Jerónimo de Sousa está “em perfeitas condições para continuar” e o Comité Central não vai eleger um secretário-geral “a prazo”. Ou seja, Jerónimo, se for eleito esta noite como tudo indica que será, não vai ser eleito a pensar numa substituição a meio do mandato. Quem o diz é Vasco Cardoso, membro da comissão política do Comité Central, que garante em entrevista à Rádio Observador, que criar a figura de secretário-geral adjunto “não é o que a direção do PCP está a pensar”. Tal só aconteceu com Álvaro Cunhal porque, “naturalmente, não era fácil encontrar-se uma solução” para o substituir. João Ferreira, de resto, já tinha garantido aos microfones do Observador que o cargo que muitos lhe apontam “não vai acontecer”.
Membro da direção do PCP e presença constante nas reuniões com o Governo sobre os vários orçamentos que o PCP já viabilizou, Vasco Cardoso não se retrai quando é altura de dizer que o Bloco de Esquerda optou por “arrumar as pantufas” logo na discussão na generalidade. O PCP, pelo contrário, “foi à luta até ao fim”. O facto de o PCP aparecer neste congresso com mais um orçamento do PS debaixo do braço não é, para a direção comunista, uma “contradição”. É ser oposição nos aspetos negativos, e ser força de influência para os avanços positivos.
Ainda assim, Vasco Cardoso admite que possa não ser fácil explicar esta “realidade complexa” aos militantes. Para as autárquicas, ambição máxima. E para o futuro, não descarta que o PCP continue o diálogo com a esquerda. Mas uma coisa é certa: não existe só uma alternativa de direita (com o Chega) e uma alternativa de esquerda (com um governo minoritário do PS). O PCP também se quer apresentar como alternativa. Com cada vez mais influência junto do PS.
“Jerónimo de Sousa não será um secretário-geral a prazo”
Esta tarde o Comité Central vai ser eleito e vai escolher o secretário-geral. Jerónimo de Sousa tem agora 73 anos e tudo indica que vai ser eleito para mais um mandato. Vão ser mesmo mais quatro anos?
O secretário-geral disse sempre que este não seria um problema que se iria colocar ao Congresso e não vai ter. Tem todas as condições para continuar a desempenhar estas funções, pela sua capacidade de mobilização, de envolvimento do partido, por aquilo que representa. Pela forma como tem desempenhado essas funções. Naturalmente tem 73 anos, mas encontra-se em perfeitas condições para continuar a assumir essas tarefas.
Faz sentido dividir o próximo mandato em dois ciclos? Um até às autárquicas, passando pelas presidenciais, e outro depois das autárquicas?
Não estamos a pensar eleger um secretário-geral a prazo. Jerónimo de Sousa tem neste momento condições perfeitas para continuar a desempenhar as funções que tem desempenhado. Quer dentro do partido quer em termos de projeção pública é alguém com quem muita gente se identifica, mesmo não sendo do PCP. Portanto, não vamos tomar essa decisão a prazo.
Pergunto isto porque na altura da saída de Álvaro Cunhal, também aqui em Loures, o Comité Central inovou na preparação da transição e criou a figura de secretário-geral adjunto. Justificou-se nessa altura porque Álvaro Cunhal era insubstituível e não se justifica agora? Ou pode vir a ser criada essa figura transitória?
Não creio que as coisas avancem nessa direção. A figura de secretário-geral adjunto foi criada num contexto muito concreto. Tratava-se de ir preparando quer o partido, quer o próprio quadro, para uma substituição que nunca seria fácil. Álvaro Cunhal é uma grande referência do Partido Comunista Português, do movimento comunista internacional, é talvez o principal construtor do partido, tinha feito todo um percurso quer na clandestinidade quer na revolução de abril e nos anos que se seguiram. Naturalmente não era fácil encontrar-se uma solução. Isso corresponde a uma época histórica e um contexto determinado, não estamos a pensar envolver uma dinâmica dessa natureza para o secretário-geral. Vamos eleger um secretário-geral para o presente e para o futuro, com perfeitas condições. Não será um secretário-geral a prazo.
Excluindo a opção de criar a figura de secretário-geral adjunto neste congresso, fica totalmente excluída a hipótese ou pode vir a ser tomada a meio do mandato?
É evidente que se pode fazer todo o tipo de futurologia, mas posso-lhe assegurar que não é isso que está a ser pensado do ponto de vista da direção do PCP.
E o que é a direção do PCP pensa para o futuro, para lá dos próximos quatro anos?
Isso é uma discussão que nem sequer está colocada neste momento. Quando se pondera as soluções de direção, são sempre soluções de direção coletiva (à exceção do secretário-geral). Falo da eleição do comité central, da proposta que se vai discutir hoje a noite quanto à composição dos organismos executivos, e quando tomamos essas decisões estamos a pensar em soluções que possam assegurar as respostas necessárias para a intervenção do partido entre congressos — não estamos a fazer nenhuma antecipação de uma situação que neste momento não se coloca.
