal respondeu que não era consigo: o Novo Banco (España) não podia ser demandado daquela forma porque não tinha legitimidade passiva naquele caso, ou seja, a cliente devia dirigir-se ao BES (mau), a massa falida, para tentar ser ressarcida.
Na base desta alegação do Novo Banco estava uma importante decisão que o Banco de Portugal tomou quando, no fatídico primeiro fim de semana de agosto de 2014, aplicou a medida de resolução ao BES e criou o Novo Banco. Na deliberação acautelava-se que, embora boa parte dos ativos e passivos do BES transitavam para o Novo Banco, “quaisquer” riscos jurídicos permaneciam no BES.
Concretamente, a formulação do Banco de Portugal, relativa aos riscos judiciais do BES, era a seguinte: para o Novo Banco não seguiam “quaisquer responsabilidades ou contingências, nomeadamente as decorrentes de fraude ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais”.
A forma como este ponto estava escrito deixou algum espaço para interpretações diferentes. Na altura, houve quem alegasse que a formulação do Banco de Portugal apenas protegia o Novo Banco de riscos jurídicos relacionados com as irregularidades que terão sido cometidas por Ricardo Salgado e outros responsáveis, como a venda de dívida das empresas do Grupo Espírito Santo aos balcões do banco.
No caso de VR, por exemplo, não era esse o caso. O que a idosa comprou foi ações de um banco islandês – e tudo se passou vários anos antes das polémicas vendas de títulos do GES como papel comercial da ESI ou da Rioforte, empresas do grupo liderado por Ricardo Salgado.
Se o problema, aqui, não estava relacionado com as alegadas “fraudes” e “violações de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais” como as que terão levado à queda do BES, por que razão é que o Novo Banco não podia ser responsabilizado num processo totalmente paralelo que se passou num balcão e que não estava relacionado com os problemas (posteriores) na área não-financeira do Grupo Espírito Santo?
A “clarificação” do BdP que, para o tribunal, foi uma “alteração retroativa”
É neste contexto de alguma confusão que, um ano e meio depois da resolução do BES, surgiu da parte do Banco de Portugal o que o regulador chamou de “clarificação”.
No final de dezembro de 2015, o supervisor anunciou a (também ela polémica) retransmissão – dois mil milhões de euros em responsabilidades que tinham sido passadas para o Novo Banco mas que, agora voltavam para o BES. Nessa altura, que marcou a definição (aí, sim) final e imutável do perímetro de ativos e passivos que pertenciam ao BES e ao Novo Banco, o Banco de Portugal aproveitou para “clarificar” esse ponto que vinha criando controvérsia.
A passagem da deliberação sobre este ponto passava a ter outra redação, porque dizia: «[e]m particular, desde já [se clarifica] não terem sido transferidos do BES para o Novo Banco os seguintes passivos do BES: […] iii) Todas as indemnizações relacionadas com o incumprimento de contratos (compra e venda de ativos imobiliários e outros), assinados e celebrados antes das 20h00 do dia 3 de agosto de 2014; […] vi) Todas as indemnizações e créditos resultantes de anulação de operações realizadas pelo BES enquanto prestador de serviços financeiros e de investimento; e vii) Qualquer responsabilidade que seja objeto de qualquer dos processos descritos no anexo I».
Por outras palavras, agora sim o Banco de Portugal dizia, com maior clareza, que o Novo Banco não podia ser chamado a responder pelo que tinha acontecido em casos como os de VR, que envolviam o BES (neste caso, o BES España). O problema é que a ação em tribunal, colocada pela cliente espanhola, tinha sido aberta em fevereiro de 2015, ou seja, antes disto que o Banco de Portugal chamou de “clarificação”.
Nesse tribunal de primeira instância, o Juzgado de Primera Instancia de Vitoria, o Novo Banco perdeu, com o tribunal a considerar que houve um “vício de consentimento” no momento da venda das ações do banco islandês. Estávamos em outubro de 2015 – o tribunal relevou o facto de VR ter, na altura, 68 anos de idade e considerou que a cliente não tinha conhecimentos financeiros para ter noção do risco em que estava a incorrer ao comprar aquelas ações.
A decisão não foi surpreendente, comenta um advogado especializado em questões financeiras com experiência em Espanha, porque, “independentemente da bondade da decisão, é bem conhecido que há algum ativismo dos tribunais espanhóis que, em casos como este, tendem a ser particularmente protetores dos clientes bancários, em desfavor dos bancos”.
Mesmo assim, o Novo Banco recorreu para Audiência Provincial de Álava, em Espanha, e terá sido no decurso dessas audições, já em 2016, que o Novo Banco aludiu à “clarificação” que entretanto tinha sido feita em Portugal, por parte do supervisor bancário português, em dezembro de 2015.
A equipa jurídica do Novo Banco alegou que essa “clarificação” feita pelo Banco de Portugal não deixava dúvidas de que a cliente não podia demandar o banco mas, sim, se entendesse, o BES – onde teria, obviamente, muito poucas hipóteses de algum dia vir a ser reembolsada. As responsabilidades jurídicas inerentes àquele problema eram do BES, por decisão do Banco de Portugal, que é um supervisor da União Europeia e, por isso, as suas deliberações devem ser aceites em todo o Espaço Europeu, “sem mais formalidade”, alegava o Novo Banco.
