Não há amendoins, cerveja ou whisky em cima da mesa. Água só mesmo no canal da Alsácia que banha a sede do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, e que reflete nas enormes janelas de vidro. Já o debate que se queria informal surgiu quase a pedido e depois várias insistências sobre a liberdade que tinham para conversar e trocar argumentos. Não demorou muito até que a picardia aquecesse o ambiente e daí até que sentissem as diferenças claras de pensamento em alguns temas foi um passo.
Durante uma hora, Margarida Marques, do PS, José Manuel Fernandes, do PSD, e Marisa Matias, do Bloco de Esquerda, sentaram-se à mesa com o Observador, no mesmo dia em que foi discutido o Estado da União. Com a guerra na Europa, todos os temas vão dar ao mesmo. Discutem causas e efeitos; fórmulas e estratégias; critica-se ou apoia-se: visto assim, nem a guerra muda a política.
Ursula vs. Costa, quem é mais progressista?
A muitos quilómetros de distância de Lisboa, aguardam-se as medidas que António Costa prometeu para as empresas, mas duvida-se do que se conhece para as famílias. Marisa Matias não esquece que o pacote “ficou aquém” do esperado e que, mais do que isso, é composto por “medidas cheias de truques”.
A palavra não agrada ao primeiro-ministro, que se foi justificando sobre a decisão das pensões, mas não muda a visão da oposição. A eurodeputada bloquista não se trava nas críticas: desde acusações de que “falta a verdade” à tentativa de “fazer uma ilusão” por não dizer o “custo que a medida tem para o futuro”.
O pensamento está alinhado com o de José Manuel Fernandes, que descreve a postura como uma “habilidade” e um “truque”. Margarida Marques ainda tenta defender o PS, mas gera um coro nos adversários: “Há um corte real.” A socialista tenta impor o ponto de vista e se tivesse um pensionista sentado há mesa pedia-lhe um voto de confiança ao Governo: “A decisão vai neste sentido e [os membros do Governo] irão rever e avaliar o sistema no sentido de encontrar uma forma que permita às pessoas não saírem prejudicadas.” Está “confiante” que o processo será esse e que “a promessa vai ser cumprida”.
Esperança não é uma palavra que assente bem à oposição por estes dias. José Manuel Fernandes e Marisa Matias concordam que é preciso fazer diferente, mas divergem na solução — se o social-democrata tivesse o poder de alterar o rumo do pacote de combate à crise energética apostava na diminuição da carga fiscal para as famílias, elaboraria um plano nacional para a capitalização das empresas e apostaria num crescimento da economia através de fundos; Marisa Matias não tem dúvidas que para sair desta situação é preciso um “verdadeiro reforço salarial” e a limitação de preços, à semelhança do que foi feito com o álcool e as máscaras durante as fases mais graves da pandemia da Covid-19.
E, neste contexto, a bloquista admite que nem percebe bem o posicionamento de António Costa: “Há toda a uma dimensão em relação a uma política muito pouco social de proteção dos salários, do poder de compra… Em relação às questões que estamos a debater no plano europeu até parece que Von der Leyen é mais progressista do que António Costa.”
A discordância vai mais longe e tem o seu ponto alto na tributação de lucros excessivos. Se dentro do PS não há um alinhamento e se aguardam indicações da UE (Ursula von der Leyen garantiu a necessidade das medidas, mas ainda não são conhecidos os pormenores da proposta), Margarida Marques não tem pudores em assumir que é a favor, mesmo entendendo que há uma “vantagem” em que essa decisão seja tomada no contexto europeu.
Marisa Matias não tem dúvidas de que é preciso taxar e acusa Costa de “falta de vontade política” para o fazer, exemplificando que outros países europeus avançaram sem o ‘ok’ da Comissão Europeia. Margarida Marques acredita que Costa já podia ter feito mais, mas realça que “o mercado interno é a defesa da UE” e que é necessária “justiça no funcionamento do mercado interno”. “Se não tivermos políticas comuns abrimos a possibilidade de uma maior fragmentação”, diz a eurodeputada socialista.
O tema (extraordinariamente) quente
É exatamente o tema dos lucros excessivos que leva os ânimos a exaltarem-se. O chefe da delegação do PSD na Europa ironiza com a descoordenação no Governo (“o ministro da Economia é a favor, o ministro das Finanças é contra e o primeiro-ministro também”) e defende que é preciso analisar a proposta porque “de forma unilateral não faz sentido”.
A afirmação começa a deixar Marisa Matias exaltada e a atirar, de forma indireta, ao PSD: “Quando é para cortar salários e pensões funciona sempre.” O debate que em tempos esteve frio está prestes a aquecer com a troca de farpas entre social-democrata e a bloquista. “Não vamos ser demagogos”, atira o eurodeputado, ao que Marisa Matias responde com prontidão: “Não estou a ser demagógica.”
