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Uma escova de dentes de sonho

Sobre sucessos e fracassos, objetos que nos fazem sonhar, coisas viradas de cabeça para baixo, designers teatrais e escovas de dentes com guião. E sim, mais um artigo que fala de Philippe Starck.

Vou começar este artigo por pedir aos leitores que fechem os olhos e tentem lembrar-se das características de um objeto que já usaram hoje (espero): a escova de dentes. De que cores é a vossa escova de dentes atual? Qual é a marca? As cerdas da escova são todas do mesmo tamanho? Como é o cabo da escova, e como são as suas texturas?

Estas perguntas aplicam-se mais às escovas manuais, mas também fazem sentido para as escovas elétricas. Certo é que, ou muito me engano, ou não conseguirão responder a todas elas com grande detalhe. A escova de dentes é dos objetos mais invisíveis que usamos todos os dias. Ainda assim, mesmo que não se lembrem da vossa escova de dentes, é possível que acertem em algumas respostas, porque hoje em dia as escovas diferem muito pouco entre si. Por regra, têm cerdas em duas ou três cores frescas, sendo uma delas o branco e as outras, talvez, o azul e o verde. Têm um cabo esguio e ergonómico, com partes brancas e detalhes de cores garridas ou cinzento claro, com superfícies texturadas para maior adesão à mão. As escovas de criança variam mais porque têm de cativar um público normalmente pouco interessado em rotinas de higiene, e há alguns modelos mais retro em tons pastel ou de ar mais ecológico para adultos com mais preocupações estéticas ou ambientais. Mas a maioria das escovas de dentes tem um design muito semelhante, que se estabilizou nas últimas décadas.

Na verdade, no Antigo Egito já se faziam escovas de dentes desfiando-se as pontas de pequenos galhos de árvores. Conhecem-se também relatos vindos de territórios que hoje compõem a Índia e vários países muçulmanos, em que a higiene dos dentes com pedaços de madeira era descrita como sendo uma fase essencial de rituais religiosos e orações. Algures no séc. XV, os Chineses, que até aí também mastigavam pedaços de determinadas árvores, passaram a limpar os dentes com cabos esculpidos em bambu ou osso, onde encaixavam cerdas retiradas dos pelos duros dos porcos. Essa invenção chegou à Europa a partir do séc. XVII, onde as cerdas eram frequentemente substituídas por pelo de cavalo, mais suave. Mas só no fim do século seguinte é que foi criada a escova de dentes mais aproximada à escova atual. Diz-se que William Addis, um inglês que cumpria pena de prisão em 1770 por participar num motim, se lembrou de usar um pedaço de osso e de o perfurar na ponta, inserindo cerdas de porco. Depois de sair da prisão, Addis viria a desenvolver negócio fabricando escovas de dentes, negócio esse que prosperou, apesar de os hábitos regulares de higiene dentária só se terem consolidado depois da segunda grande guerra. A empresa de Addis, entretanto chamada de Wisdom Toothbrushes, ainda hoje fabrica escovas de dentes. No início do séc. XX, os cabos das escovas começaram a ser produzidos em celuloide e, com a invenção americana do nylon em 1938, passaram a ter cerdas sintéticas, estabilizando a morfologia fundamental da escova de dentes moderna. Ainda assim, só com a escova Reach, lançada em 1977 pela Johnson & Johnson, é que a escova de dentes ganhou o design mais ergonómico que conhecemos hoje.

Parece mais do mesmo, não é? Um inglês empreendedor, uma invenção americana, um design que se tornou tão universal e consistente que até tem um emoji facilmente reconhecível por todos. Um objeto que se difundiu de tal forma que hoje é um bem de primeira necessidade, disponível de forma relativamente indiferenciada em qualquer supermercado.

