Durante meses, foi “um dos segredos mais mal guardados em Washington”, como lhe chama o The New York Times, num artigo publicado esta quinta-feira em que explica toda a história por detrás do polémico relatório sobre Donald Trump. A investigação remonta a setembro de 2015, quando um grupo de membros influentes do Partido Republicano financiou uma investigação sobre os pontos fracos de Donald Trump e sobre as suas relações com a Rússia. Alguns meses depois, a investigação passou para as mãos de Christopher Steele, um antigo agente dos serviços secretos britânicos, que entretanto se encontra desaparecido.
Com a nomeação de Trump como candidato republicano, a investigação passou a ser financiada por um conjunto de membros do Partido Democrata. Durante as suas investigações, Steele terá descoberto duas operações diferentes organizadas pelo regime de Moscovo: uma para tentar ganhar influência sobre Trump, que envolvia a recolha de imagens e informações comprometedoras que pudessem ser usadas no futuro; e outra que envolveu contactos entre a equipa de Donald Trump e o Kremlin, relativamente à obtenção de emails pirateados dos servidores do Partido Democrata, parte de uma campanha russa para influenciar o resultado das eleições norte-americanas contra Hillary Clinton.
Na conferência de imprensa que deu esta quarta-feira, Donald Trump, que sempre recusou a ideia de que a Rússia teria interferido nas eleições norte-americanas, criticou a divulgação do relatório, dizendo que se trata de “notícias falsas”. Mas a verdade é que um sumário do relatório de Steele, que já circulava nos corredores de Washington (entre jornalistas e políticos), foi incluído como apêndice ao relatório das agências de informações norte-americanas sobre a interferência russa no ato eleitoral (e que levou à expulsão de 35 diplomatas russos dos EUA). Além disso, o sumário foi apresentado na semana passada ao presidente Obama, ao presidente-eleito Trump e a um conjunto de líderes do Congresso e do Senado. Foi, aliás, a notícia desse encontro, avançada pela CNN, que levou à divulgação integral do relatório, pelo BuzzFeed, na terça-feira.
Em entrevista — por escrito — ao Observador, o investigador norte-americano Peter Rutland, especialista em relações EUA-Rússia e colaborador frequente de jornais como o The New York Times, explica que há que olhar com cautela para toda esta história. “Há certamente algumas notícias falsas no documento”, sublinha, ao mesmo tempo que acrescenta que “por outro lado há alguns factos noticiosos graves. Há uma base factual para acreditar que os russos estavam a ajudar Trump, e isso merece investigação”. O próprio momento da divulgação não foi por acaso, já que se o documento não fosse divulgado antes de Trump tomar posse, “ele iria queimá-lo”.
As informações alegadamente obtidas no relatório remontam aos tempos em que Trump ia frequentemente a Moscovo, nomeadamente para participar nos concursos da Miss Universo, pelo menos há 5 anos. É plausível que a Rússia, nessa altura, já estivesse a reunir informações sobre Trump?
O relatório sugere que o Kremlin estava interessado em descobrir informação sobre oligarcas russos a viver em Nova Iorque. Por isso, Trump podia ser um ponto de entrada útil no mundo dos bilionários. Nessa altura, presumivelmente, eles não o viam como uma figura política, mas como alguém com interesses sociais e empresariais que poderiam dar origem a informações úteis.
Podemos acreditar que a Rússia tem informações comprometedoras sobre Trump? A verdade é que James Clapper [diretor dos serviços de informações dos EUA] considerou o relatório suficientemente importante para o apresentar aos líderes norte-americanos.
É importante perceber que, ao mais alto nível, o sistema político russo depende muito profundamente da recolha de material comprometedor — kompromat — relativo a figuras de liderança política, tanto aliados como adversários. Podem ser, tanto informações financeiras, como indícios de corrupção, como atividades sexuais. Esse tipo de informação pode ser divulgado através dos meios de comunicação se e quando necessário. Gravações de teor sexual foram utilizadas para desacreditar o procurador-geral russo Yuri Skuratov, em 1999, e novamente contra o líder da oposição Mikhail Kasyanov no ano passado. Por isso, tendo em conta este uso doméstico de kompromat, é perfeitamente possível que eles usem técnicas semelhantes com figuras estrangeiras que tenham um interesse político, e que visitem a Rússia.
Estas informações refletem de alguma forma os métodos da Rússia de interferir em eleições estrangeiras?
