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O maior exercício militar da História da NATO desde o fim da Guerra Fria. É isso que está a acontecer numa área que vai dos Bálticos à Polónia, passando pela Alemanha, desde o início deste mês e até ao final de março. Ao todo, 90 mil soldados participarão na Steadfast Defender, a operação que contará com unidades dos 31 Estados-membros da Aliança Atlântica, a que se junta a Suécia — ainda à espera da luz verde final por parte da Hungria para se tornar membro pleno do grupo.
Do outro lado desta “guerra imaginada” está aquele que é o mais provável inimigo em caso de confronto real: a Rússia, a liderar uma coligação de países a que a NATO deu o nome de “Occasus”, num cenário em que a nação liderada por Vladimir Putin decide ir além da Ucrânia e invadir território da União Europeia (UE).
É “a reconstrução de um músculo que não era exercido há três décadas”, nota ao Observador Rafael Loss, investigador do think tank Conselho Europeu para as Relações Internacionais (ECFR na sigla original). “Organizar e conduzir operações de larga escala é um esforço extremamente complexo. No meio de uma crise, toda a gente — soldados, comandantes, líderes — precisam de saber como fazer o seu trabalho e isto exige treino.”
Um treino que é, neste momento, mais necessário do que nunca, avisa Christos Katsioulis, diretor do organismo alemão Friedrich-Ebert-Stiftung: “Há décadas que não vivemos uma situação tão arriscada na Europa.” E a NATO, diz, é o instrumento possível para “sinalizar a Moscovo” que os europeus estão alerta e para acalmar os países do leste da Europa, que fazem fronteira com a Rússia.
Líderes europeus alertam para possibilidade de ataque russo. Previsão realista ou estratégia política?
A escalada bélica tem sido acompanhada na retórica. Ao longo das últimas semanas, vários líderes políticos e militares por toda a Europa se têm desdobrado em alertas para o maior risco de uma guerra em solo da União. O Almirante Rob Bauer, da NATO, declara que “a paz não é um dado adquirido”. A primeira-ministra da Estónia, Kaja Kallas, diz que a Europa tem entre três a cinco anos para se preparar para um ataque vindo do leste. O principal responsável militar da Roménia, Gheorghiță Vlad, afirma que se Putin vencer na Ucrânia, a Moldávia será o próximo alvo militar do Kremlin.
E os alertas não chegam só dos países mais a leste. Em Estocolmo, o ministro da Proteção Civil é taxativo: “Pode haver uma guerra na Suécia”. E Boris Pistorius, atual ministro da Defesa alemão, também faz soar os tambores: “Podemos estar a enfrentar perigos no final desta década”, diz. “Temos cinco a oito anos para recuperar, relativamente às Forças Armadas, à indústria e à sociedade.”
A guerra na Ucrânia, que decorre desde 2022, mudou todo o enquadramento mental dos europeus, nota a investigadora em política de segurança europeia Minna Ålander: “A Rússia usou os dois anos de guerra de forma eficiente em termos de criar uma economia de guerra e produção de armamento”, diz a especialista do Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais. “Já não parece inimaginável que a Rússia se sinta empoderada para atacar a NATO, tendo em conta como o seu ataque à Ucrânia também se baseou numa má avaliação.”
Ionela Ciolan, do Wilfried Martens Centre for European Studies, dá um exemplo prático: “O Kremlin está a planear alocar 6% do seu PIB à Defesa em 2024 e aumentar o número de soldados para 1,3 milhões, o que é sinal de que se está a preparar para uma guerra prolongada.” E o risco para a Europa parece ser independente do resultado da guerra na Ucrânia, acrescenta Rafael Loss: “Uma vitória insuflaria Putin; uma derrota pode torná-lo ainda mais temerário.”
Apesar de essa ser uma possibilidade, Christos Katsioulis, contudo, considera que as lideranças europeias deveriam estar mais focadas em discutir o apoio à Ucrânia do que um possível ataque russo à UE. A principal razão para esta sucessão de avisos catastróficos, diz, está mais relacionada com uma pressão política para tentar aumentar os orçamentos militares: “Muitos países europeus, a Alemanha entre eles, vão enfrentar em breve um debate a que podemos chamar ‘Armas ou Manteiga’. Ou seja: em tempos de pouca riqueza, ou se financia mais a Defesa ou as áreas sociais. Estes avisos são um instrumento para aumentar os gastos na Defesa, sugerindo que um ataque russo pode estar iminente.”
Seja um ataque iminente ou uma possibilidade mais distante, a verdade é que o debate sobre como os países europeus devem montar a sua Defesa começa a impor-se em Bruxelas e em capitais europeias como Berlim e Paris, deixando de ser um exclusivo de Polónia, Roménia e Bálticos. Com o início da invasão da Ucrânia, a grande maioria dos países europeus reagiram rapidamente: impuseram sanções à Rússia, tentaram substituir a energia vinda do país e reforçaram os orçamentos militares.
Atualmente, as previsões indicam que, em 2024, 19 dos 31 Estados-membros da NATO atingirão o objetivo propagado há uma década de 2% do PIB em gastos com a Defesa. Em 2026, esse número deverá chegar aos 24. Ionela Ciolan, que estuda a NATO, diz que, tendo em conta as circunstâncias atuais, os 2% já não devem ser encarados pelos países “como um ponto de chegada, mas antes como um ponto de partida”.
Líderes como Emmanuel Macron — que há muito defende a necessidade de uma “autonomia estratégica” por parte da Europa — e Olaf Scholz — que anunciou uma viragem total da política externa alemã na sequência da guerra, a Zeitenwende — têm sublinhado que esses aumentos, por si só, não chegam. Esse é um discurso que, diz Minna Ålander, já é familiar para os finlandeses e para polacos, estónios, lituanos e letões e que está agora a alastrar-se: “Só agora é que a Europa Ocidental está a começar a perceber que os dividendos de paz do pós-Guerra Fria podem bem ter sido uma anomalia histórica e não um novo estado permanente.”
“A NATO está morta”, disse Trump. E se ele for novamente Presidente?
O aviso mais taxativo dos últimos tempos veio precisamente do coração da Europa, diretamente de Bruxelas: Manfred Weber, líder do Partido Popular Europeu, afirmou, numa entrevista ao Politico no final de janeiro, que a Europa tem de estar preparada para a possibilidade de vir a enfrentar uma guerra sem o apoio dos Estados Unidos: “Como político europeu, quando olho para o ano que aí vem, a primeira coisa que me vem à cabeça é Trump”, disse, referindo-se à possibilidade de o antigo Presidente norte-americano voltar a ser eleito. “Queremos a NATO, mas também temos de ser suficientemente fortes para nos defendermos sem ela ou em tempos de Trump.”
As eleições norte-americanas de novembro trazem de novo à tona as memórias de quando Donald Trump ameaçou não cumprir o Artigo 5.º do Tratado da NATO (que sentencia que um ataque a um aliado é um ataque a todos), por considerar que os europeus deveriam contribuir mais para a sua própria Defesa. O comissário europeu do Mercado Interno, Thierry Breton, recordou no mês passado uma conversa entre Trump e a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, em 2020: “Se a Europa for atacada, nunca viremos em vosso auxílio. E, já agora, a NATO está morta e nós vamos sair dela”, terá dito Trump.
O impacto de uma retirada norte-americana da Aliança Atlântica na Europa seria imenso: só neste momento, há 100 mil soldados norte-americanos em território europeu, de prontidão. Os planos de prontidão da NATO prevêm que mais se juntassem em caso de ataque a um país europeu.
Oficialmente, Trump é atualmente vago sobre este tema. “Devemos completar o processo que iniciámos durante a minha presidência de rever o sentido e a missão da NATO”, pode ler-se no site da campanha do antigo Presidente. Mas a maioria dos conselheiros que durante o primeiro mandato de Trump fizeram força para que o Presidente não abandonasse a Aliança já não estão com ele, nota a colunista Anne Applebaum. “Os danos que ele causou no primeiro mandato são reparáveis”, disse-lhe o antigo conselheiro John Bolton. “Os danos do segundo serão irreparáveis.”
Mas os especialistas ouvidos pelo Observador consideram que os europeus devem pensar em assegurar a sua Defesa sem contar com os norte-americanos mesmo que Trump não seja reeleito. “O Congresso está a tentar adotar medidas preventivas para que um futuro Presidente não possa sair unilateralmente da NATO e não creio que acontecesse de imediato se ele fosse reeleito. Mas ele poderia à mesma infligir grandes danos”, reconhece Ålander. Mas “o risco de os EUA se tornaram mais isolacionistas vai para lá do regresso dele, por causa da dinâmica interna do Partido Republicano”, a que se soma a multiplicidade de focos de tensão mundiais, como o Médio Oriente e o Indo-Pacífico.