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Isto não significa, claro, que não existam escovas de dentes de autor. Eu sei que prometi falar de designs anónimos e invisíveis, mas quando designers conhecidos se cruzam com um objeto invisível é impossível ignorar. E, de facto, alguns dos chamados designers superstar, que trabalham para as grandes marcas multinacionais e que batizam as suas peças com nomes extravagantes, tentaram a sua sorte nas escovas de dentes. A Hay, por exemplo, marca de design dinamarquesa da moda que faz desde sofás a candeeiros a mantas, entrou há uns anos no mercado dos produtos de limpeza e higiene, e, além de esfregões da loiça trendy com sorrisos (a simpática Leo sponge, por um não muito simpático preço de 26 euros por quatro unidades), lançou produtos de higiene pessoal como a escova de dentes Tann, desenhada pelo conceituado designer Andreas Engesvik e fabricada pela Jordan. A Jordan é uma empresa especialista em artigos de higiene dentária, o que dá uma legitimidade, digamos, mais dentífrica ao produto. As escovas de dentes da Hay simplificam a forma e o design da escova, retornando às suas linhas clássicas, mas injetam-lhes cores pouco usuais, um pouco como já é tradição da marca. A Tann é toda de uma cor, cerdas incluídas. Há uma num tom de lavanda claro, outra num amarelo cheio e morno, outra num verde menta, outra num tom borgonha denso. São lindas, mas os 5 euros que cada uma custa (mais portes de envio) nem tanto.

Um dos primeiros designers superstar a desenhar escovas de dentes, se não o primeiro, foi Philippe Starck. No fim dos anos 80 do séc. XX, a Fluocaril, marca francesa conhecida de produtos dentários, contratou Starck, também ele francês, para desenhar uma escova de dentes. O resultado foi lançado em 1989, uma escova de dentes toda da mesma cor, cerdas incluídas, o cabo da escova semitransparente, uma forma fina e esguia. A escova, que foi produzida em cores variadas, encaixava de cabeça para baixo dentro de um recipiente cinzento, semelhante a um vaso invertido. O próprio Starck referiu que a intenção era olharmos para estas escovas de dentes, coloridas e alegres, e sentir a beleza que sentimos quando tomamos um banho relaxante com vista para um campo florido no Verão. Muitos viram na escova e na sua forma meia alada, além disso, uma escultura conhecida do escultor romeno Constantin Brancusi, de 1925, chamada Pássaro no Espaço. Judith Carmel-Arthur chegou mesmo a defender que este design de Starck trazia aos utilizadores mais eruditos e conhecedores de arte uma espécie de recompensa interior, por reconhecerem a carga referencial do objeto. Dez anos depois, Starck retornaria a este design para lançar com a Alessi, marca de design italiana, uma outra escova de dentes muito parecida, a Dr. Kiss. Uma escova também toda da mesma cor e fabricada nos mesmos materiais, também pousada de cabeça para baixo, com uma forma igualmente esbelta mas mais inclinada, parecida com uma pena dentro de um tinteiro. Curioso é o facto de o recipiente da Alessi onde assenta a cabeça da escova ser uma versão invertida do recipiente da Fluocaril.

"Muitos especialistas e historiadores do design apontam a cadeira como sendo o objeto que mais desafios traz, e que mais designers atrai. E é verdade que a cadeira, que tem sofrido incontáveis iterações desde o início dos tempos, é um dos objetos mais procurados no design. (...) Mas eu diria que o desafio maior não está aí. Está numa coisa tão discreta e tão invisível, mas ao mesmo tempo tão consistente e tão universal como uma escova de dentes."

As escovas da Fluocaril e da Alessi são lindas. São escovas de dentes de sonho, autênticas metáforas de nylon em que se imagina um perfume de menta fresca. Vejo, principalmente na escova da Fluocaril, e dependendo da sua cor, uma erva ondulante ou uma chama ardente, um objeto escultural. Não digo que estas escovas me excitem os neurónios enquanto hipotéticos referenciais à escultura de Brancusi, mas a verdade é que Starck conseguiu mudar o design da escova de dentes e torná-la num objeto que é mais do que a sua função.