Mas nada feito, nem mesmo tendo o Fundo de Resolução e o Banco de Portugal sido chamados (pelo Novo Banco) a participar nesta batalha jurídica. Também em Álava o Novo Banco não conseguiu derrubar o caso e, daí, seguiu-se para o Supremo Tribunal espanhol – onde o banco português também não veria os seus argumentos acolhidos.
Basicamente, os juízes em Espanha consideram que as decisões de 29 de dezembro de 2015 não foram apenas uma clarificação da decisão de agosto de 2014, mas, sim, foram uma alteração do perímetro de responsabilidades, com efeitos retroativos. Foi, então, aí, que foi remetida uma questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia:
“O órgão jurisdicional de reenvio [Supremo espanhol] não tem dúvidas quanto à possibilidade de uma medida de saneamento adotada pela autoridade pública competente do Estado‑Membro de origem poder ter efeitos retroativos, o que o Tribunal de Justiça já reconheceu no Acórdão de 24 de outubro de 2013, LBI (C‑85/12, EU:C:2013:697), nem põe em causa a possibilidade de os passivos transferidos para o Novo Banco serem posteriormente retransmitidos para o BES. Em contrapartida, questiona‑se se as alterações, materiais, operadas pela adoção das decisões de 29 de dezembro de 2015, devem ser reconhecidas nos processos judiciais pendentes, intentados antes da sua adoção.”
Esta é uma passagem do acórdão do Tribunal de Justiça (da UE) que foi tornado público há poucos dias, a 29 de abril, e que produz uma decisão desfavorável ao Novo Banco: “O reconhecimento incondicional de uma medida de saneamento retroativa de uma instituição de crédito é contrário ao direito da União se implicar que o cliente já não possa prosseguir um processo judicial quanto ao mérito instaurado contra o banco de transição para o qual o passivo em causa tinha sido transmitido anteriormente”, respondeu o tribunal mais poderoso em toda a UE.
Em termos mais simples, o tribunal europeu considerou que o Novo Banco não pode ser escusado de responder neste caso. Não há uma decisão definitiva sobre se VR tem ou não direito a ser reembolsada – essa é matéria para os tribunais espanhóis continuarem a avaliar – mas a decisão do Tribunal de Justiça da UE faz com, pelo menos nesse caso, a análise do caso possa prosseguir, com o Novo Banco na posição de demandado.
Perdas de milhões para o Novo Banco? Fundo de Resolução terá de reembolsar
O Observador tentou obter, junto de fonte oficial do Novo Banco, uma reação a esta resposta do tribunal europeu, além de mais informação sobre quantos casos semelhantes existem em Espanha (ou noutros países) em que daqui poderá surgir eventual jurisprudência. O banco não quis fazer comentários oficiais sobre o caso.
Existe, porém, uma pista que pode ajudar a compreender melhor o possível impacto destes processos: essa pista está na recente auditoria divulgada pelo Tribunal de Contas ao Novo Banco. No seu ponto 259º, o Tribunal de Contas diz ter perguntado ao Novo Banco “se já tinha quantificado ou estimado efeitos negativos de decisões judiciais sobre a resolução do BES expressos em responsabilidades ou contingências” – e o Tribunal de Contas perguntou isto por uma simples razão: porque, nos termos da venda ao Lone Star, será o Fundo de Resolução a reembolsar o Novo Banco por esses custos.
O Tribunal de Contas indica que “para este mecanismo compensatório poder ser acionado é necessário que o NB tenha sido condenado por decisão judicial transitada em julgado e que essa decisão não respeite a medida de resolução e o perímetro de ativos e passivos daí decorrente” e, “até à presente data, a Nani Holdings (contraparte do FdR no contrato de compra e venda) já dirigiu ao FdR 12 reclamações ao abrigo deste mecanismo, no valor de 12 milhões de euros, relativamente a decisões judiciais de tribunais portugueses e espanhóis que, não respeitando a medida de resolução, condenaram o NB e a sua sucursal em Espanha por responsabilidades do BES que não transitaram para o NB nos termos da medida de resolução”.
O Observador sabe que o conflito com VR, do qual o Novo Banco continuará a interpor recurso, não é um destes 12 processos porque, neste caso, ainda não houve uma condenação definitiva. A maioria destes 12 processos pelos quais o Novo Banco já pediu ressarcimento ao Fundo de Resolução são de casos em Espanha, mas há também cerca de um milhão de euros que diz respeito a clientes portugueses, segundo a informação obtida pelo Observador.
Porém, pode ler-se na auditoria do Tribunal de Contas, que “até à presente data não foi efetuado qualquer pagamento ao NB por parte do FdR ao abrigo deste mecanismo”. “Daqui decorre que apenas quando existe uma decisão final transitada em julgado é possível determinar se essa decisão em concreto e o dano daí decorrente está coberto por este mecanismo compensatório”, pelo que “não é possível ao NB quantificar ou estimar os possíveis efeitos negativos de decisões judiciais sobre a resolução do BES que o FdR deva compensar”.
Doutra perspetiva, a de eventuais litígios com clientes portugueses, ao que o Observador apurou, dentro do Novo Banco não se antecipa um impacto desta decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, no que diz respeito a litígios com clientes portugueses. Ainda mais porque os chamados “lesados do BES” chegaram a acordo, na sua vasta maioria, para serem parcialmente ressarcidos (no acordo feito pelo governo de António Costa, que colocou os contribuintes a pagar a solução para esse problema) – e desistiram dos processos.