José Manuel Fernandes envolve-se nos mesmos argumentos (“o importante é que o consumidor pague menos”) para ir à luta, mas está sozinho nesta batalha. Margarida Marques chega até a calcular o futuro, ao dizer que “se o Governo tomar a decisão” as palavras do chefe da delegação levam a prever que “o PSD será contra”.
O social-democrata não se alonga, diz apenas que o “líder do PSD tem tido uma posição clara e coerente” (já disse que em Portugal o imposto “não se justifica”) sobre o tema e refoca-se: “É essencial que não se use isto como pretexto”, realça, alertando para a discussão sobre o alargamento desta medida a outros setores que não os da energia. Nem Margarida Marques nem Marisa Matias estão preocupadas com essa questão e a socialista alerta que “quando se está a taxar empresas não se está a aumentar os preços para os consumidores”.
A eurodeputada do Bloco de Esquerda não entende que o PSD defenda a não tributação e insurge-se: “Como é que é possível que na UE 80 ou 90% do tecido empresarial seja de pequenas, médias e e micro empresas e vocês [PSD] insistem em proteger seis ou sete oligarcas e deitar abaixo a economia?” A questão fica no ar, com a reprovação de José Manuel Fernandes, mas Marisa Matias diz mesmo que existe uma “mega proteção de multinacionais” com esta política.
“Se há alguém que é mais social-democrata sou eu”, atira o chefe da delegação do PSD em jeito de conclusão da discussão, não sem antes notar que para se apoiar as PME é preciso um instrumento para a capitalização das empresas e que “não há vontade política para o fazer”.
Marisa Matias ainda toma a palavra para responder à “provocação” que sentiu de José Manuel Fernandes para admitir que “em relação à energia estaria muito contente se fosse um setor totalmente regulado do ponto de vista público porque é um setor estratégico” e realçar que há pessoas na “miséria” para “não mexer na integridade do mercado interno”.
Nesse ponto, Margarida Marques discorda e garante que independentemente das medidas tomadas sobre os lucros extraordinários é importante que se mantenha o funcionamento do mercado interno, nomeadamente porque o contrário seria, aos olhos da socialista, “prejudicial para países pequenos como Portugal”.
Adesão da Ucrânia à UE e “cautela” de Costa
Numa viagem curta até à Ucrânia, para onde Ursula von der Leyen seguiu depois do Estado da União, os três eurodeputados alinham na necessidade de uma exceção no aceleramento do processo da Ucrânia como país candidato à União Europeia, mas entendem que não há condições para uma entrada imediata.
Margarida Marques explica que foi dada prioridade ao estatuto de candidato — e contraria José Manuel Fernandes que a interrompe para dizer que este processo contou com a “relutância” de António Costa — e esclarece que agora têm de ser seguidos os trâmites normais, respeitando as condições de adesão que um país tem de cumprir para se juntar à UE.
O eurodeputado social-democrata entende o processo, mas considera que “a cautela pedida pelo primeiro-ministro revela o medo”, indo além para dizer que “o primeiro-ministro tem receio que a Ucrânia nos leve os fundos europeus”. “A cautela é uma razão egoísta.”
A defesa vem da colega de partido do próprio chefe do Executivo, para dizer que “o trabalho que António Costa tem feito na UE mostra bem que a preocupação não são os recursos financeiros”. Ainda assim, concorda com os “receios no que diz respeito a tratar todos os países que são candidatos da mesma forma”. Nisso todos estão de acordo, até José Manuel Fernandes entende que a adesão coloca desafios e considera que “é preciso dizer a verdade” para “não criar falsas expectativas”.
Ainda sobre as sanções — e depois de Ursula von der Leyen ter garantido que são para continuar, mas deixando Sanna Marin sem resposta após o pedido de medidas mais duras no debate “This is Europe” — os eurodeputados concordam que as sanções tinham de existir e que todos sabiam do “efeito ricochete”.
Mas todos concordam que a questão da energia não é de hoje e que a guerra apenas veio mostrar uma “debilidade” que já existia. “Pusemo-nos nas mãos do senhor Putin, temos governantes gulosos, não fizemos o trabalho que devíamos ter feito. Há muita gente que gosta de dizer que o problema é da Comissão Europeia quando o problema são os Estados-membros e os egoísmos nacionais”, sublinha José Manuel Fernandes, enquanto assegura que as sanções tiveram um “impacto fortíssimo” apesar de a Rússia não o transparecer.
O Observador viajou para Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu