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Kaliningrado. Tem 15 mil quilómetros quadrados de território russo, mas está longe da Rússia. A terra, que já foi alemã e é quase do tamanho da Irlanda do Norte, está rodeada pela Polónia, pela Lituânia, e pelo mar Báltico. Este pedaço do país de Vladimir Putin é bem real, mas vamos acrescentar-lhe um pouco de faz de conta. Faz de conta que o Presidente russo quer criar uma ponte terrestre a ligar Kaliningrado a Moscovo. Um algoritmo dá-nos a resposta que queremos: são 16 horas de caminho (quase 1.300 quilómetros), atravessando a Letónia e, depois, a Lituânia. Um caminho alternativo, mais longo, seria atravessar a aliada Bielorrússia e beliscar um pedaço de território à Polónia. Nestes dois cenários hipotéticos, em que o Kremlin avança pelos países da NATO adentro, a resposta da Aliança Atlântica deveria ser a mesma: um ataque a um membro da NATO é considerado um ataque a todos, segundo o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte. Mas será?
A mudança na presidência dos Estados Unidos, com a eleição de Biden, trouxe um acréscimo de segurança e é mais fácil acreditar que a NATO voltou a usar o lema “um por todos”, ao contrário do que aconteceu com a administração Trump.
Durante a anterior administração norte-americana, a incerteza era grande. Trump disse-o com todas as letras, em 2016, numa entrevista ao The New York Times: os EUA não devem defender automaticamente um aliado em caso de ataque. Se a Rússia atacasse algum dos países bálticos — Estónia, Letónia e Lituânia —, Trump iria avaliar se esses países “cumpriram as suas obrigações”, antes de os ajudar militarmente. As obrigações eram financeiras: o objetivo de cada membro consagrar 2% do respetivo PIB a despesas em defesa. Curiosamente, os dados de 2021 indicam que esses três países fazem parte do grupo de oito membros da NATO que ultrapassaram o valor da despesa acordada.
O mesmo Presidente norte-americano chegou a dizer que a NATO era obsoleta — mais tarde, em 2017, disse que já não era — e o Presidente francês considerou, em 2019, que a aliança estava em morte cerebral. As palavras de Emmanuel Macron, que criticava o comportamento unilateral da Turquia na Síria, incomodaram a então chanceler alemã, Angela Merkel, e mostravam bem a divisão que existia entre os signatários do Tratado do Atlântico Norte.
O Presidente turco respondeu a Macron, na mesma semana, a poucos dias de uma cimeira crucial da NATO: “Examina em primeiro lugar a tua própria morte cerebral”, disse Recep Tayyip Erdogan.
Trump: EUA só defenderão países da NATO se cumprirem “as suas obrigações para connosco”
As divisões sobre a Síria não estão sanadas na NATO e, nos últimos dias, voltaram a ser tema de conversa. Mas, com a eleição de Joe Biden, houve uma mudança na escola de pensamento em Washington e os EUA voltaram a defender a importância da NATO na ordem mundial. Foi como água na fervura, mesmo que sem efeito duradouro.
“Sou daqueles que entendem que, se porventura Donald Trump tivesse sido reeleito, teríamos começado a discutir a verdadeira sobrevivência da Aliança Atlântica”, diz ao Observador o professor catedrático Luís Tomé.
“Desse ponto de vista, o alargamento putativo àqueles que foram convidados em 2008 — como a Ucrânia e a Geórgia — não se colocaria”, defende, e isso era um argumento a menos para Putin, já que não se estaria a discutir a possibilidade de alargamento da NATO a outros países naquilo que, até à década de 1990, era espaço de influência soviética. “Se calhar teríamos começado a discutir a própria existência da Aliança Atlântica”, sublinha o diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa.
Se Trump deixou de pôr em risco o artigo 5.º, Erdogan ainda é um perigo
“Há algum receio quando ouvimos alguém como o antigo Presidente norte-americano, Donald Trump, dizer que não sabe muito bem se vai cumprir o artigo 5.º. Foi a primeira vez que um candidato presidencial ou um Presidente americano disse isso”, sublinha Bruno Cardoso Reis ao Observador. “Depois acabou por recuar nessas declarações e até veio dizer que, afinal, a NATO já não era obsoleta”, recorda o historiador, doutorado em estudos de guerra.
