Ela está em todo o lado, e os programas dos partidos às eleições legislativas de 10 de março também não lhe escaparam. São várias as forças políticas que, de uma forma ou de outra, abordam o impacto e as consequências da Inteligência Artificial (IA), que tem estado no centro das atenções, sobretudo após o lançamento de ferramentas de IA generativa que conseguem produzir textos e imagens. O Observador examinou os programas dos principais partidos que vão a votos a 10 de março e até ao domingo das legislativas vai dissecar uma proposta por dia.
Entre várias medidas e propostas nos programas eleitorais ligadas à área do digital e da tecnologia, a Aliança Democrática (AD) e o Livre têm um ponto em comum: defendem a necessidade de ajustar os direitos de autor à nova era do digital, em que os grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT, geram desafios adicionais.
O que defendem a AD e o Livre?
Tanto a AD como o Livre inscrevem nos seus programas eleitorais a medida ligada à salvaguarda dos direitos de autor na área da cultura. No programa do Livre, é usada uma designação ligeiramente diferente, numa categoria chamada “Contrato com o Futuro – Cultura e Arte”.
A AD propõe “ajustar os direitos autorais às novas realidades digitais, nomeadamente, no que diz respeito à inteligência artificial”, é possível ler no programa. Já o Livre especifica que quer “apoiar o setor do livro perante o desafio da AI”, propondo que exista “no setor editorial e livreiro a regulação e transparência no uso de IA generativa, indicando a fonte e recolha de dados usados para o seu treino”. Especificamente na questão dos direitos de autor, a proposta especifica que pretende “salvaguardar os direitos de autor no treino dos modelos de linguagem”. No entanto, nenhum dos partidos avança com linhas de ação mais concretas sobre estes planos.
Qual é o contexto desta medida? Que desafios traz a IA aos direitos de autor?
O ChatGPT, que foi disponibilizado para uso generalizado do público em novembro de 2022 pela OpenAI, tem a capacidade de gerar texto a partir de um pedido muito simples. Desde então multiplicaram-se os rivais (a Google tem o Gemini, por exemplo) e aumentaram as experiências em que se pede ao modelo de linguagem da empresa californiana para escrever um texto como se fosse William Shakespeare ou Margaret Atwood. Passados pouco mais de três meses desde o lançamento do ChatGPT, a gigante de comércio eletrónico Amazon já registava pelo menos 200 livros escritos com recurso ao ChatGPT, levantando-se dúvidas sobre os direitos de autor das obras.
Para conseguir aprender a imitar determinados autores, os modelos de IA tiveram de aprender o estilo da pessoa. Embora empresas como a OpenAI digam que recorrem a informação pública disponível online para esse treino, a questão dos direitos de autor tornou-se um tema sensível. A nível internacional, já foram feitas cartas abertas, uma delas assinada por mais de 15 mil escritores, para alertar para a “injustiça da exploração” de obras literárias sem qualquer tipo de remuneração. “Estão a gastar milhares de milhões de dólares para desenvolver tecnologia de IA. É apenas justo que nos compensem pelo uso da nossa escrita, sem a qual a IA seria banal e extremamente limitada”, foi possível ler numa carta aberta dirigida aos líderes de empresa de IA.
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Também já houve casos que evoluíram para processos em tribunal – por exemplo, nos últimos dias de 2023 o jornal New York Times avançou com um processo contra a OpenAI e a Microsoft pelo recurso a notícias para treinar os modelos.
Ao Observador, o presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) vê com bons olhos a existência de medidas viradas para a proteção dos direitos de autor no âmbito da IA. “Sabemos que existem arquiteturas abertas que alimentam estes sistemas com obras literárias inteiras — e se o fazem têm de proceder ao respetivo pagamento de direitos de autor, dos direitos editoriais”, explica Pedro Sobral.
O presidente da APEL reconhece que na União Europeia está a ser desenvolvido o AI Act, o primeiro quadro regulatório para a inteligência artificial, em que “está bem explícito que qualquer sistema de IA deve cumprir o código de proteção de direitos de autor e deve obviamente cumprir o seu respetivo pagamento aos proprietários dos direitos”, refere. Mas, por agora, trata-se de “uma redação preliminar, que ainda vai cumprir o seu processo legislativo na Europa” e que só no final é que será enquadrada nas leis nacionais.
Lembrando que o “processo legislativo é mais lento do que a realidade”, Pedro Sobral considera que a existência de regras europeias “não invalida que em Portugal se comece a pensar nisto rapidamente”. “Obviamente que estamos debaixo da normativa europeia, sabemos que essa questão é importante, mas não invalida que em sede do parlamento não se pense nisto e não se comece a trabalhar no assunto o mais rapidamente possível”, continua.
O presidente da APEL não entra em “discussões sobre se a IA vai ser positiva ou negativa”, mas frisa que o mais relevante “é que qualquer modelo de IA cumpra o escrupuloso direito de os autores e de proprietários de direitos serem ressarcidos pelo uso da sua obra criativa”. “É uma pedra basilar de toda a economia criativa”, remata.
Já Carlos Eugénio, diretor executivo da Visapress, a entidade que faz a gestão coletiva do direito de autor de obras e conteúdos jornalísticos publicados em jornais e revistas em Portugal, considera que, “para já, todas as medidas que sejam propostas são um bocadinho extemporâneas”, pelo menos até que seja finalizada a legislação europeia para a IA. “É a primeira legislação que versa a IA, inclui algumas linhas mestras, mas tudo o que se possa dizer que se vai fazer fica um bocadinho no éter, porque só quando sair a versão final é que se conseguirá realmente perceber se há alguma coisa ou não a fazer em relação à IA”, complementa.
Por agora, o diretor executivo da Visapress considera que é mais relevante perceber como vai ser implementada a legislação europeia para a IA e só depois “tentar adequar à nossa realidade, na certeza que o que tem sido dado a entender é que as medidas [do AI Act] são muito genéricas”. “Até lá, todas as medidas são boas intenções, mas não passam disso.”
O que mais propõem os partidos no âmbito da IA?
Dos partidos com assento parlamentar, só o programa do Bloco de Esquerda é que não faz menção à inteligência artificial. Com mais ou menos detalhe nas propostas, há medidas para vários gostos e propósitos: mais ligadas ao desenvolvimento de competências e qualificação dos portugueses (AD; Chega ou PS); para uso na administração pública (PS) ou para acelerar o Serviço Nacional de Saúde (PAN).
Há também medidas ligadas ao combate ao uso de tecnologia de IA generativa que possa ser usada para influenciar momentos eleitorais (PS e AD) ou, no caso do PCP, à defesa da limitação do uso de IA para tomar ou fundamentar decisões que possam ter implicação direta na vida humana, como a atribuição de apoios sociais, vistos, créditos ou acesso a um emprego. No programa da IL fala-se sobre a oposição à videovigilância massiva em espaços públicos e em que se usa tecnologias de IA, por exemplo. Ou, no caso do Livre, inclui-se a ambição de criar um órgão regulador de tecnologias de IA e aprendizagem automática.