Sob a luz do expositor, o rosto de Tutankamon brilha. O outro que cobre a máscara é uma lembrança da extravagância da arte funerária egípcia e da riqueza incalculável da civilização do Nilo, que, durante mais de três mil anos, dominou os destinos da região. O objeto que abre a nova exposição do Museu Gulbenkian, em Lisboa, é, naturalmente, uma réplica, mas não deixa de deslumbrar. Produzida na década de 1970, em França, a peça em porcelana é ligeiramente mais pequena do que a original que está no Museu Egípcio do Cairo, mas é muito semelhante. As características distintivas, como o rosto, os olhos e a coroa azul e dourada, que se tornou um símbolo do rei do Egito depois da descoberta do túmulo de Tutankamon em novembro de 1922, estão todas lá. Apenas a cor da barba é ligeiramente diferente.
Abrir uma exposição sobre faraós com a máscara funerária de Tutankamon parece uma escolha óbvia, mas que outro rei egípcio poderia servir como porta de entrada para o mundo do Egito Antigo e das suas estrelas? “É uma imagem muito familiar. Está impressa no nosso cérebro”, começou por explicar Frédéric Mougenot, curador de Faraós Superstars, que inaugura esta sexta-feira, 25 de novembro, na sede da Fundação Calouste Gulbenkian, e que conta com peças da Coleção do Fundador e da Biblioteca Nacional de Portugal e de outras instituições europeias, como o Louvre, o British Museum ou o Ashmolean Museum. “Podemos não identificar Tutankamon, mas [a máscara] grita Egito e os reis do Egito. É uma boa peça para introduzir a exposição, porque é sobre isso que fala — sobre estes reis e rainhas de que ouvimos falar, que conhecemos mais ou menos, que talvez já vimos, como Tutankamon e Nefertiti, mas sobre os quais sabemos pouco. Não sabemos exatamente o que fizeram e porque é que são tão famosos. É por isso que a exposição se chama Faraós Superstars, porque eles são como superstars. São como a Beyoncé, o Elvis Presley ou a Marilyn Monroe. Já ouvimos falar deles e, pelo menos, conhecemos os seus nomes.”
Tutankamon, Nefertiti e Cleópatra são nomes conhecidos do grande público, mas há centenas e centenas de outros faraós cujos nomes nada dizem a quem não estudou Egiptologia. É sobre o porquê de apenas alguns reis terem sobrevivido ao teste do tempo na memória coletiva que a exposição se concentra. O que é que uns tinham que os outros não tinham? Alguns faraós eram celebrados na Antiguidade e continuaram a sê-lo em tempos modernos, mas outros foram rapidamente esquecidos, mas recuperados posteriormente. Para o curador do museu Palais des Beaux-Arts de Lille, que guiou o Observador numa visita à mostra, essa é a grande “ironia”: “A exposição mostra a ironia da História, porque é que alguns faraós que eram muito famosos deixaram de fazer parte da nossa consciência histórica e outros, que não eram muito comemorados pelos egípcios, se tornaram superstars, como Tutankamon. Por isso é que é importante começar com ele”, destacou. “Porque ele é a maior estrela. E também porque o seu túmulo foi descoberto há 100 anos.” Uma feliz coincidência, uma vez que a exposição começou a ser preparada em 2019. As preparações foram interrompidas devido à pandemia de Covid-19. “Estamos em novembro. Foi quando descobriram os primeiros degraus [para o túmulo]. A entrada foi descoberta no final do mês. “Por isso é que é importante começar por Tutankamon”, repetiu Frédéric Mougenot. “Ele nem sempre foi uma superstar.”