Ainda assim, nenhuma das duas escovas teve um sucesso estrondoso. Nem sei se os leitores as conhecem, ou as reconhecem pela minha descrição. Aliás, estas escovas aparecem por vezes em sites que enumeram fracassos no design, apontando-se como causa do fracasso o facto de a cabeça da escova, onde estão as cerdas, ser mergulhada no dito recipiente. Sim, era um recipiente individual, que evitava a promiscuidade bacteriana de ter escovas de dentes aos beijos umas às outras dentro do mesmo copo no lavatório da casa de banho. Fora as escovas infantis que têm uma ventosa na base, as escovas de dentes sofrem deste problema de verticalidade necessária mas impossível, e de uma atração irresistível umas em relação às outras quando partilham a mesma casa. Stark resolveu esse problema com habilidade, mas havia um detalhe. No recipiente de Starck, por mais que se lavasse a escova de dentes, a cabeça da escova ficava a marinar em restos de água, pasta de dentes, saliva, restos de comida microscópicos e a certa altura fungos e outros seres vivos, coisa que ninguém deseja, deve dizer-se, para um utensílio que se volta a meter dentro da boca horas depois. Aliás, a ideia de virar a escova de cabeça para baixo dentro de um recipiente é sinistramente parecida com o funcionamento de um piaçaba, o que certamente não convoca os pensamentos mais higiénicos ao nosso subconsciente. O próprio Starck viria a desenhar mais tarde um aparelho eletrónico para higienizar a cabeça das escovas de dentes, o VIOlight Toothbrush Sanitizer & Storage System, onde a cabeça da escova encaixava num recipiente que não só guardava como desinfetava a escova. Na descrição deste novo produto dizia-se que as cerdas das escovas têm inúmeras bactérias provenientes dos resíduos dos nossos dentes e que devem ser higienizadas, o que acabava por ser um reconhecimento das fraquezas das suas escovas de dentes anteriores, viradas de cabeça para baixo.

Em 2008, numa entrevista, Starck anunciava num tom algo nietzschiano que o design estava morto e que tudo o que tinha criado era inútil. Dizia também que daí a 2 anos já não seria designer de produtos materiais, que se iria dedicar a conceitos. Mas aqui estamos nós, quase a acabar o ano de 2022, com mais um design de Starck acabadinho de chegar ao mercado, entre tantos outros a que se dedicou nos últimos anos. Não é mais uma escova de dentes, é uma máquina de café para a marca portuguesa Delta. Starck parece realmente gostar das coisas viradas ao contrário, porque esta máquina faz café de baixo para cima, naquilo que é publicitado como sendo um mecanismo “revolucionário” (a engenharia é da Delta, o design de Starck). Há até um vídeo promocional em que, com gestos teatrais, Starck usa as mãos em frente à máquina de café, a fingir que está a esconjurar um feitiço, ou a produzir um truque de magia, rodando os dedos como um ilusionista a tirar um coelho da cartola. De repente, começa a aparecer o café dentro da chávena, vindo de baixo. “If coffee goes up like that, then anything is possible”, escreve a Delta no site, citando Stark. Bem, até aqui tudo espetacular, não fosse o detalhe de o café ser feito de baixo para cima também nas cafeteiras de balão (se bem que depois desce outra vez). E, ainda mais comum, o café também vem de baixo para cima naquela clássica cafeteira italiana de três peças que todos conhecemos, feita de alumínio e de pega preta, desenhada por Bialetti em 1933, chamada la Moka. A nova máquina de café não tem assim grande novidade, portanto, quando anuncia fazer café de baixo para cima. E nem grande magia. Há quem diga que esta máquina da Delta é dirigida às nossas capacidades de sonhar e de nos espantarmos, mas não consigo ver essas qualidades no seu funcionamento. Aliás, para ser justa, não há cafeteira ou máquina de café que consiga chegar às minhas capacidades de sonhar e de me espantar, provavelmente porque, confesso, recorro a uma cafeteira ou máquina precisamente para obter o néctar escuro que me tirará do estado comatoso em que me encontro quando as uso (e que me devolverá as ditas capacidades).