Durante a administração Trump, as divergências transatlânticas, “que são cíclicas e algumas se mantêm”, agravaram-se muito, defende, por seu lado, Luís Tomé. “As desconfianças entre europeus e administração Trump agravaram-se de tal maneira que já tínhamos uma espécie de crise de identidade na Aliança Atlântica. Durante o período de Donald Trump começámos a questionar se, de facto, pertencíamos à mesma comunidade de valores e de princípios e à mesma comunidade de segurança.”
O problema, acredita o professor catedrático, ficou resolvido com a tomada de posse de Joe Biden. “A administração Biden aparece a dizer não apenas que ‘America is back’, mas ‘NATO is back’. Volta a valorizar a Aliança Atlântica, volta a valorizar as relações com os seus aliados europeus e a dar sucessivas garantias de que, na ótica dos EUA, com esta administração, os aliados NATO são cruciais e a estrutura NATO é fundamental na visão que os EUA têm para a ordem internacional.”
Se Trump deixa de ser um problema, e parece ser (novamente) verdade que atacar um será como atacar todos, o Presidente turco voltou a revolver águas que pareciam estar tranquilas. Afinal, estavam só estagnadas.
Numa conversa muito recente com Putin, Erdogan terá detalhado o seu plano para uma nova ofensiva na Síria, ao mesmo tempo que discutiam, ao telefone, a atual invasão da Ucrânia. Desde o final do mês passado, ficou claro o que vai na cabeça do Presidente turco: uma grande operação militar para repelir os combatentes curdos sírios e conseguir a desejada zona tampão de 30 quilómetros na Síria, na mesma zona que a Turquia atacou em 2019. Objetivo? Proteger a fronteira turca de movimentos terroristas.
O timing de Erdogan é péssimo e preocupa os Estados Unidos. John Kirby, porta-voz do Pentágono, assumiu que “aumentar a atividade militar” representa perigo para a segurança dos civis na Síria, mas não só. Pode ter impacto na luta contra o Estado Islâmico que é encabeçada pelas Forças Democráticas Sírias (FDS) — aliança armada dominada pelos curdos, apoiada pelos Estados Unidos, mas considerada uma organização terrorista pela Turquia.
Em 2019, sob a égide de Trump, os EUA retiraram as suas tropas da Síria — país liderado por Bashar al-Assad que tem o apoio da Rússia —, o que permitiu à Turquia atacar os curdos que combatiam o Estado Islâmico. Na altura, quando falava da morte cerebral da NATO, Macron questionava o futuro da Aliança. “Como funcionará o artigo 5.º no futuro? Se o regime de Bashar al-Assad decidir retaliar contra a Turquia, os Estados da NATO envolvem-se? Isto é uma questão real.”
O Presidente francês relembrava o empenho em combater o Estado Islâmico, e não percebia a posição dos colegas da NATO. “O paradoxo é que a decisão dos EUA e a ofensiva turca têm, em ambos os casos, um mesmo resultado: o sacrifício dos nossos parceiros no terreno que se bateram contra o Daesh — as Forças Democráticas da Síria (FDS).”
Agora, tal como em 2019, a Síria divide os parceiros da NATO.
Estocolmo e Helsínquia na NATO? Todos os caminhos têm ido dar ao “não” de Ancara
A Suécia e a Finlândia bateram à porta da NATO, mas, para conseguirem entrar, os 30 membros que a compõem têm de dizer “sim” em uníssono. A Turquia, por causa da Síria, ou dos curdos sírios, prepara-se para se colocar de braços abertos à porta da Aliança Atlântica — não para receber os potenciais novos parceiros mas para obstaculizar a entrada de qualquer um dos países. De Ancara, Erdogan já o disse, só chegará um enorme “não” — ou um “nej”, “ei”, “numara”, consoante a língua de quem o ler.
Para mudar de posição, a Turquia exige que Suécia e Finlândia terminem com o que considera ser uma política de acolhimento de organizações terroristas, referindo-se a alguns grupos de militantes curdos. Vladimir Putin, que começou por dizer que era um erro os dois países juntarem-se à aliança, acabaria por dizer que não tinha problemas com estes dois Estados em concreto, a não ser que a NATO colocasse armas e bases militares naqueles territórios. Saberia, de antemão, que a Turquia ia impedir o uso da política de porta aberta da Aliança Atlântica? Só os dois presidentes saberão a resposta certa.
Putin diz que expansão da NATO é um “problema” e “certamente causará uma resposta”
Quanto à ofensiva na Síria, depois de prometer “limpar Tal Rifaat e Manbij de terroristas”, Erdogan deixa um recado aos parceiros: “Vamos ver quem apoia as operações de segurança legítimas da Turquia e quem tenta opor-se a elas.”
