Os países da NATO vão estar reunidos esta quarta e quinta-feira (11 e 12 de julho), em Bruxelas, numa altura em que a aliança militar, que junta grande parte da União Europeia e a América do Norte, apresenta sinais de desgaste.
Do lado de Washington D.C., de onde Donald Trump parte para a sua segunda cimeira da NATO, o desagrado perante a disparidade de investimento em defesa entre os membros da aliança é cada vez mais palpável — sobretudo à medida que o Presidente dos EUA vai deixando no ar a possibilidade de não respeitar o princípio da defesa mútua em caso de ataque. Da parte dos países europeus, há o receio de uma aproximação de Donald Trump à Rússia de Vladimir Putin — sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento da Crimeia como território russo — colocar em causa o espírito da organização. Também o conflito na Síria, onde vários países combatem as guerras que não querem ter em casa, deverá estar na mesa, perante o perigo de uma escalada da Turquia (o segundo maior exército da NATO) poder arranhar os EUA (o maior exército da NATO).
Conheça, nos seguintes três pontos, as principais questões a ter em conta nesta cimeira — e perceba, afinal, por que o ambiente em Bruxelas estará longe de ser agradável.
Trump quer deixar de ser “otário”: ou há 2% ou deixa de haver Artigo 5º
Apesar de esta ser apenas a segunda cimeira da NATO com Donald Trump a representar os EUA, a postura do Presidente norte-americano e as questões em que vai insistir à mesa de negociações, em Bruxelas, não serão uma surpresa para ninguém.
Em campanha, no Twitter, nos vários périplos que faz pelo país já na qualidade de Presidente ou em cartas enviadas para diferentes líderes mundiais, Donald Trump tem sido claro quanto à sua principal prioridade para a NATO: que os EUA deixem de ser dos poucos “otários” (em inglês, Donald Trump diz schmucks) que dedicam mais de 2% do seu PIB na defesa.
Na penúltima cimeira da NATO (2014, em Gales), numa altura em que a ofensiva russa sobre a Crimeia deixou alertas de sobra para a Europa, os então 28 países da aliança militar assinaram o compromisso de, até 2024, aumentarem o investimento em defesa. Mais concretamente, acordaram como meta destinar 2% do PIB à defesa — e, consequentemente, aplicar pelo menos 20% desse investimento em equipamento, incluindo em pesquisa e desenvolvimento.
Em 2014, apenas três países investiam mais de 2%: a Grécia (2,31%), o Reino Unido (2,17%) e os EUA (3,77%). Quatro anos depois, esse número subiu para seis — com a Estónia e a Letónia a ultrapassarem a meta e a Roménia, a Lituânia e a Polónia a poucas décimas de o fazerem. No plano das intenções, há outros seis Estados que já deram sinais de quererem ir além dos 2% até 2024: França, Bulgária, Hungria, Eslováquia, Turquia e Montenegro, que se juntou à NATO em 2017.
Nesta lista, há uma ausência de peso: a Alemanha. Este ano, segundo os números da NATO, Berlim aplica 1,24% do seu PIB na defesa. E, entretanto, fez saber que até 2025 — um ano depois da data limite acordada em 2014 — também não vai cumprir a meta, ficando-se pelos 1,5%.
Apesar destes números, importa realçar que, desde 2011, o investimento em defesa tem subido de forma consistente, quando se olha para os valores nominais e não apenas para a percentagem do PIB investida — já que esta varia consoante a evolução da economia de cada país. Há sete anos, o investimento total era de 34 mil milhões de dólares e em 2018 as estimativas apontam para 39 mil milhões — um aumento de 14,7%. Ainda assim, parece ser um fraco consolo para Donald Trump.
Tudo isto deixa adivinhar que, à semelhança do que já tinha acontecido na cimeira do G7, no passado mês de junho, o diferendo que mais vai marcar esta cimeira deverá ser entre Angela Merkel e Donald Trump. Os recados do Presidente dos EUA à chanceler germânica têm sido constantes — e, há dias, num comício, partilhou com o público aquilo que terá sido uma conversa entre os dois.
“Sabe, Angela, eu não posso garantir nada”, terá dito Donald Trump à líder alemã. “Nós estamos a proteger-vos e isso significa muito mais para vocês do que para nós, porque nós não sabemos ao certo até que ponto é que a vossa proteção nos protege.”
Trump: " So Europe wants [us] to protect against Russia but they pay billions to Russia and we're the schmucks paying for the whole thing." pic.twitter.com/H6sp2cBpv1
— Josh Marshall (@joshtpm) July 5, 2018
No contexto da NATO, dizer-se “não posso garantir nada” pode ser o mesmo que pôr em causa o princípio de defesa mútua, inscrito no Artigo 5º, no qual assenta esta aliança militar, fundada em 1949. Naquela parte do tratado, lê-se que “um ataque armado contra uma ou várias” das nações na NATO “será considerado um ataque a todas”, havendo assim, nessa ocasião, o compromisso de dar “assistência” a quem for atacado.
Mesmo que Donald Trump tenha, noutras ocasiões, afirmado o seu compromisso com o Artigo 5º — afirmações que intercala com outras, onde diz que a NATO é um sistema “obsoleto” —, Angela Merkel já apontou várias vezes que a Europa já não pode contar com os EUA para a sua proteção. “Já não podemos esperar que os EUA simplesmente nos protejam, a Europa tem de agarrar o seu destino com as próprias mãos”, disse a chanceler alemã em maio, repetindo uma ideia que tem sublinhado amiúde.
Esta terça-feira, num encontro que antecede a cimeira da NATO, o secretário-geral Jens Stoltenberg, encontrou-se com Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, e com o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk. No final, assinaram um compromisso onde ficou a promessa de fortalecer a cooperação entre os dois organismos. Além disso, Jens Stoltenberg deixou um recado que, sem levar o nome de Donald Trump, era dirigido a ele: “Temos de garantir o máximo de envolvimento dos nossos aliados fora da UE na nossa cooperação e para evitar criar novas barreiras”.
É neste contexto que a Europa, com o empurrão da Alemanha e de França, avança para concretizar a Cooperação Estruturada Permanente (PESCO, na sigla inglesa), um instrumento que permite a 25 dos 28 países da UE formarem uma estrutura comum de defesa e segurança. Embora esta possibilidade tenha sido avançada já pelo Tratado de Lisboa (2009), só em 2017 é que a ideia começou a ganhar tração — e, já em junho de 2018, contou com as assinaturas de todos os países da UE, menos três: Dinamarca, Malta e o Reino Unido, que prevê sair em março de 2019.
Ironicamente, esta ferramenta europeia pode levar à emancipação militar dos países da UE (entre os quais 22 fazem parte da NATO) que Donald Trump tanto advoga, bastando para isso que dela resulte um maior investimento na defesa.
“A PESCO ainda está numa fase inicial, mas se tiver sucesso funcionará como um guarda-chuva sob o qual os países europeus podem trabalhar para atingir as metas da NATO e conseguir uma estratégia europeia autónoma. Os EUA devem acolher de forma positiva esta novidade, porque vai permitir aos europeus construir e movimentar forças de forma mais rápida para os acordos de defesa coletiva da NATO”, escreveu Sven Biscop, investigador do European Security and Defence College, na Foreign Affairs.
É, no entanto, ainda cedo para perceber até que ponto é que a PESCO pode chegar — e é, para já, certo que, a médio-prazo, estará longe do poderio da NATO, sobretudo numa altura em que os 28 países da UE demonstram sinais de pouca união.
Rússia: da Crimeia ao gás natural, o que fazer com Moscovo?
Não há NATO sem Rússia e, por isso, Moscovo será sempre um tema da cimeira desta quarta e quinta-feira. Na antecipação da reunião em Bruxelas, Jens Stoltenberg sublinhou precisamente a ideia de que a Rússia não vai a lado nenhum — e que, por isso, é preciso pensar a relação dos países da aliança do Atlântico Norte com Moscovo.
“Espero que os Estados-membros reiterem a mensagem forte da NATO para a Rússia, que faz parte de uma abordagem por duas vias, que junta a dissuasão e a defesa com o diálogo político”, sublinhou em junho. “Temos de encontrar uma maneira de ter uma mensagem forte e firme e de sermos muito claros quando eles violarem a lei internacional, as regras internacionais, quando são responsáveis por ataques cibernéticos ou quando vemos o uso de um agente nervo-tóxico, como em Salisbury no contexto de um comportamento ousado da Rússia.”
Em 2014, a anexação da Crimeia por parte da Rússia fez soar as sirenes na NATO. Por isso, na cimeira que aconteceu nesse ano, em Gales, decidiu-se não só o aumento do investimento em defesa por parte de todos os países da aliança, como também ficou estabelecido o destacamento de 5 mil soldados para os países mais a Leste: Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia e Bulgária.
A missão aqui é dissuadir a Rússia de avançar para lá dos sítios onde já está. Porém, em nada conseguiu fazer Moscovo recuar das zonas onde já se situava, com destaque para o Leste da Ucrânia, seja pelo destacamento de tropas ou pelo apoio a milícias pró-russas.
Também nesta questão, a cisão entre a União Europeia e os EUA deverá marcar a cimeira. Isto porque, quatro dias depois de se encontrar em Bruxelas com os parceiro da NATO, Donald Trump viaja até Helsínquia para a sua primeira cimeira bilateral com a Rússia.
A questão da Crimeia, que está na base dos compromissos que marcam o statu quo da NATO, está longe de ser um ponto assente para Donald Trump. Embora a administração dos EUA seja clara no não-reconhecimento da Crimeia como parte da Rússia (algo que só os países da esfera de influência de Moscovo fazem, desde a anexação e referendo de 2014), o Presidente norte-americano tem deixado margem para dúvidas. Dias antes desta cimeira, perguntavam-lhe se ia reconhecer a Crimeia como parte da Rússia e a resposta foi um lacónico “veremos”. Mas já durante a campanha eleitoral, em 2016, Trump dizia: “Pelo que tenho ouvido, o povo da Crimeia prefere estar na Rússia do que onde estava antes”.
Uma aproximação dos EUA à Rússia e uma consequente aceitação da situação na Crimeia representaria uma abalo ao que tem sido, até agora, a postura de condenação da ação de Moscovo naquela região. Em abril, Jens Stoltenberg referia-se à Ucrânia como um país “parceiro” da NATO e também como sendo “vítima de agressão russa”.
No entanto, a complexa relação dos países da aliança com a Rússia não deve ser encarada como uma linha reta — e a prova disso mesmo é que um dos temas que dizem respeito às relações com Moscovo é a possibilidade de ativação do Nord Stream 2 — um gasoduto complementar ao Nord Stream original, que duplicaria a atual transferência de 55 mil milhões de metros cúbicos de gás natural entre a Rússia e a Alemanha. A entrada em funcionamento do Nord Stream 2 está prevista para o final de 2019 ou início de 2020 — mas os EUA e a própria União Europeia têm feito pressão para que a Alemanha recue neste plano.
De acordo com o Wall Street Journal, Donald Trump exigiu a Angela Merkel, em maio, quando começaram a desenhar-se os contornos de uma guerra comercial, que não avançasse para o Nord Stream 2. E, no discurso em que lamentou que os EUA sejam “otários”, por pagarem mais do que qualquer outro país da NATO, também tocou nesse ponto. “Eles fazem um acordo de gás com a Rússia onde lhes pagam milhares e milhares de milhões de dólares. E depois querem que os protejamos contra a Rússia. Mas depois pagam-lhes milhares de milhões de dólares e nós é que somos os otários que pagam aquela coisa toda”, disse.
Mas já em abril, Angela Merkel demonstrou em público algumas reticências em relação ao Nord Stream 2, dizendo que além de ser um tema energético é também “político”. Isto porque, ao ter acesso a gás natural pelo Nord Stream 2, a Alemanha (e também a Europa) deixa de depender tanto dos gasodutos russos que passam pela Ucrânia — uma alteração do statu quo energético que pode levar a Ucrânia a perder pelo menos 2 mil milhões de dólares por ano.
“Quero que fique bem claro que o projeto do Nord Stream 2 não é possível sem que haja clareza quanto ao papel da Ucrânia no futuro do trânsito [de gás natural]”, disse Angela Merkel numa conferência de imprensa conjunta com o Presidente ucraniano, Petro Poroshenko. “Portanto, como podem ver, este não é apenas um tema económico, porque também há considerações políticas a fazer.”
Semanas depois destas palavras de Angela Merkel, porém, Vladimir Putin deixou claro, numa conferência de imprensa onde tinha a chanceler ao seu lado, que a Ucrânia pode ficar sem uma fatia considerável dos seus rendimentos obtidos pela taxas de trânsito do gás natural russo para a Europa. “Quando lançarmos o Nord Stream 2, só vamos continuar a transferir gás através da Ucrânia se for economicamente exequível e viável para as empresas que operam este projeto”, disse, deixando a questão no ar.
Síria, a pedra no sapato que ninguém consegue descalçar
A guerra da Síria tornou-se o sítio para onde todos os países canalizam os conflitos que não querem ter em casa. De forma direta, já foram sete os Estados que intervieram naquela guerra (Rússia, Irão, EUA, França, Reino Unido, Turquia, Israel), aos quais se podem ainda juntar nações como a Arábia Saudita e o Qatar, de onde parte muito do financiamento (e por vezes armamento) que mantém os vários grupos rebeldes e também terroristas em atividade.
Enquanto organismo, a NATO não tem presença na guerra da Síria — no entanto, como pode ser visto nos países elencados no parágrafo anterior, são vários os países desta aliança militar que já ali intervieram.
Numa fase inicial, EUA, França e Reino Unido combateram grupos terroristas, como o Estado Islâmico, e deram também apoio a forças rebeldes. Depois, em abril 2017, os EUA agiram de forma unilateral contra Bashar al-Assad, depois do ataque químico de Khan Shaykhun, atribuído ao regime sírio. Um ano mais tarde, em abril de 2018, depois de novo ataque químico, desta vez em Douma, os EUA voltaram a intervir contra o presidente sírio — contando desta vez com o apoio do Reino Unido e da França.
Na Síria, está também a Turquia, que assumiu um papel direto naquela guerra em agosto de 2016 — até essa altura estava por trás do financiamento e treino de grupos rebeldes — e que, em janeiro de 2018, deu início à “Ofensiva de Afrin”, entrando pelo noroeste do país em força.
Ali, o principal objetivo da Turquia é travar o avanço das milícias curdas que combatem Bashar al-Assad e que Recep Tayyip Erdoğan quer fora das suas fronteiras. O que aqui falta de surpreendente — o processo de paz entre turcos e curdos há muito que é um projeto falhado — sobra de preocupante. Isto porque o Presidente da Turquia já garantiu que, depois de Afrin, o objetivo é avançar para Este, para lá do rio Eufrates, onde se situam as tropas do YPG, força curda apoiada militar e tecnicamente pelos EUA, que também têm por lá 2 mil soldados.
Desta forma, existe o risco de a Turquia (que tem o segundo maior exército da NATO) agredir direta ou indiretamente os EUA (o maior exército da NATO) na Síria. Para já, esse cenário tem sido evitado — com os EUA a evacuarem, após acordo com a Turquia, os conselheiros militares curdos que restavam em Manbij, a próxima cidade na mira de Recep Tayyip Erdoğan. No entanto, se um dia a diplomacia falhar, o cenário pode ser negro. Evitar que esse dia chegue pode — e deve — ser uma das prioridades para a discussão entre os países da NATO na cimeira desta quarta e quinta-feira.
A guerra de todos onde ninguém ganha. Quais são os países que lutam na Síria?