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As relações entre as pessoas ainda são o que eram? O que mudou em matéria de relacionamentos, neste tempo dominado pela tecnologia? E que novas necessidades e inquietações se fazem sentir? Dedicado ao tema Mais Perto, a quarta conversa Observamos Mais propôs uma reflexão sobre as relações humanas na era digital.
A sessão foi moderada pela jornalista Helena Garrido e contou com Rita Gomes, psicóloga e cofundadora da Offline House, uma guesthouse que oferece dias de detox digital em Aljezur, Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta familiar, e Cristina Velozo, cofundadora e presidente da Associação Boa Vizinhança, um projeto de engenharia social. Durante uma hora foram partilhadas opiniões e experiências sobre a importância das relações humanas na era digital e de que forma podemos ir ao encontro dos outros, na família, na comunidade e nos diferentes círculos sociais onde nos movemos diariamente.
O hotel onde os telemóveis não entram
Ao fazerem o check-in os hóspedes são convidados a deixar telemóveis, tablets e computadores em cacifos e só os usarem fora da casa. O Offline Hotel é um espaço de detox digital criado por Bárbara Miranda, arquiteta, e Rita Gomes, psicóloga, ao verificarem que uma boa parte da população vivia absorvida no mundo digital, não conseguindo desligar-se. “As pessoas tinham deixado de se olhar nos olhos”, observou Rita Gomes, sublinhando que a situação de dependência é “muito mais preocupante do que pode parecer à primeira vista”. Paradoxalmente, a tecnologia que nos permitiu ficar mais próximo quando estamos longe, está a deixar-nos mais longe quando estamos perto.
Com este conceito de pausa nas tecnologias, as duas sócias pretendem acautelar os comportamentos obsessivos e aditivos, “e que se volte a ganhar o controlo sobre o equipamento, em vez de nos deixarmos controlar por ele”.
A Offline House tira os gadgets, mas não deixa um vazio. O hotel, cuja atmosfera é de campo de férias, convida os hóspedes a entreterem-se com jogos de tabuleiro, música, passeios, aulas de surf e ioga… a parar e ficar mais perto de si e dos outros. Não há televisão, só um ecrã onde esporadicamente são passados filmes para ver e conversar sobre eles, sempre alusivos às atividades que se praticam na casa e à problemática do uso excessivo dos telemóveis (com ligação à Internet).
Quando abriu, esta guesthouse era procurada essencialmente pelas atividades lúdicas e desportivas que oferecia. Um ano depois, as pessoas vão propositadamente à procura desta “desconexão das tecnologias, para se focarem no momento, nelas próprias e no que está à sua volta”. Ficam mais perto de si próprias, da família e do outro. Relacionam-se, convivem, socializam e até fazem amizades.
Rita Gomes contou que até há quem tenha mudado o rumo à vida depois desta “desintoxicação digital”, sublinhando que as tecnologias, especialmente as redes sociais, “também nos distraem de nós próprios e do que queremos construir”.
Há um novo tipo de infidelidade no ar
Catarina Mexia começou por lembrar que, antes das novas tecnologias se instalarem, já havia uma velha tecnologia a minar o terreno das relações humanas: a televisão.
A história apenas se repete com os tablets e os telefones a concorrerem com a caixa que mudou o mundo, sublinhou a psicóloga, preocupada com o tempo que as crianças de 4 anos, por exemplo, passam em frente a estas tecnologias, numa fase das suas vidas em que “precisam de aprender a empatia, a olhar o outro e a porem-se no lugar dele”. Isso faz com que venham a desenvolver a necessidade que se vê atualmente nos adultos, de estarem sempre ligados ao equipamento e que é estimulada “pela urgência de satisfazer a curiosidade da novidade e da adrenalina que lhes vai sendo criada”.
Quanto aos casais, o sucessivo desinvestir na relação para investir na ligação com o resto do mundo veio tornar-lhes a vida mais difícil. Catarina Mexia explicou que o “espetro de infidelidades aumentou muito” nos últimos anos, tendo como objetos de traição o telemóvel e o computador. A vida das famílias que já “não comunicavam ou tinham dificuldade em fazer-se entender” também ficou mais complicada.
É importante largar os telemóveis e criar momentos privilegiados em família e em casal, entre outras coisas, “com atividades interessantes para todos e onde todos se sintam igualmente envolvidos”. Com este preenchimento positivo do tempo também não há lugar para sintomas de abstinência.
Não é possível voltar atrás no tempo. Ainda que pudéssemos, bem lá no fundo não queríamos tirar os gadgets da nossa vida. A era digital abriu portas nunca imaginadas. Trouxe-nos ferramentas notáveis que servem para aproximar as pessoas que estão longe, permitindo que comuniquem em tempo real. O que está em causa é o uso que se faz do equipamento, quanto do nosso tempo lhe dedicamos. É tudo uma questão de controlo.
A terapeuta terminou pedindo às pessoas que se aproximem umas das outras, pois “a riqueza das relações está na cumplicidade e na complexidade das mesmas, e não na simplicidade” das tecnologias.
A ajuda chega mais depressa pelas redes sociais
Cristina Velozo sustentou que a perda do sentimento de bairro é anterior à era digital, respondendo à questão colocada por Helena Garrido se o fim do sentimento de pertença, que ocorre nas comunidades, se ficava a dever à ligação excessiva das pessoas às novas tecnologias.
A Associação Boa Vizinhança, de que é presidente e cofundadora, veio contrariar a tendência para evitar e desconhecer os vizinhos que se fazia sentir na grande cidade e pôs os moradores da freguesia de Santo António, em Lisboa, a conhecerem-se e entreajudarem-se. Já ninguém está sozinho.
O projeto teve como objetivo inicial restaurar os vínculos entre as pessoas, criando o espírito de bairro e de cooperação. A ideia era “criar uma rede de quem tinha coisas a mais e de quem precisava de coisas” e suprimir as necessidades existentes. Com esta estratégia foi possível responder a carências de vária ordem, apoiando e inserindo as pessoas na comunidade.
Um dos grandes projetos continuados da associação é uma loja social que conta com cerca de 30 voluntárias “que, por sua vez, vão conhecendo e aproximando-se de outras pessoas da zona”.
Cristina Velozo revelou a sua máxima no Espaço Conversas Soltas Popular: “Aproximamo-nos das pessoas conhecendo-as.” E revelou-se “absolutamente fã” das redes sociais, sobretudo do Facebook – “É uma ferramenta fascinante em termos de boa vizinhança para dar resposta rápida às necessidades que aparecem”, disse.
A Associação Boa Vizinhança não teria a mesma capacidade que hoje tem se vivêssemos sem toda esta tecnologia. Por essa razão ainda, defendeu que a era digital “também aproxima as pessoas”, sendo o grande desafio saber tirar partido dela, usando-a a nosso favor.
https://observador.pt/videos/obs-eventos/observamos-de-mais-perto-para-ver-na-integra/
Esta foi a quarta conversa da série Observamos Mais, uma parceria entre o Observador e o Banco Popular. Em setembro vamos observar e partilhar experiências sobre Mais Educação.