A posição de Washington é clara: “Iremos opor-nos a qualquer escalada na Síria”, disse Anthony Blinken, secretário de Estado norte-americano, durante uma conferência de imprensa conjunta com o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg.
Os problemas da Turquia com aliados da NATO não terminam com a questão Síria. O governo da Grécia, em abril passado, decidiu não reatar as relações de confiança com Ancara, como estava previsto, depois de denunciar 126 violações do seu espaço aéreo, num único dia, por militares turcos. A Turquia “mina a coesão da NATO num momento particularmente crítico na região”, defendeu, em comunicado o Ministério dos Negócios Estrangeiros da Grécia. O secretário-geral da NATO foi avisado destas “novas provocações” da Turquia.
Por tudo isto, entre analistas e comentadores internacionais há cada vez mais vozes que se levantam contra a Turquia e a lógica de mantê-la na NATO. Não há, no entanto, nenhuma forma simples e direta de expulsar um membro, a não ser que ele queira sair pelo próprio pé, conforme previsto no artigo 13.º — o que Erdogan dificilmente fará.
Europeus pouco interessados em defender a Turquia
Se depender do povo, e não do poder político, os europeus não irão correr em auxílio da Turquia e poucos se importam em cumprir, neste caso, o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte. Uma sondagem recente, feita em março (já depois da invasão russa da Ucrânia), mostra que Ancara está no fundo da tabela de países que os europeus correriam a salvar. As perguntas, feitas pela empresa YouGov, foram colocadas a britânicos, espanhóis, franceses, italianos, alemães e polacos.
Nos seis países da NATO, menos de metade da população inquirida concorda em cumprir o artigo 5.º para defender a Turquia de uma ameaça militar. Os piores resultados chegam da Alemanha e da França, onde apenas 22% dos inquiridos consideram que o seu país deveria socorrer Ancara. Em Itália, há uma subida ligeira (24%) e o melhor resultado é conseguido com as respostas dos espanhóis (40% favoráveis à ajuda militar). Polónia e Grã-Bretanha (Irlanda do Norte não foi incluída) empatam com 39% de respostas positivas a um eventual pedido de ajuda.
O oposto acontece com França. Neste caso, em todos os seis membros da NATO, mais de metade da população acredita que é dever do seu país ajudar os franceses ao abrigo do artigo 5.º. No limite inferior surge a posição dos italianos, com 51% de respostas positivas. Na Alemanha e na Polónia, 56% dos inquiridos defendem a ajuda à França, na Grã-Bretanha 60%. E o valor mais alto chega de Espanha: 71% dos inquiridos consideram que o seu país deveria ajudar o vizinho em caso de ataque.
Em Itália, os inquiridos mostram muito pouca vontade de ver o artigo 5.º cumprido — as respostas afirmativas são sempre menos de metade, exceto quando é a França que está em risco. Mesmo assim, só 51% dos inquiridos ajudariam os franceses. Na Alemanha, o cenário é semelhante. França é o país que mais alemães aceitariam ajudar (56%), seguido da Polónia (51%), ambos países com os quais a Alemanha faz fronteira. Para todos os outros, é sempre menos de metade dos inquiridos que concorda com a ativação do artigo 5.º, mesmo quando a ajuda se destina aos Estados Unidos (43%).
Os Estados Unidos, aliás, mesmo sendo a maior potência militar da NATO (ou talvez por isso), não têm solidariedade garantida no caso de serem atacados. Da parte da Polónia, há maior disponibilidade de ajuda (61%), seguindo-se uma velha aliados dos EUA, a Grã-Bretanha (57%) e, depois, Espanha (54%). Em França, Itália e na Alemanha, menos de metade da população ajudaria o parceiro atlântico: 49%, 43% e 42%, respetivamente.
Apesar disso, a única vez em que o artigo 5.º foi invocado foi depois dos ataques terroristas às Torres Gémeas, em Nova Iorque. Aconteceu um dia depois, a 12 de setembro de 2001, e estava em causa uma agressão contra os Estados Unidos por um ator não estatal.
Em 2019 e em 2020, outra empresa de estudos de mercado, a PEW Research, publicou os resultados da análise à imagem que a população de alguns dos Estados-membros da NATO tem da Aliança Atlântica. Também aqui a questão do artigo 5.º foi levantada.
Nos resultados de 2019, o país mais disponível para usar força militar para ajudar um país da NATO envolvido num conflito grave com a Rússia eram os Países Baixos, com 64% dos inquiridos a responderem “sim”. Os Estados Unidos vinham logo atrás, com 60% de respostas afirmativas.