Rafael Loss também considera que há o risco de “uma simples declaração ou tweet” de Trump minarem a NATO, o que poderia levar Putin “a decidir testar a unidade da Aliança numa situação dessas”. Mas o analista concorda que os riscos vão além do ex-Presidente: “Mesmo com um Presidente pró-europeu na Casa Branca, os EUA vão continuar a ver a China como a principal ameaça e a deslocar mais recursos e atenção para o Indo-Pacífico. De uma forma ou de outra, os países europeus da NATO têm de assumir a responsabilidade de defender o seu próprio continente.”
O “ponto de viragem” histórico da Alemanha
Olaf Scholz anunciou-a como um Zeitenwende: o ponto de viragem de uma época. Foi assim que, no ano passado, o chanceler alemão descreveu a nova política de Defesa da Alemanha, começando por garantir o compromisso de 2% do PIB e um investimento extra de 100 mil milhões de euros para adquirir armamento.
A par da sua mudança na política externa, na sequência da guerra na Ucrânia, é todo um programa novo face à postura até aí adotada pelo país na sequência da II Guerra Mundial. Como descreveu o Instituto Finlandês de Assuntos Internacionais, a Alemanha transformou três dos seus pilares de política externa: é o fim da “diplomacia primeiro”, do “nunca mais à guerra” e, por fim, do “não avançar sozinho”.
Christos Katsioulis, que dirige uma ONG alemã, não tem dúvidas em admitir que esta é “uma enorme mudança”: “Os gastos com a Defesa aumentaram e o reforço do Bundeswehr [Exército alemão] começaram, devagar, mas metodicamente; o governo alemão é o maior apoiante da Ucrânia, não apenas financeiramente, mas com armamento — o que era impensável há três anos; e há uma nova linguagem, com o ministro da Defesa a dizer que o país tem de estar ‘preparado para a guerra’.”
A mudança, contudo, é lenta. “Com a Alemanha a fornecer armas à Ucrânia, não tem sido capaz de substituir os seus próprios stocks”, nota Minna Ålander. “Há incertezas sobre o financiamento futuro, para quando o fundo especial terminar. E o sentimento de urgência começa a desvanecer, razão pela qual o ministro da Defesa tem usado uma linguagem mais provocatória, para alertar os alemães.”
O apoio popular a um aumento na Defesa é fulcral, particularmente numa fase em que, como relembrou Katsioulis, muitos podem preferir alocar esses fundos em apoio social e em que o atual governo é muito impopular. As sondagens notam que 69% dos alemães são favoráveis ao aumento do orçamento da Defesa para 2% do PIB, por um lado; por outro, 71% dizem-se contra a ideia de a Alemanha assumir um papel de liderança militar na Europa.
A todos estes constrangimentos junta-se o facto de que gastar mais não significa automaticamente melhores resultados, como lembra Katsoulis: “O que é preciso não são necessariamente mais gastos, são gastos mais inteligentes”. Isto porque os países europeus enfrentam as enormes diferenças em termos de equipamento entre si, o que aumenta o risco de “duplicação” e “falta de operacionalização”. Um levantamento da Fundação para os Estudos Progressitas Europeus nota, por exemplo, que, entre os países que são simultaneamente Estados-membros da UE e da NATO (que são 23), há “12 tipos diferentes de tanques, 16 tipos diferentes de aeronaves de combate, 15 modelos diferentes de aeronaves de transporte e 12 tipos diferentes de submarinos”.
A isto junta-se o problema da possível falta de soldados em caso de um conflito armado — já que a maioria dos países abandonou o serviço militar obrigatório — e de material. “Se rebentar aqui uma guerra, ao fim de poucas horas temos de atirar pedras, porque já não temos munições”, avisou um antigo general belga, Marc Thys, recentemente. Ideia reforçada por Patrick Sensburg, responsável oficial pelo treino de reservistas na Alemanha: “No outro dia, os reservistas fizeram o exercício de montar um posto de controlo. Um deles contou-me depois que parecia o parque de estacionamento do Lidl, porque tiveram de usar os carros privados deles. Vladimir Putin pode ter ideias estúpidas ao ver que só um em cada dez dos nossos reservistas tem uma arma.”
França oferece o seu poder de “chantagem nuclear”
E se a Alemanha continua hesitante em assumir um lugar de liderança na área da Defesa europeia, a França parece preparada. Há anos que Emmanuel Macron tem alertado para essa necessidade, tendo dito em tempos que a NATO estava em “morte cerebral”. Em 2020, chegou a relembrar que o seu país é o único da UE (desde o Brexit) que tem armas nucleares e ofereceu-se para discutir um modelo em que estas pudessem ser colocadas ao serviço de toda a UE.
