Em fevereiro, relatava uma saída apressada e momentos de agonia ao tentar fugir da guerra. Agora, fala em medo e em repercussões psicológicas. Oksana Pokalchuk vivia em Irpin há três anos quando estalou o conflito, no final de fevereiro. Fugiu para a zona ocidental da Ucrânia e admite que não consegue voltar a casa, pelo menos para já. Em entrevista ao Observador, a diretora-executiva da Amnistia Internacional na Ucrânia fala em violações de direitos humanos, possíveis crimes de guerra e olha para o futuro. Pelo menos para já, não consegue imaginar como vai ser possível reconstruir o país — sobretudo se não houver apoio por parte da comunidade internacional nesse trabalho.
A Amnistia Internacional tem estado a trabalhar por todo o território ucraniano, em parte a recolher dados e provas que apontem para crimes de guerra. O objetivo é poder auxiliar, no futuro, instituições como o Tribunal Penal Internacional e perseguir e punir os responsáveis pelo que tem acontecido. A diretora-executiva explica que as exceções, nesse trabalho de recolha e de apoio à população, são os territórios que estão ocupados. “Não é essa a nossa vontade, mas é simplesmente impossível”, conta. Por isso, por agora, só é possível imaginar — ou temer — o que vai ser descoberto quando essas cidades, como Mariupol, por exemplo, foram libertadas. Oksana Pokalchuk acredita que esse momento vai revelar centenas de milhares ou mesmo milhões de casos de possíveis crimes de guerra.
“40 pessoas mortas em dois minutos, sem nenhum propósito”
Têm sido várias as denúncias de crimes de guerra e violações de direitos humanos levados a cabo pela Rússia na Ucrânia. No seu trabalho, teve oportunidade de testemunhar ou de ouvir relatos que dessem conta disso?
Claro, fizemos alguns relatórios sobre isso e provámos que o exército russo atacou indiscriminadamente civis. Falámos de ataques que foram desproporcionais. O que significa que o alvo do ataque até poderia ser legítimo. Mas, por causa da natureza da arma em questão, não era possível atacar apenas o alvo diretamente e foi atingida a zona em volta. O nível de vítimas em resultado de um ataque desse tipo é superior ao legítimo. Se houver, por exemplo, uma casa e os russos presumirem que lá há um soldado ucraniano, mas se estiverem também 40 civis, um ataque desta natureza é desproporcional. Nós, como Amnistia Internacional, conseguimos provar que os russos atacaram desproporcionalmente e indiscriminadamente civis. Houve tortura, execuções sumárias e outras violações de direitos humanos.
Para a Amnistia Internacional, há situações óbvias da prática de crimes de guerra? Onde? Pode descrever casos com que tenham sido confrontados?
Há três meses, ninguém conhecia o nome Borodianka, era apenas uma aldeia perto de Kiev. Agora é um sítio que muitas pessoas conhecem de forma negativa. Houve, por exemplo, um conjunto de edifícios que foram atacados por mísseis russos naquele local. Num deles havia 40 pessoas, todas morreram com apenas um ataque. Nós estivemos lá e conseguimos falar com pessoas que viviam perto do edifício, que viram o que tinha acontecido ali e ajudaram a retirar os corpos. Nós provámos onde o míssil caiu, de que tipo era e que o alvo era a casa, mas também que os russos não fizeram isto sem querer. Eles tinham um objetivo, sabiam para onde estavam a disparar este míssil. Era um edifício grande, com muitas casas, e por isso eles sabiam, pelo menos podiam presumir que havia civis lá dentro. É como no exemplo que dei, 40 pessoas mortas em dois minutos, sem nenhum propósito. Vou voltar a sublinhar: sem nenhum propósito. Porque não havia um alvo legítimo ali, não havia bases militares ou algo semelhante. Eram só 40 pessoas que estavam a tentar esconder-se numa cave e nunca mais saíram. Ou, por exemplo, quando Izium, uma cidade na região de Kharkiv, foi atacada. Os russos tomaram residências civis como alvos várias vezes. E nós conseguimos obter informação no terreno e entrevistámos pessoas que foram retiradas de Izium. Provámos de onde foram disparados os mísseis, onde caíram, de que tipo eram, quais foram os resultados a nível de mortes e onde estavam os soldados ucranianos naquele momento. Porque usámos imagens satélite e voltámos uma e outra vez a provar que não havia alvos legítimos. Eles estavam apenas a direcionar os ataques contra a população civil. Talvez pensem que todos os ucranianos são lutadores e que todos têm uma posição pró-ucraniana e têm de ser mortos. Mas nós temos a Convenção de Genebra. Nós, como seres humanos, concordámos em algumas leis e agora vemos que um lado quebrou definitivamente essas regras.