Se o seu funcionamento não me espanta, também não encontro grande magia no seu design. Quando olho para ela, e sobretudo quando me lembro ao mesmo tempo do seu nome – Rise –, a sua forma em ovo bem fechada remete-me para uma espécie de último grito em potes de cinzas funerárias, em que carregando num botão far-se-á ascender a alma aos céus numa nuvem etérea, quando aquilo que procuro numa máquina de café é ascender ao mundo dos vivos numa nuvem aromática de café torrado. E como comparar aquela forma de urna com a beleza metálica facetada e elegante de uma Moka? No universo do café que vem de baixo para cima, como poderá essa máquina fazer esquecer, além disso, o perfume denso inconfundível que invade tudo quando se faz café numa cafeteira italiana ao lume? Aquele perfume que começa no cheiro do fósforo queimado, que é progressivamente misturado no aroma do café que começa a ganhar corpo, e que segundos depois ganha aquelas notas torradas que ficam no ar e que nos envolvem num abraço morno olfativo como um cobertor pesado e macio?

Eu sei, eu sei, a máquina da Delta é uma máquina de cápsulas e há coisas que não se comparam. Notem que estas linhas não são uma revisão de produto para a Deco nem um desincentivo à compra da máquina. Não a experimentei nem provei o café. Acredito que o café que saia desta máquina possa ser ótimo, e que seja realmente um mecanismo inovador para fazer café com cápsulas, que até agora só foram usadas em máquinas que fazem café de cima para baixo. E, para quem não for esquisito como eu com as coisas que pousamos em cima da bancada da cozinha, eu que jurei nunca comprar bimbys e outros robots de cozinha porque são feios, não haverá grande inconveniente em ter esta espécie de ovo de dinossauro polido ao pé da caixa do pão, que para muitos até será bonito. Mas não consegui deixar de me interrogar, quando vi a Rise, como podia o designer daquela escova de dentes dos anos 80, que é planta e pássaro e chama em fogo, ser também o designer desta máquina. Além de pensar em perguntas mais existenciais, que extravasam a máquina da Delta. Perguntas que, no fundo, se aplicam a qualquer produto novo que anuncie com a mesma pompa uma suposta aura única aspiracional que nos faz sonhar, como se não fosse mais do mesmo: era mesmo preciso inventar mais uma máquina de cápsulas de café descartáveis, que produzem mais lixo? E, além disso, era preciso inventar uma máquina que fizesse café de baixo para cima? E, mais, era preciso inventar uma máquina de café que precise de copos específicos que só funcionam com aquela máquina, obrigando os utilizadores a comprar objetos que só podem ser usados com aquele produto?

Não, não sou uma ativista extremista do design que precisa de encontrar uma emergência social e uma neutralidade ambiental em tudo o que é criado de novo. Também não acho que seja preciso voltar radicalmente aos princípios de Victor Papanek e à ideia de design social. Não defendo que os designers têm todos de se dedicar a conceber casas pré-fabricadas para refugiados, aspiradores de pó comunitários ou rádios feitos de lata, como aquele que Papanek criou. Não têm todos de fazer parcerias com a Ikea para pensar numa lâmpada que funciona sem eletricidade, para que todas as crianças possam estudar em casa. Há designers especulativos, há designers que criam efetivamente para sonhar, há designers que criam para a imaginação. Há designers que criam produtos luxuosos, intencionalmente extravagantes, apenas alcançáveis por uma margem muito reduzida da população (o chamado design para o 1%). Também Starck tem dedicado parte da sua produção criativa a esses designs de luxo, mas também disse, naquela entrevista de 2008, que tinha uma abordagem de Robin-dos-Bosques. Por exemplo, usava o design de iates para grandes magnatas como campo de testes para designs mais democráticos e universais. O design tem espaço para (e precisa de) todos esses designs e designers, mas tem sempre um sentido, um propósito. Só ainda não o encontrei nesta nova máquina de café.