Do lado esquerdo, uma tapeçaria produzida em França no século XVII aponta para uma outra direção: o Egito Antigo, tal como é recordado, é um conceito relativamente recente. Até ao século XIX, quando começou a exploração dos antigos monumentos egípcios, possibilitada pela decifração da escrita hieroglífica pelo francês Jean-François Champollion, o conhecimento que existia acerca da civilização do Nilo tinha por base a Bíblia e a historiografia grega e romana. As representações do Antigo Egito eram, por isso, muito diferentes. Os faraós e outras figuras eram caracterizados com base nos textos gregos e latinos, com trajes e acessórios semelhantes aos que eram usados pelos imperadores romanos. Era uma visão do Egito feita a partir de Roma, como acontece com a tapeçaria que preenche quase toda a parede de um dos primeiros espaços da exposição. Esta representa uma das cenas mais famosas do Antigo Testamento: o momento em que Moisés confronta o faraó egípcio e transforma o seu bastão em cobra. Em resposta, os magos egípcios transformam os seus bastões também em serpentes, mas estas são mordidas pela de Moisés. Na tapeçaria, o faraó, que usa uma coroa de louro, como a dos imperadores de Roma, parece pouco impressionado, olhando, quase com desdém, para a luta entre os animais.
“É a grande peça de boas vindas aos visitantes, porque esta personagem do rei do Egito, do inimigo de Moisés, é referida na Bíblia apenas como ‘faraó’, como se fosse o nome da personagem. A história de Moisés contra o faraó é a principal referência que o mundo antigo tinha sobre o Egito até ao século XIX. No cristianismo, no judaísmo e na cultura islâmica, quando se falava no Egito, pensava-se no faraó da Bíblia, o rei malvado que não queria libertar o povo escolhido; o rei que não reconheceu o verdadeiro deus quando enfrentou o seu poder. É muito importante lembrarmo-nos disso, porque mudámos a nossa perceção [do Antigo Egito] por causa dos faraós superstars. Esses superstars percorreram um longo caminho contra esta imagem má no mundo ocidental e no mundo islâmico, também”, apontou o curador. “O faraó da Bíblia não tem nome”, destacou João Carvalho Dias, co-curador da exposição. “Não podemos saber se era Ramsés [II] ou se era um dos grandes faraós. É apenas ‘faraó’, encapsulando todo o mal que o faraó representava para uma ordem diferente da sociedade, neste caso, a cristã.” Só recentemente é que o nome de Ramsés II foi associado ao do faraó bíblico, apesar de não existir realmente forma de provar que fosse a mesma figura. Essa correspondência tornou-se definitiva no imaginário ocidental com o filme “Os Dez Mandamentos”, que opõe o famoso faraó a Moisés.
A tapeçaria foi provavelmente produzida para o palácio de Luís XIV, com base num quadro de Nicolas Poussin, e teria um intuito educativo. “A história do faraó contra Moisés era geralmente como modelo, para dizer aos reis e monarcas que não deviam seguir [o faraó]. [Para lhes dizer que] não deviam ser tiranos, déspotas, e que deviam reconhecer a tomar conta da religião. Servia para lembrar que deviam ser como Moisés e não como o faraó.”
Sobreviver ao teste do tempo
A restante exposição segue uma ordem cronológica, apresentando objetos com ligação aos primeiros grandes faraós, como Khufu, que ficou conhecido por ter mandado construir a Grande Pirâmide de Gizé, e aos dias de hoje, mostrando como a memória dos reis do Egito nunca morreu. Isso deve-se em grande parte à campanha feita pelos próprios governantes, que procuraram fazer perdurar o seu nome no tempo. “Os egípcios tinham memória dos reis que tinham governado”, afirmou Frédéric Mougenot, destacando como exemplo uma das primeiras peças em exposição, a parte de cima de uma mesa de oferendas em pedra que tem gravado um conjunto de cartelas com nomes de diferentes reis e rainhas. “É uma lista precisa, tanto quanto sabemos, dos reis que se seguiram uns aos outros durante dois mil anos. Isso mostra que os egípcios tinham memória dos seus reis e que havia um arquivo. Tinham noção da passagem do tempo na sua civilização”, acrescentou. “Entre o reinado de Khufu, que construiu a Grande Pirâmide, e o de Cleópatra VII — a famosa Cleópatra –, passou mais tempo do que entre Cleópatra e nós. Isso dá-nos uma ideia do quanto esta civilização durou, com muitas mudanças, mas sempre com o mesmo referente. Os egípcios tinham três mil anos de história para se lembrarem e, ao longo dessa longa história, lembravam mais certos reis do que outros. A questão que colocamos é porque é que lembravam esses reis e porque é que a sua memória foi preservada.”