A Amnistia Internacional tem documentação para apoiar estes relatos?
Sim, temos documentação e uma investigação sólida sobre isso. Temos especialistas que foram para a Ucrânia e testemunham em primeira mão o que se está a passar. Mas também usamos imagens satélite, falamos com testemunhas, recolhemos dados de fontes oficiais, entre muitas outras. Foi assim que conseguimos provar estas violações de direitos humanos. Se, por exemplo, o Tribunal Penal Internacional nos pedir, nós conseguimos prestar essa informação. E a metodologia utilizada nos nossos relatórios é semelhante à do tribunal. Ou seja, as nossas descobertas podem vir a ser usadas pelo Tribunal Penal Internacional e talvez por outras instituições internacionais para futura investigação sobre as atrocidades cometidas na Ucrânia.
Já enviaram estes testemunhos para as autoridades?
Sim, eles têm conhecimento do nosso trabalho. Até porque estes relatórios são públicos. Mas vamos tentar apoiar o Tribunal Penal Internacional com as nossas provas. Porque a forma como foram recolhidas pode tornar o processo mais rápido.
“Em breve vai chegar o momento em que as pessoas vão ter de lutar pelos seus direitos”
No Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, pediu que exista uma abordagem abrangente e ambiciosa para, a longo prazo, atribuir responsabilidades em relação ao que tem acontecido na Ucrânia. Quais são as recomendações da Amnistia?
Eu penso que, agora, os países que queiram ajudar a Ucrânia a fazer justiça têm de prestar apoio às autoridades ucranianas. De forma a preservar e recolher provas para depois formular uma posição perante as autoridades. Eu sei que é pouco usual uma organização de direitos humanos dizer coisas como estas. Mas estamos num ponto em que eu acredito que, mesmo que tentem o melhor, as autoridades ucranianas não vão conseguir lidar com um número tão grande de casos. Isto considerando o que já têm em mãos e que os casos vão aumentar quando os territórios que estão ocupados forem libertados. Eu não consigo imaginar quantos casos vão existir quando Mariupol for libertada. Não sei. Centenas de milhares, milhões? Ninguém sabe. Por isso, vamos precisar de apoio da comunidade legal em diferentes aspetos. Podem ser investigadores, procuradores, advogados de diferentes países que possam dar apoio às vítimas destas violações. As pessoas enfrentaram situações tão traumatizantes — perderam as casas, entes queridos, famílias, algumas ficaram feridas, com incapacidades para o resto da vida. Em breve vai chegar o momento em que vão ter de lutar pelos seus direitos. Vai haver milhões de casos de violações de direitos humanos e o governo não vai conseguir lidar com todos. Por isso, era bom ter apoio de fora, se advogados de diferentes países conseguissem apoiar um ou dois casos. Eles não têm de ser especialistas na lei ucraniana, iriam só garantir que as famílias não desistem de lutar e que recomeçam a vida delas. Não compreendo como é que o governo vai conseguir lidar com isto. Não consigo, a Ucrânia agora não tem dinheiro sequer para reconstruir as casas de todas as pessoas que as perderam. É um grande problema. Não podemos deixar as pessoas nas ruas, têm de encontrar um sítio para viver e, de um ponto de vista dos direitos humanos, é o governo que tem obrigação de providenciar estas habitações. Mas, depois das nossas reuniões com o governo, posso dizer que não há dinheiro para isso. O que significa que vai haver muitos pedidos, muitas historias más, muita dor. É aí que o apoio internacional vai ser preciso, para continuar a fazer pressão a apoiar os casos no tribunal e junto das autoridades que estão a investigar. Para que as pessoas lutem pelo direito a ter uma casa.
Têm balanços de mortes de civis ou de edifícios civis que tenham sido atacados?