Agora, Manfred Weber resgata essa proposta, dizendo que é tempo de internacionalizar a “force de frappe”: “Devíamos aceitar a oferta de Macron e pensar como podemos incorporar o armamento nuclear da França nas estruturas europeias.”
A ideia tem o apoio dos aliados mais improváveis, como Joschka Fischer, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros alemão no governo de Gerhard Schröder e membro dos Verdes: “O mundo mudou, Putin também usa a chantagem nuclear”, justificou-se numa entrevista em novembro passado ao Die Zeit. Na Alemanha, a ideia começa a ser ponderada, como confirmou um diplomata do país ao mesmo jornal.
Isso poderia ser colocado em prática de duas formas, resume Ionela Ciolan: com a criação de uma agência europeia para gerir o armamento nuclear ou através de acordos bilaterais entre França (e Reino Unido) com outros países europeus. Mas nem todos os especialistas ouvidos pelo Observador concordam que esta seria uma ideia útil: “Nem a França nem o Reino Unido conseguem substituir o guarda-chuva nuclear dos Estados Unidos”, avisa Rafael Loss. “E também suspeito que os países europeus que assinaram o Tratado de Não-Proliferação — Áustria, Irlanda e Malta — rejeitariam.”
Katsoulis, da Friedrich-Ebert-Stiftung, é ainda mais taxativo: “Para mim, este é um exemplo claro de como esta discussão não é tanto para melhorar a situação, mas para os líderes se fazerem ouvir”, lamenta, acrescentando que tem “hesitações” relativamente ao armamento nuclear. “Quem iria ser responsável por carregar no botão? A ideia do armamento nuclear não é a de o usar, é a de o ter para dissuasão. Mas isto só funciona se houver uma cadeia de comando clara em caso de ataque”, afirma, destacando que dificilmente a França “abdicaria da sua soberania sobre este tipo de armas”.
Além disso, acrescenta o investigador, “a UE defende uma ordem internacional baseada em regras. Mesmo que esta esteja a colapsar, a não-proliferação [de armamento nuclear] é um dos pilares desta ordem. Vamos começar nós a quebrar as regras?”
Junto à fronteira, falta “confiança” em Berlim e Paris
Com Alemanha e França sem trajetórias claras nesta matéria, sobra Bruxelas para tentar indicar um rumo, mas até aí há limitações. Apesar da criação de instrumentos como o Compasso Estratégico (que define uma estratégia ao nível das relações externas da União), a coordenação de gastos militares (atualmente a ser discutida) e a criação de uma Força de Destacamento Rápido comum, a verdade é que a União continua a ter dificuldades em ditar o rumo na área da Defesa quando tem de conjugar as vontades de 27 Estados-membros (alguns não fazendo parte da NATO) e todas as decisões de política externa têm de ser tomadas por unanimidade.
Perante a ascensão de uma Rússia com ímpetos imperialistas, países como a Polónia, os Bálticos, a Roménia e até a Finlândia assumiram lugar de destaque — e não são os únicos, com os Países Baixos a oferecerem F-16 à Ucrânia, por exemplo. Estamos a assistir, diz Ionela Ciolan, a “uma mudança do eixo geopolítico da Europa para a Europa Central e de Leste”. “Numa mudança face à História recente, uma região que era tradicionalmente vista como beneficiária da segurança de outros demonstrou a sua capacidade de se transformar em fornecedora de segurança”, resume.
Só que o centro do poder político e económico na UE ainda continua em duas capitais principais: Berlim e Paris. “Houve alguma desilusão [por parte de alguns países] com a lentidão da reação inicial da Alemanha e os esforços iniciais de mediação com a Rússia de Macron”, reconhece Ålander, que vive num desses países que faz fronteira com a Rússia de Putin. “A situação melhorou entretanto, mas continua a haver a sensação de que a Alemanha e a França não sentem a mesma urgência que os países que vivem perto da Rússia.” Christos Katsioulis concorda: “Não acredito que os países do centro e leste da Europa tenham o mesmo nível de confiança em Berlim ou Paris que têm nos EUA”.
Porque, independentemente de orçamentos, armamento e número de soldados disponíveis, qualquer resposta europeia a um possível ataque russo assenta sobretudo no mesmo princípio que regula a ação da NATO: a de que os aliados responderão imediatamente. “Não podemos planear uma Defesa conjunta se não confiarmos uns nos outros”, resume o investigador. “E uma confiança estável e a longo-prazo precisa de ser construída e merecida.”
*Artigo atualizado às 12h do dia 7 de fevereiro. Ionela Ciolan trabalha atualmente no Wilfried Martens Centre for European Studies e não no European Policy Center