BE “arrumou as pantufas” na discussão do Orçamento do Estado
O PCP chega a este congresso depois de ter viabilizado o quinto orçamento ao PS. Está confortável nesta posição de quase parceiro único do Governo? Sem o voto do PCP o Governo não tinha conseguido aprovar orçamento nenhum.
Não se trata de uma situação de desconforto ou de conforto, não estamos a falar de estados de alma. Estamos perante uma realidade em que o governo do PS não dá uma resposta cabal às necessidades do país. Quando avançamos para a discussão deste orçamento as insuficiências eram muitas, muitas mesmo. O Governo toma a opção de, em vez de responder às necessidades do país, submeter essas mesmas necessidades a uma determinada trajetória de evolução do défice das contas públicas, e simultaneamente não rompe com interesses relacionados com os grupos económicos e financeiros. Essa constatação não nos impediu, contudo, de examinar o orçamento no concreto e procurar encontrar soluções para o país. Esse percurso foi feito desde o dia 12 de outubro e a quinta-feira passada, data da votação final do orçamento.
Foi um processo longo.
Longo e até ao fim. Em que, à medida que os dias foram avançando nós apresentamos mais de 300 propostas. A evolução da situação nacional, com os problemas que já tem e o impacto da epidemia, não permitia uma resposta limitada a três ou quatro ideias, três ou quatro propostas. Fizemos o exercício de cobrir praticamente todas as áreas da vida nacional e foi possível, num quadro de grande persistência e determinação do PCP, encontrar soluções que dão instrumentos ao governo, por via do orçamento que foi aprovado, para responder a problemas do país. Eu destacaria o aumento das pensões que, ao contrário do que o governo pretendia, vai ser a partir de 1 de janeiro (sendo que quer PS quer PSD chumbaram a possibilidade de esse aumento se estender para lá das pensões de 658 euros); destacaria o conjunto dos investimentos no SNS, onde o governo não tem desculpa para não executar esses investimentos travando o que tem sido um saque dos grupos económicos ao SNS; foi também possível encontrar respostas ao nível dos apoios e suplementos relativamente às profissões mais expostas ao vírus; a suspensão do pagamento por conta; respostas para o setor artístico e cultural; respostas para as micro, pequenas e médias empresas…
São muitas as medidas que o PCP conseguiu aprovar. Ficou satisfeito com este Orçamento?
Não diria satisfeito, porque apresentamos 300 propostas e devemos ter para aí umas 50 aprovadas, e se apresentamos 300 é porque achávamos que as outras também faziam falta. Mas valeu a pena o esforço, a intervenção e a determinação do PCP em ir até ao fim, não prescindindo dessa batalha. Podíamos ter arrumado as pantufas logo na votação na generalidade.
O Bloco de Esquerda arrumou as pantufas?
Sim, logo. Nós não tomamos essa opção, fomos à luta, como se costuma dizer. E o resultado é um resultado que, em alguns casos vai ter impacto imediato na vida das pessoas logo em janeiro, e noutros prevê disposições que permitem ao governo responder em áreas fundamentais: saúde, direitos dos trabalhadores, defender as micro, pequenas e médias empresas e, ao mesmo tempo, reafirmamos a nossa exigência porque há medidas que, fora do orçamento, precisam de ser adotadas.
Isso não é querer o melhor dos dois mundos? Estar dentro mas dizer-se que se está fora. Ouvimos aqui ontem Jerónimo de Sousa dizer que o PCP é oposição, que nunca fez parte de maioria nenhuma, mas que quer continuar a influenciar o governo. Isto não é uma contradição?
Nós não vemos a vida a preto e branco. Ao contrário de muitas caricaturas que fazem do PCP, temos uma visão da realidade muito dialética e procuramos abordar essa realidade pelos vários ângulos. O Jerónimo de Sousa não disse apenas que era uma força de oposição, disse que era força de oposição a tudo o que é negativo e a tudo o que venha a ser contrário aos interesses nacionais (como situações do Novo Banco, alterações à legislação laboral em prejuízo dos trabalhadores) e combateremos todas essas medidas, mas simultaneamente o PCP é força determinante e insubstituível para os avanços.
Mas é um equilíbrio que tem de ser feito. É fácil explicar isso aos militantes?
Mas ninguém pergunta ao PSD se é uma força de apoio ao governo quando aprova com eles as alterações à legislação laboral ou que suporta decisões do Banif ou Novo Banco.
Não é o PSD que no fim do dia viabiliza o Orçamento.
A situação que se vive é uma situação complexa. O governo do PS não dá resposta aos problemas nacionais. A intervenção do PCP é decisiva para impedir tudo o que seja negativo e para fazer avançar aspetos positivos para os portugueses.