Em sentido oposto, seguia a Bulgária. Só 12% dos inquiridos se mostraram a favor de cumprir o disposto no artigo 5.º, caso fosse invocado. Itália e Grécia tiveram ambas 25% de respostas positivas, a Eslováquia e a Turquia chegaram as duas aos 32%.
Canadá, Reino Unido e Lituânia são os restantes países em que mais de metade dos inquiridos concordou em ajudar outro membro da NATO atacado pela Rússia (56%, 55% e 51%, respetivamente). Alemanha e França? Os alemães só dão 34% de respostas positivas, os franceses dão 41%.
Se o artigo 5.º for invocado, deve ser a América a ajudar (na opinião dos europeus)
No estudo divulgado em 2020, há uma pergunta que se acrescenta. Além de querer saber se a população de alguns Estados-membros vê com bons olhos ajudar outro país ao abrigo do artigo 5.º, perguntou-se também o que deveriam fazer os Estados Unidos. Em todos os casos, as respostas “sim, os EUA devem ajudar” foram superiores às “sim, o meu país deve ajudar”. E, em alguns países, a diferença é grande.
Em Itália, onde, tal como em 2019, só um quarto dos inquiridos eram favoráveis à ideia de o seu país ajudar outro Estado em caso de ataque, 75% dos italianos — ou seja, três vezes mais — defendiam que os Estados Unidos deviam ajudar outros membros da NATO ameaçados pela Rússia. Na Grécia, a situação é quase copiada a papel vegetal, com valores de 25% para a primeira pergunta e 65% para a segunda.
Na Hungria e na República Checa a coerência é maior: são muito baixos os valores de quem defende que o seu país ou os Estados Unidos devem recorrer à força militar para ajudar um país da NATO atacado pelos russos: entre os húngaros, as respostas são de 33% e 39%, respetivamente. Entre os checos, de 36% e de 41%.
Diga o que disser o povo, os políticos não podem ignorar o artigo 5.º
Voltemos a Kaliningrado e ao hipotético ataque de Moscovo a um dos países bálticos, membros da NATO. Poderiam os membros da Aliança ignorar os desígnios do artigo 5.º, caso ele fosse invocado, ou teriam mesmo de ajudar o parceiro em aflição?
“Se a NATO não o fizesse, desaparecia”, vaticina Luís Tomé. “Se imaginarmos um cenário em que há um ataque, uma agressão direta, da Rússia contra um país que é membro da NATO e não se atuar em conformidade com o artigo 5.º, então a NATO desaparece. Nem tem razão de ser.”
A própria credibilidade dos EUA ruiria, defende o professor da UAL, que acredita que o embate iria além do sistema de alianças na Europa. “O sistema global dos EUA estaria em causa. Obviamente, a Aliança Atlântica não teria condição nenhuma de sobrevivência.” Luís Tomé recorda que não existe uma aliança formal dos EUA com Taiwan, que não é sequer reconhecido como Estado, mas apenas uma lei interna, o Taiwan Relations Act. Apesar disso, “Biden veio dizer que, no caso de uma agressão, os EUA atuarão militarmente”.
No caso da NATO, explica, o artigo 5.º foi criado exatamente para dissuadir uma agressão contra um aliado europeu e não se pode colocar outra hipótese que não seja cumpri-lo.
“O grande problema dos tratados e da lei internacional é que, sendo claro do ponto de vista formal que é essa a obrigação, não é garantido que os Estados cumpram. E sabemos que os Estados violam os tratados”, diz, por seu turno, Bruno Cardoso Reis.
O historiador aponta o exemplo da invasão russa da Ucrânia a 24 de fevereiro. “A Rússia assinou um tratado em 1994, a garantir a integridade territorial da Ucrânia, e violou-o por duas vezes, em 2014 e agora. No fundo, é sempre uma questão de prova de confiança. Há aqui uma convergência de interesses, há uma durabilidade da Aliança Atlântica, que ajudam a dar credibilidade a essa garantia. Mas não podemos nunca ter certezas absolutas.”
No entanto, frisa que a estabilidade da NATO seria muito abalada se ela falhasse em ajudar um dos aliados. “Agora, a alternativa não é entre não fazer nada e a Terceira Guerra Mundial. A própria doutrina da NATO há muitas décadas que passa por dar uma resposta graduada, proporcional ao ataque que for feito. Haver aqui algum tipo de resposta não implicava estar a usar todo o tipo de armamento contra a Rússia e partir para uma Terceira Guerra Mundial — que, provavelmente, seria nuclear”, frisa Bruno Cardoso Reis.