A perpetuação da memória era algo de extrema importância para os egípcios antigos e, ao que parece, uma preocupação tão antiga quanto a própria civilização. De maneira a perpetuar o seu legado, os faraós construíram monumentos impressionantes aos quais associavam o seu nome, alguns dos quais para lhes servirem de túmulo, como foi o caso das pirâmides. Estes monumentos marcaram a paisagem egípcia e eram uma lembrança diária dos reis que os tinham mandado construir. Khufu, que viveu no século XXVI a.C., tornou-se lendário no seu tempo, com o seu culto a perdurar nos milénios seguintes. O mesmo aconteceu com Teti, hoje menos famoso do que Khufu, que se tornou patrono da sua pirâmide. Uma das peças em exposição mostra Teti, que governou o Egito no século XXIV a.C., dentro do monumento a ser adorado por um homem e uma mulher mais de dois mil anos após a sua morte, o que indica que a pirâmide era o principal motivo pelo qual era recordado.
Outro faraó que também ficou conhecido pelo seu plano de construção, e que também está representado na mostra, é Ramsés II. Uma das peças expostas mostra o rei a adorar uma imagem de si próprio, “o que significa que organizou o culto dele próprio”. “É uma das razões pelas quais ele é tão famoso”, apontou Frédéric Mougenot. “Ele usou as riquezas do Egito para garantir que o seu nome sobreviveria. Por exemplo, ele pôs o seu nome em quase todos os monumentos que não foram feitos no seu tempo. Temos aqui uma estátua de Sekhmet, a deusa com cabeça de leoa, que sabemos que foi feita no tempo de Amenhotep III, o pai de Akhenaton. Na parte de trás da estátua, foi acrescentado o nome de Ramsés II, tornando a estátua também dele. Era algo muito recorrente entre os faraós.” Famoso no seu tempo, Ramsés, o faraó que mais anos reinou, serviu de exemplo a todos os reis que o seguiram. De tal forma que, ao contrário do que era habitual, todos os reis seguintes escolheram o nome Ramsés (geralmente o nome mudava de pai para filho), associando-se ao importante antecessor. A exposição inclui a parte de baixo de um altar em pedra, mandado construir por Ramsés II, ao qual os seus sucessores, de Ramsés II a Ramsés XI, acrescentaram o seu nome. “O seu poder pessoal estava a decair e estavam desesperadamente a tentar agarrar-se à memória do grande Ramsés II. Era uma forma de prestar homenagem ao seu grande antepassado, mas era também uma maneira de tentarem manter a fama”, explicou o especialista. Era uma forma de “manter a chama acesa” e de lembrar que, apesar dos altos e baixos, a monarquia que governava o Egito era, desde tempos imemoriais, a mesma.
Ramsés II é um dos faraós mais famosos do Império Novo, iniciado depois de um período politicamente conturbado de cerca de 100 anos (Segundo Período Intermédio). Os egiptólogos dispõem de bastante documentação sobre os fundadores desse período, o que permite perceber com maior detalhe como é que era realizado o culto dos reis e rainhas e como é que era a sua relação com os homens e mulheres comuns. Uma das peças em exposição, e uma das obras-primas da Coleção do Fundador, é uma estela que mostra o escriba Iri a prestar culto às figuras de Ahmose e Ahmose-Nefertari, que estão num altar, como deuses. Ahmose e Ahmose-Nefertari ficaram conhecidos por unificarem o Antigo Egito depois do Segundo Período Intermédio. “Eram lembrados como fundadores de uma nova era, pacífica e maravilhosa, a que os egiptólogos chamam Império Novo, que inclui os faraós mais famosos, como Nefertiti, Tutankamon e Ramsés. Centenas de anos após a sua morte, continuavam a ser venerados”, por exemplo, através de pequenas estatuetas, como a de Ahmose-Nefertari que foi emprestada pelo Museu do Louvre, e de figuras de maior dimensão. Estas eram carregadas em cima de andores em procissões, durante as quais a população podia ter um contacto mais próximo com as estátuas, rezar junto a elas e deixar perguntas escritas que queria ver respondidas. Estas eram anotadas em pequenos fragmentos de cerâmica, como as que estão expostas na Gulbenkian. Para garantir que as orações eram ouvidas, deixavam um par de orelhas em cerâmica. Assim, os deuses não tinham desculpas para não ouvirem. A popularidade do culto dos antigos reis e rainhas deve-se provavelmente ao facto de serem figuras mais próximas e mais humanas do que os deuses inacessíveis com os quais os cidadãos comuns tinham pouco contacto direto. “Tornaram-se santos do dia a dia”, apontou Frédéric Mougenot.
Se por um lado existia a preservação e culto de faraós que tinham vivido milhares de anos antes e cujas atitudes governativas tinham deixado uma marca na paisagem e na memória do país, por outro, não havia qualquer pudor em apagar da história aqueles que não tinham cumprido o seu dever, que passava por garantir a proteção dos deuses através de oferendas, por gerar riqueza e por defender o Egito de ataques externos e, por vezes, internos. São vários os faraós cujos nomes foram apagados e cujos rostos foram destruídos. Era um ato definitivo: “Os egípcios antigos acreditavam que a imagem substituía a coisa que representava. Uma estátua não era apenas um pedaço de pedra, era a pessoa ou deus que representava. Se destruíssem essa estátua ou se apagassem o nome, a pessoa desapareceria para sempre”, explicou o curador do Palais des Beaux-Arts de Lille. Em alguns casos, a história foi mais benevolente do que os próprios egípcios: faraós como Hatshepsut ou Akhenaton tornaram-se, com o tempo, mais famosos do que alguns dos seus mais ilustres antepassados. A sua perdição acabou por ser a causa da sua duradoura fama.
Esquecido, mas eternamente lembrado
Hatshepsut, que governou no século XV a.C., ficou conhecida por ter sido a primeira mulher faraó do Antigo Egito. Corregente do enteado após a morte do marido, o faraó Tutmés II, Hatshepsut decidiu afastar o futuro Tutmés III e governar sozinha, considerando que tinha autoridade para o fazer. Fê-lo de maneira exemplar durante 20 anos, até que desapareceu dos registos. Não se sabe o que lhe aconteceu, mas o mais provável é que tenha morrido. Tutmés III governou sozinho durante as décadas seguintes. Cerca de 20 anos depois, no final do seu reinado, começou a apagar a presença da madrasta dos registos oficiais. A exposição inclui uma imagem de um faraó, com o nome de Tutmés II. Contudo, olhando com mais atenção, é possível perceber que não corresponde ao nome. “Os hieróglifos que estão antes da cartela dizem ‘ela está viva’. Então, temos uma mulher, mas o nome foi alterado e esqueceram-se de mudar a expressão que diz que é uma mulher. O resto da inscrição é muito lisa. Isso mostra que riscaram o nome para o mudar, para fazer desaparecer o nome da mulher e para o substituir por um faraó.” Na opinião de Frédéric Mougenot, Hatshepsut terá sido apagada da história egípcia por ser mulher. “Alguns egiptólogos dizem que é uma visão muito machista, mas foi provavelmente porque ela era mulher e criou o primeiro exemplo. Talvez fosse perigoso para a sucessão de pai para filho. Provavelmente foi uma questão de sucessão porque, enquanto ela governou, não parecia que alguém tivesse um problema com o facto de ela ser mulher.”
Outro caso famoso é o de Akhenaton, da sua mulher Nefertiti e do seu herdeiro, Akhenaton. A exposição inclui um pequeno busto de Akhenaton, emprestado pelo British Museum, que foi deliberadamente destruído, e uma estátua do deus Amon que teria outra figura que foi retirada. Junto aos pés de Amon, é possível ver o que resta dos pés de uma outra figura, que seria um rei, porque apenas o faraó podia olhar um deus de frente. “Esta figura que estava de frente para o deus desapareceu. Queriam destruí-la. Se olharmos para a parte de trás, temos uma inscrição com duas cartelas cujos sinais foram apagados. Apenas o sol e o nome do deus Amon permaneceu. São as cartelas de Tutankamon, o que significa que queriam mesmo apagá-lo da história, o que é irónico, claro, porque ele é o faraó mais famoso”, comentou o curador. O reinado de Tutankamon ficou marcado pelo restabelecimento do culto de Amon, que tinha sido proibido por Akhenaton, um henoteísta que procurou elevar Aton, o disco solar, acima de todos os outros deuses, mas as ações do jovem rei não terão sido suficientes. “Fazia parte daquela família e estava demasiado ligado. Aparentemente [o restabelecimento do culto de Amon] não foi suficiente para que se esquecessem de quem era filho. Foi um trauma para os egípcios, caso contrário não o teriam apagado da história.”
Apagar ou substituir o nome de um faraó caído em desgraça pode parecer uma medida drástica, mas está relacionada com a forma como os egípcios entendiam a história do reino. “A história egípcia é como uma linha sem turbulência. Mas teve certas turbulências, e depois delas a linha continuou”, disse João Carvalho Dias, do Museu Gulbenkian. “Estavam sempre a voltar aos primeiros governantes, a respeitar o início. A história do Egito é muito longa, os períodos intermediários duraram centenas de anos. É muito difícil para nós perceber isso, porque [na história ocidental] tudo acontece em termos de revoluções e guerras. Essa estabilidade da linha histórica é muito importante para percebermos do que estamos a falar. Este tipo de personagens tornaram-se incrivelmente populares entre os seus seguidores porque queriam perpetuar a história. Mesmo os gregos, quando apareceram, estavam a olhar para milhares de anos de história e tentaram integrar a sua na linha.” Essa ideia de continuidade, foi uma das chaves para o sucesso da civilização do Antigo Egito. “Mesmo quando introduziram novos métodos, tecnologias, mudanças na vida do dia dia, ainda havia esta linha, que é estável ao longo da história egípcia”, afirmou ainda o co-curador de Faraós Superstars. “Era uma civilização muito conservadora, é algo que temos de compreender. Integravam a mudança, mas tinha sempre de coincidir com essa linha, e quando havia alguns erros, como Akhenaton e Hatshepsut, podiam livrar-se deles. Consideravam-nos apenas erros e podiam retomar a linha que tinham há séculos”, destacou Frédéric Mougenot.
Mudam-se os tempos, mudam-se os faraós
A segunda parte da exposição é dedicada à influência dos gregos e romanos na perpetuação de determinados faraós. Com o fim do período antigo e a cristianização, o conhecimento da escrita hieroglífica perdeu-se e as fontes egípcias deixaram de ser lidas. Os grandes reis do Egito Antigo caíram no esquecimento, sendo substituídos na memória coletiva por outros, hoje menos conhecidos, que eram referidos pelas fontes gregas e latinas e pela Bíblia e o Corão. À semelhança da primeira parte da exposição, a segunda começa com uma lista de faraós, com “nomes de que nunca ouvimos falar a não ser que estudemos Egiptologia”. Amásis e Psametek, que governaram o Egito nos séculos VI e V a.C., tornaram-se populares na literatura do Renascimento até ao século XIX, mas foram substituídos na época moderna por nomes como Nefertiti ou Tutankamon. Presença habitual nos textos de autores gregos, como o historiador Heródoto, porque eram mais recentes e porque foram responsáveis pela abertura do país aos gregos, nomeadamente a mercenários, Amásis e Psametek tornaram-se “personagens recorrentes na literatura e na arte” europeias a partir do século XVI. Outra figura conhecida era Nectanebo II, o último rei do Egito antes da conquista do país pelos persas, devido à sua associação a Alexandre, o Grande. Uma lenda que se tornou famosa na Idade Média, inspirando a composição de inúmeros romances medievais, dizia que Nectanebo era o verdadeiro pai de Alexandre. A história, provavelmente com origem em Alexandria, a capital fundada por Alexandre, servia para legitimar o direito do príncipe macedónio ao trono egípcio.
Nem todos os reis que eram apreciados pelos gregos e romanos foram esquecidos. A exceção é Cleópatra, talvez a soberana mais famosa do Antigo Egito, no ocidente e também no oriente. Uma inimiga de Roma, Cleópatra foi retratada de forma pejorativa pelos historiadores romanos, que criaram uma “lenda negra sobre uma mulher cruel e lasciva, que tinha sexo com toda a gente no seu palácio e que experimentava venenos nos prisioneiros”. A verdade é que Cleópatra “era demasiado ambiciosa para uma mulher”. “Para os romanos, ela tinha todos os defeitos. E era a mãe do único filho de Júlio César. Era uma grande ameaça para Octaviano”, destacou o curador de Faraós Superstars. A “lenda negra” da última rainha do Egito foi absorvida pelo mundo ocidental e, no século XVI, começaram a surgir representações de Cleópatra que a aproximavam de Eva, a primeira pecadora. Nestas, a rainha aparecia nua, geralmente num jardim e com uma cobra enrolada ao braço, numa referência ao seu suicídio, supostamente cometido com a picada de uma serpente. “A referência a Eva é óbvia. É uma condenação do pecado da carne, um grande pecado, que levou à sua morte. É uma lição de moral, mas era ao mesmo tempo uma oportunidade para o artista e para o espectador lidarem com uma mulher nua, o que quase nunca acontecia na arte daquela altura.”
A exposição inclui várias representações de Cleópatra, incluindo uma “escultura monumental” do final do século XIX, uma altura em que o sacrifício da rainha recebia um maior destaque. “A partir do século XVII, os artistas começaram a representar o heroísmo do seu gesto — ela preferiu morrer a ser humilhada e a tornar-se escrava de Augusto –, mas a ideia de que era uma mulher lasciva permanece. No caso desta escultura, ainda temos uma mulher nua, apenas coberta por uma sugestão de lençol, mas há uma tentativa de ser historicamente correto, com os hieróglifos, embora inventados, a coroa, o penteado e o detalhe do cesto de figos, que é referido pelos textos dos historiadores romanos. Mas ao mesmo tempo temos essa fantasia da mulher oriental reclinada. É uma representação muito sexista de Cleópatra, que permanece nos dias de hoje.” Esta ideia é contrária àquela que foi explorada pelos textos árabes. Nesses, Cleópatra surge como uma rainha sábia, responsável pela construção de inúmeros monumentos e defensora da soberania egípcia. Essa representação perdurou no tempo — no Egito, existem monumentos e locais arqueológicos que lhe são associados, mesmo que a rainha não tenha sido responsável pela sua construção.
Um caso curioso é o de Sesóstris, o faraó perfeito que nunca existiu. Com origem em reinterpretações gregas de textos egípcios tardios, Sesóstris, que era admirado pelos gregos porque era reconhecido como o melhor rei egípcio e um exemplo a ser seguido, é o resultado da memória de alguns reis da Antiguidade, os faraós Senuseret I, Senuseret III e Ramsés II. Conhecido como criador de estátuas colossais, quando os europeus chegaram ao Egito, interpretaram os monumentos de Ramsés II como sendo de Sesóstris. Uma das peças da exposição, e um dos motivos que levou Frédéric Mougenot a querer fazê-la, é uma gravura francesa que retrata a apoteose de Napoleão. Ao chegar ao Céu, o imperador é recebido pelos grandes reis e guerreiros do passado, começando precisamente por Sesóstris, que é apresentado na ilustração como o primeiro grande conquistador da história, “o primeiro Napoleão” e “o rei do Egito por excelência”, o que mostra a fama que o falso faraó tinha na altura.
Tudo mudou no século XIX. O desenvolvimento da Egiptologia fez ressurgir os famosos reis que o tempo tinha feito esquecer, e outros, como Akhenaton e Tutankamon, que os egípcios tinham tentado apagar. A escavação de importantes locais arqueológicos, como os túmulos do Vale dos Reis, em Luxor, gerou uma verdadeira egiptomania, influenciando a produção de joalharia, cerâmica, pintura e até a arquitetura. Na literatura, as histórias de múmias e de maldições antigas tornaram-se extremamente populares, sobretudo após a descoberta do túmulo de Tutankamon pelo arqueólogo britânico Howard Carter, em novembro de 1922. A exposição Faraós Superstars inclui fotografias e outra documentação referentes à descoberta, e também correspondência entre Carter e Gulbenkian, que contactou o arqueólogo sobre a aquisição de algumas das melhores peças que fazem hoje parte da coleção do museu. A descoberta do túmulo foi notícia em todo o mundo, incluindo em Portugal, que não ficou alheio à “febre” egípcia, que atacou sobretudo o Reino Unido — a mostra que inaugura esta sexta-feira na Gulbenkian inclui um exemplar da Biblioteca Nacional do romance A Profecia ou O Mistério da Morte de Tut-Ank-Amon, de Fernando de Carvalho Henriques. Publicado em 1924, antes de os trabalhos no Vale dos Reis estarem terminados e antes da abertura do sarcófago, trata-se do primeiro livro a nível internacional baseado na descoberta do túmulo de Tutankamon.
A restante exposição explora os ecos do passado no presente: como os grandes faraós foram apropriados pela cultura pop e utilizados pelo mundo da publicidade e qual a perceção que os egípcios têm dos seus famosos antepassados. Apesar de muito se ter dito sobre a falta de interesse dos egípcios no Antigo Egito, isso não podia estar mais longe da verdade, como é evidente por uma seleção de objetos incluída na mostra — os faraós são hoje um símbolo nacional e um motivo de orgulho para o Egito. A última sala, a Galeria Nefertiti, inclui algumas peças de autores contemporâneos que recuperaram a imagem da famosa rainha e também de Cleópatra. Outrora descartadas da história do Egito, elas são atualmente um poderoso símbolo feminista, incluindo para a comunidade negra, embora permaneçam associadas à ideia de beleza e sensualidade que foi explorada pelos historiadores romanos há tanto tempo.
A peça final, Grey Area, um conjunto cinco Nefertitis de cores diferentes, do branco ao preto, é, na opinião de Frédéric Mougenot, um resumo de toda a exposição. Produzida nos anos 90 pelo artista afroamericano Fred Wilson, a obra “ecoa e questiona a etnia dos egípcios”. Wilson “não diz onde está a verdadeira Nefertiti, se é a rainha branca ou a rainha negra. Ele diz que a realidade está no meio; diz para não pensarmos logo que ela era uma beleza branca, porque a beleza negra também é possível. Todos estes artistas [que surgem na mostra] pegaram numa obra de arte muito famosa, que está em todos os livros de história de arte, e abanaram esses ícones um bocadinho e dobraram-nos para atingirem os seus objetivos”. Hossam Dirar, um artista egípcio, produziu em 2018 uma série de retratos de Nefertiti para convidar “todas as mulheres egípcias a serem Nefertiti, a serem livres como ela era, porque ela fez uma revolução cultural e religiosa com o seu marido, Akhenaton, e era suposto ser livre da tradição. Isso mostra que podemos fazer a personagem histórica rainha dizer o que quisermos”, afirmou o curador. “Nefertiti tornou-se uma personagem, não uma figura histórica. Aconteceu a mesma coisa com os faraós. A fantasia e o sonho ultrapassaram a ciência e a arqueologia.” Cinco mil anos depois, os reis e rainhas do Egito tornaram-se superstars.