Mas voltemos às escovas, que beber café é maravilhoso mas deixa os dentes amarelos. A máquina de café de Starck funciona bem (assim se espera, pelo menos) mas falta-lhe, a meu ver, um propósito. A escova de dentes de Starck, aquele poema bucólico-dentífrico em plástico e nylon, tinha um propósito, mas funcionava mal. Ainda assim, não estou convencida que o seu fracasso, tanto na versão da Fluocaril como na versão da Alessi, tenha sido exclusivamente causado pelo dito pântano de bactérias em que as escovas acabavam mergulhadas. Há aqui uma falha que é invisível, alguma coisa que o design não conseguiu resolver.

Há algumas explicações possíveis. A primeira é que o styling de Starck (styling porque Stark não modificou a escova de dentes na sua essência) pode ter ido demasiado longe para uma escova de dentes. Há designers, lembram-se, que criam produtos para sonhar (Starck tem muitos designs desses, por exemplo, a cadeira Louis Ghost, de que já falei nestes artigos, que é para mim um dos seus designs mais conseguidos). Percebo perfeitamente a intenção de transformar um objeto banal do dia a dia, que ainda por cima não é muito estético e serve uma função humilde, como uma escova de dentes, numa coisa mais inspiradora. A questão é que sonhar com campos verdejantes de ervas a abanar com o vento, ou com obras de arte do Modernismo, pode não ser a coisa mais óbvia, nem mais desejada, quando se vai lavar os dentes. Ou, pelo menos, não estamos todos dispostos a pagar mais por uma escova de dentes (claro, estas escovas eram mais caras) só para ter uma imagem campestre ou uma referência artística pousada no lavatório da casa de banho. Essa metáfora fica ainda mais complicada quando passamos para a escova de dentes em forma de pena para escrever, porque aí é apenas um trocadilho visual. É tudo muito bonito quando se pensa nos objetos e no seu design como alguma coisa que nos faça sonhar, mas há alguém que verdadeiramente encontre potencial aspiracional numa escova de dentes? Ou que queira comprar uma escova mais cara para se sentir inspirado enquanto remove dos seus molares os restos de comida do jantar?

Além disso, enchermos a casa cheia de símbolos, objetos que remetem para outros objetos, pode transformar-se não num sonho, mas num pequeno pesadelo pós-modernista. A Alessi, marca italiana de que já falei, é especialista nesta transformação poética de utensílios comuns, mas viver numa casa em que tudo é um símbolo, em que o saca-rolhas é uma imperatriz romana, o funil um Pinóquio de nariz de plástico, o porta-rolos uma cenoura, a lata do chá um circo veneziano às riscas vermelhas e a escova de dentes uma pena no seu tinteiro, pode tornar-se cansativo. A Alessi, devo dizer, fabrica o sugestivo piaçaba de Stefano Giovannoni, o Merdolino, conhecido pela sua forma cartoonizada de planta verde fluorescente envasada num recipiente cor de barro. E o Juicy Salif, o famoso espremedor de citrinos meio aracnídeo de Starck, que encontramos nas capas de metade dos livros sobre design que são publicados (e que só não dava outro artigo porque já toda a gente escreveu sobre ele). São todos exemplos desse design pensado para fazer “sonhar”. Aliás, a Alessi intitula-se “fábrica dos sonhos”, agarrando-se a essa narrativa de inspiração e à necessidade humana de felicidade, arte e poesia (palavras que se podem ler no site da marca).

"O facto de as escovas de dentes não serem campos férteis para novos estilos não significa, claro, que não sejam vítimas de uma constante sede em inovar, como acontece com qualquer produto. Basta olharmos para as escovas no supermercado, asfixiadas dentro de uma forma de plástico transparente colada a um cartão colorido, normalmente em tons de azul e verde, ou vermelho e azul, com letras brancas."