Ninguém tem e ninguém vai ter até os territórios ocupados serem libertados. Nós temos alguma informação oficial de cidades que foram libertadas, mas no geral não. Alguma informação nunca vai estar disponível. Por exemplo, em Mariupol, ninguém sabe o número total de mortes ou de edifícios destruídos, e esse é o problema. Mariupol é só uma cidade, há muitas outras com casos semelhantes, que estão na mesma situação e ninguém presta atenção porque não são tão conhecidas. Quando nos reunimos com as autoridades, perguntámos e disseram o mesmo: “Ninguém sabe”. Eles nem têm como objetivo chegar a esses números, as contabilizações só vão acontecer depois da libertação dos territórios. O que vai saindo hoje em dia é só uma estimativa.
Enviaram as provas que vão recolhendo a alguma entidade?
Ainda não, mas poderá ser ao Tribunal Penal Internacional. Ou talvez (tem havido conversas sobre isso) a uma nova entidade judicial. Há essa oportunidade, quem sabe. Talvez a ONU, com o apoio de alguns países, possa criar um novo instrumento que seja relevante não só para o conflito na Ucrânia, mas também para outras guerras. A Ucrânia não é única, é mais uma guerra neste mundo e nós não conseguimos responder aos problemas que estamos a viver. A guerra continua e a comunidade internacional tem estado a assistir. O máximo que Amnistia pode fazer é verificar a violação da lei humanitária e das leis da guerra. Mas não conseguimos influenciar de forma a pará-la, evitá-la ou preveni-la de alguma forma. Talvez seja altura de começarmos a pensar na ordem internacional, talvez seja o momento de fazer algumas mudanças. Não apenas por causa da Ucrânia, mas por todo o mundo. Talvez agora que as atenções estão todas viradas para a Ucrânia, nós como seres humanos possamos beneficiar disto. Juntar as melhores mentes para pensar o que pode ser feito de diferente. O que vemos é que a ordem atual não previne mortes de civis. O que significa que, daqui a algum tempo, a mesma situação pode acontecer a outro país, ao seu país, ou ao meu país de novo. A comunidade internacional vai continuar a repetir que está muito preocupada com a situação. Mas eu não quero que estejam apenas profundamente preocupados. Eu quero ações e apoio a pessoas reais no terreno. Sem mudanças, creio que isso não vai ser possível. Aquilo que existe agora foi criado depois da 2ª Guerra Mundial, era uma situação diferente e um contexto político diferente. Talvez algumas mudanças às regras permitam que seja mesmo possível prevenir uma guerra.
Essa ideia está a ser discutida ou está só pensada?
A Amnistia está a olhar para isto com muita atenção e temos uma posição. Mas vai demorar algum tempo para concretizar. Claro que a Ucrânia tem de concordar — pelo que sei, o país agora quer uma instituição que seja apenas uma cooperação entre alguns países. Mas, sem a ONU, as decisões podem ser questionadas, porque seria um órgão europeu para problemas europeus. Achamos que é importante integrar a ONU ou um organismo semelhante para aumentar o valor desta instituição.
“Vi aviões em combate uns contra os outros no céu. Ouvi os mísseis. É muito diferente estar no local onde está a acontecer”
A nível pessoal, como viveu este conflito? Onde estava quando estalou a guerra?
É uma questão complicada. Antes estava a viver em Irpin, estive lá durante 3 anos. Por isso é que, para mim, é tão doloroso. O mercado onde eu costumava comprar cenouras e batatas durante anos ficou destruído. Os meus vizinhos foram mortos e estão enterrados nos jardins das casas, as caves estão cheias de pessoas mortas. Eu não consigo voltar. A cidade foi libertada há mais de um mês, mas eu não sou assim tão corajosa. Muitas pessoas estão a voltar, eu não consigo. Sinto que o chão está cheio de fragmentos de corpos de pessoas. Tenho medo de que, se caminhar lá, vá pisar restos mortais. Não consigo lidar com isso, por isso acho que não é o momento para voltar para lá ou para estar lá. Para além disto, há problemas com minas. Ainda há muitas que foram deixadas por soldados russos, escondidas, para fazer mal às pessoas. Mas é um problema psicológico, eu sei que as pessoas conseguem estar lá. Quer dizer, todos os jornalistas do mundo estiveram lá. Mas eu não consigo.
Ouça aqui a entrevista a Oksana Pokalchuk.
Amnistia Internacional. “Provámos que os russos atacaram civis”
Quando fugiu de Irpin, foi para onde?