Recordo que a Ucrânia era o foco principal de preocupação da Rússia, que estava profundamente interessada nas eleições ucranianas em 2003 e 2010. Nessa altura, a Rússia ofereceu descontos nas entregas de gás natural, empréstimos suaves, etc., em apoio do seu candidato preferido, Viktor Yanukovich. Relativamente à interferência eleitoral durante a Guerra Fria, destaco o trabalho de Dov Levin, que descobriu que os EUA intervieram em 81 eleições em 45 países entre 1945 e 2000, enquanto a União Soviética interveio em 36.
O relatório inclui uma série de informações diferentes, sobre, pelo menos, dois esquemas diferentes russos. Que conclusões podemos tirar delas?
Neste momento, não temos informação de que qualquer informação naquele relatório seja verdade. Por isso, é tudo especulação. Não há material que corrobore a informação, não há vídeos ou conversas telefónicas divulgadas. Por outro lado, as coisas podem ser ainda piores do que o relatório sugere. O documento não fala de nenhum negócio de Trump com capitais russos, o que não quer dizer que não existam.
O documento diz que Moscovo estaria a construir uma relação próxima com Trump há já algum tempo, sublinhando a alegada cooperação entre a equipa de Trump e o Kremlin. Mas, ao mesmo tempo, também diz que Moscovo teria informações comprometedoras sobre ele, como vídeos das suas festas sexuais. Como devemos, à luz disto, olhar para a relação entre Trump e a Rússia?
Penso que Trump é um loose cannon [canhão solto, expressão para descrever alguém com atitudes imprevisíveis] tanto para os eleitores norte-americanos como para o Partido Republicano e para o Kremlin. Cada um destes atores políticos tem a sua própria relação com Donald Trump — oferecem-lhe apoio e esperam alguma coisa em troca. Mas Trump é tão errático e imprevisível que ninguém pode ter a certeza do que esperar. Os russos estão na mesma posição — estão a tentar desenvolver uma espécie de relação mútua com ele, mas é difícil saber se eles serão capazes de transformar isso em alguma relação estável. Trump não é agente nem cliente deles.
Sabemos agora que o relatório foi elaborado pelo diretor da Orbis Business Intelligence, Christopher Steele, um ex-espião do MI6, parecendo que o Partido Democrata pagou pela investigação. Que credibilidade merece uma investigação de uma empresa privada paga por um partido e baseada em fontes anónimas?
Merece alguma atenção, mas não é tão confiável como um artigo num jornal de qualidade, verificado com mais que uma fonte, por exemplo.
Como é possível que um documento como este circule entre os círculos mais altos do governo norte-americano sem nunca ser divulgado?
Sim, aparentemente havia um pequeno conjunto de pessoas em Washington que sabia que o relatório andava por aí. Mas importa relembrar que foi preparado por uma empresa privada para o Partido Democrata, pelo que não era um documento classificado, contendo segredos de estado.
Como é que o relatório terá chegado aos altos cargos políticos dos EUA?
Penso que os Democratas o andaram a divulgar.
O que podemos concluir do momento da divulgação do relatório?
Presumivelmente, Obama e os seus chefes de informações queriam que o documento fosse divulgado antes de ele deixar o cargo, porque assim que Trump tomar posse, iria queimá-lo e seriam os comités do Congresso (controlado pelos Republicanos) a tentar obter informação sobre o que aconteceu.
A imprensa, neste caso o BuzzFeed, deve divulgar um documento que não é confirmado de forma independente?
O BuzzFeed não fingiu que a informação era de confiança, eles apenas publicaram um relatório que estava a circular, por isso não vejo nada de errado nisso. Ao contrário do material do WikiLeaks, que foi roubado dos computadores do DNC sem a sua permissão. Mas os jornais, as estações de televisão, Trump e outros ficaram muito contentes por discutir a informação roubada.
Trump diz que o relatório não passa de um conjunto de notícias falsas. Como olha para esta reação?
Durante anos, Donald Trump apoiou o movimento birther, que argumenta que o presidente Obama não nasceu no Havai. Por isso, ele é a última pessoa que se pode queixar de “notícias falsas” a circular sobre ele. Há, certamente, algumas notícias falsas no documento. Os relatórios de informadores anónimos, não confirmados, divulgados num relatório de um agente de informações anónimo não vão ao encontro dos padrões jornalísticos tradicionais, motivo pelo qual quase todos os media mainstream não estão a publicar o relatório ou até mesmo os alegados detalhes presentes no relatório. Por outro lado, há alguns assuntos noticiosos graves. Há uma base factual para acreditar que os russos estavam a ajudar Trump, e isso merece investigação.
Que impacto vai ter este caso na presidência de Trump?
Bom, já está a causar problemas e embaraço a Trump. O principal e mais imediato impacto é que irá complicar ainda mais a relação, já bastante má, que ele tinha com os profissionais dos serviços de informações do governo americano.