Perguntarão os leitores, alguns decerto a olhar para o seu ralador, que é ao mesmo tempo uma boneca cuja saia metálica cónica rala queijo e chocolate: há algum problema em ter objetos simbólicos? Nenhum. Eu também tenho um desses raladores, que aliás foi batizado com o nome de uma pessoa amiga da família. Mas nem todos os objetos que possuímos funcionam bem por baixo de uma camada material de significado que não lhes pertence. Sobretudo na casa de banho, que normalmente usamos para tratar de necessidades fisiológicas e higiénicas e não para contemplação lírica (com todo o respeito por quem faz dela esse uso – ou outros). E, sobretudo, quando estão em causa objetos consumíveis e descartáveis. A escova de dentes é um objeto que dura pouco tempo e que substituímos com regularidade (supostamente). Não criamos ligações emocionais com escovas de dentes, até porque daí a uns meses vai para o lixo. Uma escova de dentes não é a jarra antiga que a avó nos deixou, ou aquele candeeiro caro que comprámos com o nosso primeiro ordenado para por ao pé do sofá. Todos (ou muitos de) nós temos o hábito ligeiramente sinistro de guardar os dentes de leite dos nossos filhos, mas não guardamos as suas primeiras escova de dentes. Os designers de escovas de dentes comuns, daquelas que compramos no supermercado, sabem que os utilizadores não se afeiçoam a estes objetos, e por isso investem pouco em romantizar o seu aspeto estético ou em torná-los em objetos mais empáticos.

O facto de as escovas de dentes não serem campos férteis para novos estilos não significa, claro, que não sejam vítimas de uma constante sede em inovar, como acontece com qualquer produto. Basta olharmos para as escovas no supermercado, asfixiadas dentro de uma forma de plástico transparente colada a um cartão colorido, normalmente em tons de azul e verde, ou vermelho e azul, com letras brancas. Todas elas estão cobertas de exclamações enfáticas que anunciam inovações imperdíveis, muitas vezes conjugadas com palavras em inglês para dar um ar mais técnico (Triple Action, Shiny Clean, 3D White, Extra Clean, Repair&Protect), mas em relação às quais ninguém está verdadeiramente interessado. No fundo, só queremos lavar os dentes, e não nos interessa muito que exista uma nova tecnologia de prevenção da formação de placa, uma nova forma de acesso aos espaços interdentais, um novo cabo altamente ergonómico (não são todos, hoje em dia?) ou um design especialmente desenvolvido para a limpeza completa da boca. Mais recentemente, e depois de a preocupação ambiental ter chegado às escovas de dentes, algumas escovas começam também a anunciar timidamente serem feitas de materiais reciclados, e outras a promover inovações como cabeças removíveis. Seja como for, a abordagem é inequívoca: são maioritariamente inovações tecnológicas ou ambientais, não estéticas. O design constante das escovas de dentes permanece forte e saudável, e imune às investidas criativas (e muitas vezes sacarinas) dos designers superstar.

Assumir que as escovas de dentes também podem fazer sonhar não será por isso a estratégia mais feliz quando se desenha uma escova, mas há outra razão possível para o fracasso do design superstar das escovas de dentes, seja da Alessi, da Hay ou de outra marca similar. Madeleine Akrich, conhecida socióloga francesa especialista em tecnologia, concebeu um método de análise dos “guiões” dos objetos (script analysis), que aplicou nas suas investigações sociais sobre ciência e tecnologia. Levado ao campo da história do design, este método permite extrair dos próprios objetos o seu manual de instruções implícito, nele injetado pelo designer ou fabricante, e dirigido ao utilizador. Ou seja, permite ler nos próprios objetos, na sua materialidade, as mensagens que o designer ou o fabricante quiseram que ele passasse ao utilizador, não só sobre a forma como ele funciona e deve ser utilizado (o guião físico) mas também sobre o que ele significa (o guião técnico-social). Tais guiões podem depois ser seguidos pelo utilizador, que os subscreve (subscription), mas que também pode simplesmente não segui-los, de subscrevendo-os (de-inscription).