Para a parte ocidental da Ucrânia, estive lá algum tempo. Mas a minha mãe tem estado em Kiev, esteve dois meses numa cave. Tem alguns problemas de saúde agora, a nível dos pulmões e dos ossos. Mas não é a única, tenho alguns amigos que também estiveram escondidos numa cave e que estão doentes, porque estava muito frio e muito húmido. Não vai encontrar ninguém da Ucrânia que esteja bem. Mesmo que digamos que estamos bem, não estamos. Porque, independentemente de termos posições políticas ou não, experienciar o que nós passámos não deixa alguém indiferente. Vamos ter traumas, só podemos não reconhecer isso.
Quando foi a primeira vez que deixou o país desde que começou o conflito?
Na primeira vez que deixei a Ucrânia desde o início da guerra fui para Varsóvia. Estava muito diferente, nem me lembro quando foi. Durante algumas semanas, ainda estava com medo de estar na rua. Tinha problemas com sons, tinha medo do barulho dos carros e assustava-me se alguém abrisse ou fechasse a porta com força. Tinha muito medo, não era fácil para mim ir a uma loja e simplesmente comprar comida. Tinha mesmo muito medo. Deixava-me em pânico saber o que estava a acontecer em casa. O meu corpo ficava a tremer.
É o primeiro cenário de guerra que presencia?
Pessoalmente, sim. Claro que, em 2014 [anexação da Crimeia pela Rússia], acompanhei a situação. Mas era longe, apesar de ser na Ucrânia, e eu estive envolvida no processo de ajudar pessoas. Mas aqui vi aviões em combate uns contra os outros no céu. Ouvi os mísseis. É muito diferente estar no local onde está a acontecer.
“Sem estas 15 pessoas, ela estaria morta”
Houve alguma história que tenha testemunhado que lhe ficou na memória?
Na primeira semana, alguém me pediu para ajudar a transferir uma senhora com 86 anos que tinha problemas mentais e que não conseguia andar de Kiev para Chernivtsi. Numa altura em que milhões de pessoas estavam a fugir para os países ocidentais e para as regiões ocidentais da Ucrânia, nós também não estávamos em Kiev. Uma mulher sozinha no apartamento. Não havia transportes públicos, táxis ou combustível em Kiev. Como é que se transferia uma avó muito velha e não muito simpática de Kiev para outra cidade perto da fronteira com a Roménia? Demorou três dias e foram precisas 15 pessoas que eu nunca tinha conhecido antes e com quem nunca estive presencialmente, só falei com elas por telefone. Todas elas fizeram o melhor que conseguiram para levar aquela senhora de casa para o carro, do carro para a estação de comboios, a pô-la dentro do comboio, a fazer companhia durante a viagem. Depois houve um voluntário que esteve com ela noutra cidade. Noutra noite, ela dormiu em casa de alguém, etc. Quinze pessoas que fizeram aquilo sem nada em troca. Só para retirar uma avó de Kiev para a fronteira com a Roménia. E não era uma pessoa simpática, com quem se pode falar, por causa dos problemas mentais. É complicado tratar desta senhora, mas, mesmo com a guerra, bombardeamentos, disparos, fuga de pessoas, multidões, 15 pessoas apoiaram sem quererem nada em troca. Quando lhes tentei pagar para os recompensar, ninguém aceitou. Só diziam para doar o dinheiro ao exército. Agora, a avó está viva e está bem. Está num lar de idosos na fronteira com a Roménia. Sem estas 15 pessoas, ela estaria morta, porque não conseguia viver sem apoio. Esta história vai ficar comigo toda a minha vida. Não achava isto possível, porque havia muitas pessoas em necessidade. Porquê ajudarem esta senhora? Mas ajudaram.
Sobre refugiados: a Amnistia está a dar apoio a quem está a fugir da guerra? Há, por exemplo, relatos de tráfico de seres humanos.
Até agora, há alguns casos. Mas a informação ainda tem de ser confirmada. Pelo que sei, em breve vamos ter dados. Conhecemos histórias de pessoas que foram forçadas a trabalhar e que foram obrigadas a fazer coisas que não queriam. Mas, para falar disto com mais certeza, falta investigação. Conheço três pessoas pessoalmente que tenho estado a acompanhar, mas prefiro esperar por mais informação e que seja verificada.