Ou seja, há alternativas à guerra total. “Aquilo que a NATO transmite, até publicamente, também tem uma função de aviso aos potenciais adversários ou inimigos: ‘Atenção, nós não deixaremos de dar uma resposta’, mas será proporcional ao ataque feito. Essa é um bocadinho a regra da base de dissuasão”, sublinha o historiador.
Já o artigo 5.º tem poder de atração, explica Luís Tomé, principalmente num momento como o atual. “No contexto da guerra na Ucrânia, mais países se sentem diretamente ameaçados pela Rússia e mais sentem a necessidade de estar protegidos pela garantia do artigo 5.º. Até alguns, que eram neutrais, agora procuram essa mesma garantia porque se sentem ameaçados pela Rússia.”
É o caso da Suécia e da Finlândia.
O que dizem os líderes? Tratado é para cumprir
A 24 de março, quando a guerra na Ucrânia somava 29 dias, os 30 signatários do Tratado do Atlântico Norte tomaram uma posição comum. Num longo comunicado sobre a invasão russa, em que condenavam os atos de Vladimir Putin, referiam-se ao artigo 5.º: “Continuaremos a tomar todos os passos necessários para proteger e defender a segurança das populações dos nossos aliados e cada centímetro do território aliado. O nosso compromisso com o artigo 5.º do Tratado de Washington é couraçado.”
O primeiro a lançar o aviso à Rússia foi Joe Biden, dias antes de a guerra começar, e, desde então, já repetiu várias vezes que os aliados irão defender cada pedaço do território da NATO. Uma dessas alusões aconteceu durante uma visita à Polónia, a 26 de março, quando, dirigindo-se a Putin, o Presidente norte-americano afirmou: não pense sequer em mover-se “um único centímetro” no território dos aliados. A consequência? “Temos uma obrigação sagrada sob o artigo 5.º de defender cada centímetro do território da NATO com toda a força do nosso poder coletivo.”
Também em março, numa entrevista à LBC, Sajid Javid, ministro da Saúde do governo de Boris Johnson, foi claro sobre a posição britânica: “Se uma simples biqueira russa tocar em território da NATO, haverá guerra com a NATO.”
Mais recentemente, a 7 de junho, foi o chanceler alemão quem se referiu ao artigo que é uma das pedras basilares da Aliança. “Em caso de ataque, defenderemos todos os centímetros do território da NATO”, disse Scholz.
Por tudo isto, Bruno Cardoso Reis e Luís Tomé acreditam que, no momento atual, a Aliança Atlântica irá cumprir os seu compromissos, se chegarmos a isso. “Havendo um ataque a um país da NATO, haverá uma retaliação solidária, na medida das possibilidades, claro, dos outros Estados-membros. E é isso também que ajuda a explicar porque é que a Rússia, apesar de todas as ameaças e da retórica, teve cuidado para evitar algum tipo de ataque a um país da NATO, apesar de haver um conflito ativo junto à fronteira de vários países da NATO e de se saber que esses países estão a ter um papel muito importante no apoio ao esforço de guerra da Ucrânia”, diz Bruno Cardoso Reis.
Luís Tomé lembra que muitos criticaram Biden por ter assumido que os EUA e a NATO não iam fazer nada uma vez que a Ucrânia não era membro da NATO. No entanto, sempre disse que responderia a qualquer centímetro que a Rússia ousasse atacar em países membros da NATO. “A linha vermelha ficou traçada. É por isso que temos países neutrais que querem entrar na NATO. Consideram credível que, se houver uma agressão contra eles, a NATO responderá. Desse ponto de vista, não pode haver qualquer dúvida e, hoje, há menos dúvidas de que sim, a NATO reagiria, do que quando a administração Trump estava no poder.”
A ironia final: Putin fez mais pela coesão da NATO do que qualquer aliado
Para que o artigo 5.º fosse invocado, testando a união da NATO, era preciso que, primeiro, um dos aliados fosse atacado. Neste momento, o agressor mais provável é a Rússia. Mas seria Vladimir Putin capaz de atacar militarmente a Aliança?
“Raciocinamos na base de que a dissuasão nuclear, que funcionou durante a Guerra Fria, é suficiente para atores credíveis não arriscarem, ou sequer ponderarem, um cálculo errado que provoque o Holocausto”, defende Luís Tomé. “É evidente que russos, chineses, americanos e outros sabem que, começando um conflito militar direto entre Rússia/NATO, há o risco de escalar para todas as capacidades militares que têm. Isso significa o risco, não apenas de se destruírem mutuamente e à Europa, mas ao próprio planeta. Os EUA e a Rússia juntos têm capacidade para destruir o planeta não uma vez, mas 15 ou 16 vezes.”
É por isso que as mensagens dos EUA e da NATO têm sido muito fortes. Se Putin estiver convencido de que qualquer agressão que faça contra um país da Aliança irá dar origem a uma retaliação, correndo o risco de a Rússia ser destruída, mesmo que possa destruir o adversário, Luís Tomé acredita que o Presidente russo não o fará. “Da mesma forma, Putin tem sido muito enfático em dizer que qualquer envolvimento para lá daquilo que é admissível por parte dos EUA e da NATO na Ucrânia poderá levar a uma retaliação da Rússia, com todos os efeitos negativos que estão em causa.”
Na opinião do professor catedrático, é por isso que, quando os EUA e o Reino Unido entregam à Ucrânia sistemas de lançamento múltiplo de rockets, têm o cuidado de dizer que o alcance máximo é de 80 quilómetros e que o acordo é que esse armamento não seja usado contra o território da Federação Russa. “Exatamente para não dar pretexto a Putin para utilizar isso para escalar a guerra contra territórios da NATO onde estão a ser colocados estes dispositivos para depois entrar na Ucrânia”, concretiza.
O momento atual não é fácil. “A situação é bastante sensível e arriscada. É preciso muita racionalidade para evitar mal entendidos que podem ser uma catástrofe”, diz Luís Tomé, que acredita que há um risco real de avançarmos para uma guerra mundial se houver uma escalada na Ucrânia. Essa escalada poderá acontecer, na sua perspetiva, se a Rússia entender como ato de guerra a entrega de certo tipo de armamento na Ucrânia que seja usado contra o território da Federação Russa.
“Como ainda estamos neste patamar de escalada, não podemos pôr de parte o cenário de esta guerra, que por enquanto está limitada ao território da Ucrânia, se alargar a outras áreas. Ainda por cima, há um território russo separado do resto da Rússia geograficamente, Kaliningrado. Um incidente, ou ato propositado, pode fazer deflagrar reações, porque neste momento já ninguém tem margem para recuar. Se um caça de um país NATO abater um avião russo porque violou o espaço aéreo de um país aliado, como fez a Turquia em 2015 quando abateu aquele avião da Rússia, acho que dificilmente escaparíamos à escalada da guerra”, detalha Luís Tomé.
Finlândia garante que não aceitará bases militares ou armas nucleares da NATO
O contrário também é verdade. A Rússia, sentido-se acossada, pode sentir-se tentada a lançar mísseis estratégicos para certos paióis que estejam na Polónia e a NATO não pode deixar de responder, defende o professor. “Não tem margem para recuar. Da mesma forma que Putin não pode deixar de responder a algo que seja considerado mais hostil, porque também não pode perder a face. Como não há margem para recuar, estamos no limite dos riscos. É preciso muita racionalidade e tato para não dar pretexto.”
Esse, acredita Luís Tomé, é um dos motivos pelo qual a Ucrânia ainda não declarou guerra à Rússia, o que poderia levar Putin a fazer uma mobilização geral de tropas e a usar certo tipo de equipamentos que ainda não usou.
No final, a estratégia do Presidente russo equivaleu a um tiro a sair pela culatra. “Acho que essa é uma das ironias deste conflito. Putin tinha como grande objetivo enfraquecer, demonstrar a impotência, intensificar as divisões no seio da NATO, travar aquilo que ele chama a expansão da NATO e é exatamente o inverso que acontece. A NATO nunca esteve tão coesa, tirando aqueles picos de crise durante o período da Guerra Fria”, defende Bruno Cardoso Reis — apesar de continuarem a existir divergências entre os aliados, que sempre existiram e que vão continuar a existir.
“Há aqui uma enorme coesão, e o resultado mais provável, no curto prazo, é que haja um novo alargamento da NATO. Na Suécia e na Finlândia, países historicamente neutros, a opinião pública mudou completamente e, depois da invasão da Ucrânia, passou a achar mais vantajoso e mais seguro, em vez de confiar na neutralidade e nas garantias de segurança de Moscovo, serem membros da NATO e beneficiarem da garantia de segurança do artigo 5.º”, conclui Bruno Cardoso Reis.