Ora, a escova de dentes, enquanto objeto, tem um guião muito fechado, estável e consistente, que dificilmente os designers conseguem reescrever (ou reinscrever). Para começar, o guião técnico-social impregnado nas escovas que vemos nos supermercados mostra-nos como a marca da escova pode influenciar a confiança que o utilizador comum tem na sua eficácia, uma vez que este tende a escolher marcas especializadas em higiene dentária e menos marcas que produzem, além das escovas, candeeiros, tapetes e mesas de design. Deve dizer-se, aliás, que esta transferência de áreas de especialidade, ou tentativa de diversificação de produto, às vezes corre mal: um dos outros exemplos de escola de design fracassado é precisamente um conjunto de refeições prontas congeladas lançadas pela Colgate há uns anos. Sim, pela Colgate, mesmo logotipo e tudo, o que torna impossível não sentir um leve travo a fluor quando se pensa na lasanha.

Mas o guião físico das escovas de dentes é o mais relevante. As zonas ergonómicas mostram como segurar de forma correta na escova, as rugosidades indicam onde por os dedos. As cores numa escova de dentes têm as suas próprias mensagens, porque mostram onde agarrar e fazer pressão e, quando aplicadas nas cerdas, mostram as diferentes funções de cada zona da cabeça da escova. Quando são compradas em pacotes de três ou quatro, vêm normalmente em cores diferentes, para que cada pessoa possa identificar a sua escova. Algumas mudam de cor quando já estão gastas e a precisar de serem substituídas, ganhando ação. E outras, as escovas elétricas, têm temporizadores ou podem ser ligadas a apps que monitorizam os nossos hábitos de escovagem – o objeto deixou de conter apenas mensagens do seu designer para ganhar vida e comunicar diretamente com o seu utilizador.

Na realidade, o guião escondido em cada escova de dentes tem uma importância maior do que em muitos outros produtos. Quando os designers mexem nos guiões das escovas de dentes podem estar a mexer também nas mensagens que os utilizadores já subscreveram e consolidaram sobre como se deve lavar os dentes. E essas mensagens são importantes, porque nelas está inscrita a forma que se considera correta de fazer a higiene dentária. Se não segurarmos bem numa caneta, se não seguirmos o seu guião, podemos ainda assim conseguir escrever com ela. Mas se usarmos mal uma escova de dentes, se não subscrevermos as mensagens que ela nos transmite, podemos ficar com cáries. Mudar as mensagens que estão escondidas numa escova de dentes não é fácil, e explica, pelo menos em parte, por que razão as escovas de dentes permanecem muito iguais umas às outras – e seguem praticamente o mesmo guião.

Muitos especialistas e historiadores do design apontam a cadeira como sendo o objeto que mais desafios traz, e que mais designers atrai. E é verdade que a cadeira, que tem sofrido incontáveis iterações desde o início dos tempos, é um dos objetos mais procurados no design. Não haverá designer que se preze que não tente a sua sorte com uma cadeira. Mas eu diria que o desafio maior não está aí. Está numa coisa tão discreta e tão invisível, mas ao mesmo tempo tão consistente e tão universal como uma escova de dentes.

Para terminar, tenho de dar o devido crédito a quem insistentemente me sugeriu escrever sobre escovas de dentes, argumentando tratar-se de um objeto que todos usamos, todos os dias, sem lhe dar muita atenção. Do alto da sua meia dúzia de anos, a minha filha mostrou-me um objeto que até essa altura também estava invisível aos meus olhos (mas juro que lavo os dentes todos os dias). Talvez porque, para ela, uma escova não seja assim tão invisível, ou não andasse eu atrás dela para lavar os seus dentes, recebendo em troca um revirar de olhos. Mas prefiro pensar que é porque tenho em casa uma pequena materialista, uma pessoa pequenina atenta ao mundo que a rodeia e à importância que as coisas que criamos e usamos têm nas nossas vidas. Uma pessoa que tenho de subornar com escovas de dentes cor de rosa cheias de princesas que a fazem sonhar, mas que vive com os pés bem assentes na terra (e sem cáries).

Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.

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