Mas perguntava-lhe se é fácil explicar isso aos militantes. Na intervenção que fez ontem chegou a falar de naturais interrogações. Há dúvidas sobre isto dentro do PCP?
Há aspetos que, precisamente por essa realidade ser complexa, levantam interrogações. O que se tem verificado ao longo dos últimos anos é que o que se avançou do ponto de vista de reposição de direitos, e até de algumas conquistas novas — os passes sociais, os manuais gratuitos —, são avanços novos. E todos eles têm a marca do PCP. Ao mesmo tempo, é uma situação em que se procura limitar e impedir aspetos que sejam negativos para o nosso povo e é aí que temos de intervir. Não há contradição, a situação é complexa, envolve uma avaliação que não é feita a preto e branco. O PCP não fez parte de uma maioria entre 2015 e 2019, como não faz parte agora. Decidimos em cada momento em função daquilo que é melhor para o nosso povo.
Nas últimas autárquicas o PCP foi, de certa forma, prejudicado nas urnas. A geringonça era muito recente a associou-se a ideia de que essa aliança prejudicou o PCP nas urnas. Isso não corre o risco de voltar a acontecer?
As eleições autárquicas têm muitas vezes elementos de natureza local. Tivemos vários municípios onde até reforçámos maiorias absolutas ou maiorias relativas passaram a absolutas.
Mas perderam câmaras históricas do PCP.
Perdemos e isso foi negativo, desde logo para as populações. Estamos muito empenhados em poder recuperar algumas. Aquilo que sentimos das populações é que o que aconteceu em Setúbal, no Barreiro, em Évora, onde perdemos as maiorias, foi mau. Mas com o evoluir da vida e a identificação de que o projeto da CDU faz falta às populações, acabámos por recuperar algumas autarquias. E é nessa dimensão que estamos a trabalhar.
Há pouco ouvíamos Armindo Miranda fazer aqui uma espécie de guião do que o PCP deve fazer para as autárquicas e dizia que tem de se começar a trabalhar já em janeiro. Qual é a meta do PCP para as autárquicas?
É difícil estabelecer uma meta eleitoral. Há objetivos que já estabelecemos: vamos concorrer a todos os municípios do país e, provavelmente, ao maior número de freguesias possível. Temos a ideia de poder consolidar maiorias e recuperar outras que perdemos e, em alguns casos até, avançar por concelhos onde até hoje nunca tivemos responsabilidades. Não estamos limitados, à partida, na concretização de nenhum desses objetivos. Se há característica que também marca o PCP é essa presença no poder local, distintiva e em alguns casos decorrente de uma influência que do ponto de vista local é muito superior à que se regista do ponto de vista nacional. Estamos com confiança relativamente às eleições autárquicas.
O Chega “leva-nos para 24 de abril e não é para aí que queremos caminhar”
Voltando ao orçamento, com o BE a ficar de fora desta vez o PCP duplicou, digamos assim, o poder negocial…
Não sentimos isso.
Passou a ser o parceiro único do Governo, que ficou dependente se o PCP viabilizava ou não o Orçamento.
Nós nunca usamos a expressão negociação e não é por acaso. Não se trata de uma negociação e falo por experiência própria. O exame tem sido um pouco este: colocamos as nossas ideias, as nossas propostas, considerações. A negociação envolve a ideia que se dá e se recebe e há a troca de alguma coisa. Não temos esse registo e esse perfil do ponto de vista de posicionamento perante o Governo. O Governo conhece as posições do PCP, e as distâncias em relação a matérias estruturantes da vida nacional são muito diferentes, mas ao mesmo tempo também conhece a seriedade, a nossa capacidade de trabalho e a nossa determinação e é isso que tem produzido resultados.
Com o que se passou nos Açores, a criar-se uma maioria de direita com o apoio parlamentar do Chega, a esquerda está condenada a ficar junta para não se repetir uma solução deste género?
Não temos uma conceção quanto à estratégia do partido na vida nacional que se limite à eternização do PS com as suas políticas no poder. Se há elemento que queremos destacar a partir deste congresso é a política alternativa de rutura com o que se conhece, e essa rutura envolve múltiplas dimensões que nenhuma dessas soluções que falou responde. Nenhuma responde ao desenvolvimento nacional, a uma conceção que temos que a vida do país melhora quando melhoram os direitos e salários dos trabalhadores. O que lhe estou a colocar é um projeto alternativo que se demarca e confronta com soluções como essas, ou como a própria governação do Partido Socialista. Pensamos que aí é que está a alternativa.
Um partido como o Chega não devia ter sido legalizado no Tribunal Constitucional?
Essa questão não é uma questão. O Tribunal Constitucional decidiu como decidiu. O que creio que é marcante relativamente a essa força política é o caráter demagógico e reacionário. Demagógico porque finge ser o que não é e reacionário porque os valores e objetivos que transporta consigo levam-nos para 24 de abril. E não é para aí que queremos caminhar.