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Dentro das hostes do Partido Democrata, a expectativa para este “Estado da União” — o terceiro e último deste mandato de Joe Biden — era elevada. Com as primárias republicanas a definirem-se e o cenário de um Donald Trump novamente candidato a consolidar-se, muitos à esquerda temem que o atual Presidente não se consiga descolar da imagem de impopularidade, alimentada pela perceção pública de que está demasiado velho para o cargo — opinião de 73% dos seus próprios apoiantes, de acordo com uma sondagem recente do New York Times.
No mês passado, vários governadores democratas pediram a Biden, numa reunião à porta fechada, que se mostre mais combativo em público. “Estado da União”, respondeu-lhes o Presidente, segundo conta a CNN.
E foi exatamente isso que Biden tentou fazer ao longo de uma hora e 13 minutos. O Presidente que falou ao Congresso foi aguerrido do início ao fim, lançando apartes aos congressistas republicanos, e não fugindo sequer do tema polémico da idade: “Ao longo da vida sempre me disseram que era muito novo, agora dizem que sou muito velho. Mas, novo ou velho, sei o que perdura: sei que como americanos somos todos iguais”, afirmou mais perto do final do discurso.
Horas antes do início do “Estado da União”, a Casa Branca dizia que o discurso não iria incluir o nome de Donald Trump. No final da noite, era evidente que essa foi apenas uma cortina de fumo: Trump não foi invocado pelo nome, mas o Presidente usou 13 vezes a expressão “o meu antecessor” — sempre para criticar as ações e afirmações do candidato republicano. Quem achava que Biden poderia ir à defesa para o ringue, estava enganado; o democrata escancarou mesmo as portas da campanha eleitoral, que só terminará a 5 de novembro.
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A mensagem para Putin, o recado a Netanyahu e as farpas a Wall Street
Apesar do atraso de 17 minutos, quando Biden chegou ao púlpito não perdeu tempo: a primeira parte do discurso foi inteiramente dedicada à guerra na Ucrânia e às críticas à Rússia de Vladimir Putin, deixando um apelo aos republicanos para que não travem os pacotes de financiamento a Kiev. “Se alguém acha que Putin vai parar na Ucrânia, garanto-vos que não vai”, alertou o Presidente. “A Ucrânia pode travar Putin se nos mantivermos ao seu lado e lhe dermos armamento.”
Biden usou o momento para deixar uma mensagem direta a Putin — “Não vamos fugir” — e outra indireta a Trump. Recordando como em tempos o Presidente Ronald Reagan pediu a Mikhail Gorbachev que derrubasse o Muro de Berlim, notou que os tempos no Partido Republicano agora são outros: “Agora o meu antecessor diz a Putin ‘Faça aquilo que entender'”, notou, classificando a frase de “ultrajante, perigosa e inaceitável”.
Mas os recados na política externa não se ficaram pela guerra na Ucrânia. Na fase final do discurso, o Presidente dos Estados Unidos aproveitou para falar da situação no Médio Oriente, tentando mostrar-se solidário tanto com os israelitas como com os palestinianos. Relembrou que o 7 de outubro foi “o dia mais letal para o povo judeu desde o Holocausto”, mas também assinalou que a atual invasão a Gaza “está a matar mais civis inocentes do que todas as guerras anteriores em Gaza em conjunto”. Disse que os membros do Hamas se escondem entre a população civil “como cobardes”, mas destacou que Israel “tem a responsabilidade de proteger civis inocentes em Gaza”. Anunciou, por isso, que os EUA irão estabelecer um porto temporário na costa do enclave para reforçar a ajuda humanitária.
A principal mensagem, porém, foi dirigida ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, com Biden a falar diretamente para “a liderança israelita”: “A assistência humanitária não pode ser uma preocupação secundária”, avisou em primeiro lugar. E, de seguida, veio o segundo recado: “A única solução duradoura é a solução de dois Estados.”
No plano interno, o Presidente aproveitou para fazer anúncios sobre o programa que pretende levar a eleições e que inclui, por exemplo, aumentos de impostos para os mais ricos e para as grandes empresas, com um aumento do imposto equivalente ao IRC para 21% e uma taxa mínima de IRS para os mais ricos de 25%. “Paguem apenas a contribuição justa”, pediu.
Mas o discurso serviu também para Biden se gabar dos bons resultados económicos alcançados durante a sua presidência, com destaque para os 15 milhões de novos empregos, a baixa taxa de desemprego, a maior cobertura de sempre de seguros de saúde e a descida da inflação. Reconheceu que “demora algum tempo até as pessoas sentirem isto”, mas garantiu que a sua prioridade é melhorar a vida do americano comum.
“Wall Street não construiu a América. Eles não são maus tipos, mas não construíram. Foi a classe trabalhadora”, sentenciou. E foi nesse momento que o Presidente aproveitou para invocar a tradicional frase que faz parte do discurso anual perante o Congresso: “É por vossa causa, do povo americano, que podemos dizer que o estado da nossa União é forte e está a ficar mais forte”, gritou Biden, a que se seguiram os gritos dos congressistas democratas pedindo “mais quatro anos”.
6 de janeiro, aborto e imigração. Biden enfrenta os fantasmas do “antecessor”
Mas se todos estes temas já eram esperados, a grande dúvida era até que ponto Joe Biden estava disposto a ir para confrontar diretamente o futuro adversário Donald Trump. E, aí, o discurso foi claro: o Presidente não poupou nos ataques “ao antecessor”.
Começando desde logo por ligá-lo diretamente ao ataque ao Capitólio de 6 de janeiro de 2021, que Biden classificou como “a maior ameaça à democracia americana desde a Guerra Civil”. “O meu antecessor e alguns de vós aqui querem enterrar a verdade sobre o 6 de janeiro, mas não vou permiti-lo”, prometeu. “Não se pode amar o nosso país apenas quando vencemos.”
Outro tema onde Biden tentou destacar-se face a Trump foi o aborto, culpando-o diretamente pela reversão da lei Roe v. Wade, determinada por um Supremo Tribunal agora com uma maioria republicana (e com muitos juízes nomeados por Trump). O democrata tinha certamente presente os estudos de opinião que dizem que 17% das mulheres com menos de 50 anos e 30% das mulheres negras consideram este o tema mais importante quando vão votar. Daí que tenha prometido voltar a instalar a Roe v. Wade e falado diretamente para os juízes do Supremo: “Com todo o respeito, senhores juízes, as mulheres têm poder político e eleitoral“, avisou.
A área onde o Presidente mais arriscou, porém, foi na imigração. Uma vez mais, as sondagens não estão a seu favor — um estudo da CNN de fevereiro dizia que só 30% dos americanos acham que Biden se está a sair bem neste tema —, mas o democrata insistiu que a proposta que os democratas têm apresentado na Câmara dos Representantes poderia responder a muitos dos anseios até de alguns republicanos. Biden sublinhou, por exemplo, que a proposta inclui “poderes de emergência para fechar a fronteira em caso de excesso de fluxo de migrantes”.
Foi também aqui que surgiu o momento mais tenso da noite, a que Biden reagiu com uma jogada arriscada. A congressista Marjorie Taylor Greene, conhecida pelo seu apoio a Trump e ligação a grupos como o QAnon, chamou-lhe repetidamente “mentiroso” e exigiu-lhe que gritasse o nome de Laken Riley, uma mulher assassinada recentemente por um imigrante ilegal venezuelano. Biden interrompeu o discurso, pegou no pin que Taylor Greene lhe tinha entregado quando entrou no Capitólio e disse: “Lincoln Riley, uma mulher que foi morta por um ilegal”, dizendo depois que compreende a dor dos pais dela.
A frase tem potencial explosivo: por um lado, o Presidente disse mal o nome da mulher em causa; por outro, usou o termo ‘ilegal’, detestado por uma parte da esquerda do Partido Democrata, que prefere “sem documentos”. O risco, contudo, pode compensar, se alterar a perceção junto de alguns eleitores de que Biden não se preocupa com o tema da imigração.
De qualquer das formas, Joe Biden usou os momentos seguintes para frisar as suas diferenças num dos temas mais polémicos da política norte-americana face a Donald Trump: “Não vou demonizar os migrantes e dizer que eles envenenam o nosso país. Não vou separar famílias. Não vou banir pessoas por causa da sua fé”, afirmou, referindo-se a uma frase já dita pelo republicano e a duas das suas medidas mais polémicas quando esteve no poder — a separação de menores dos pais na fronteira e a chamada muslim ban, impedindo a entrada de migrantes de alguns países de maioria muçulmana.”Esta é a América: todos vimos de algum lado, mas todos somos americanos.”
*Artigo atualizado às 16h do dia 8 para corrigir informação sobre o número de empregos criados: são 15 milhões e não 500 milhões