Pais condenados por deixarem morrer uma criança à fome, é uma notícia que deixa chocado qualquer um – ou, no mínimo, quem tenha filhos ou crianças ao seu cuidado. Revoltam-se os leitores contra os pais. Mas se a notícia incluir que os pais são veganos e que terão tentado dar uma alimentação estritamente vegan ao bebé, culpa-se a dieta. Será que é mesmo caso para culpar o veganismo?
A deputada italiana do partido de centro-direita Forza Italia, Elvira Savino, considera que sim, por isso apresentou um proposta de lei que prevê que se penalize, com uma pena de um ano, os pais que impõem uma dieta vegan aos seus filhos (até aos 16 anos), noticia o jornal italiano La Republica. A proposta é motivada pelos recentes casos de crianças hospitalizadas em Itália com sinais de subnutrição. Consoante a gravidade das consequências na vida da criança, incluindo a morte, as penas podem ir até seis anos (qualquer pena é acrescida de 12 meses se a criança tiver menos de três meses).
Mas não é só em Itália que se têm registado casos de bebés que têm problemas de saúde graves ou que morrem devido às dietas impostas pelos pais. Recorde-se o caso de um bebé norte-americano que morreu, em 2004, às seis semanas com pouco mais de 1,5 quilogramas. Os pais, que se assumiam vegans, alimentavam o bebé exclusivamente com bebida de soja e sumo de maçã. Foram condenados por homicídio – não por serem vegans, mas por terem deixado morrer o filho à fome.
É por causa de situações como esta que Elvira Savino é tão inflexível. No texto da proposta de lei, a deputada critica os pais que de forma imprudente criaram dietas estritas sem consultarem nutricionistas ou que se limitaram a dar-lhes bebidas de amêndoas fervidas e lembra que estas atitudes prejudicam gravemente a saúde das crianças.
Todas as crianças devem ser alimentadas exclusivamente com leite materno até aos seis meses, como defende a Organização Mundial de Saúde. “E os vegans aceitam e promovem o aleitamento materno”, nota Alejandro Santos. Para o nutricionista, a questão mais importante nesta fase, e ainda antes disso, é a alimentação da mãe – vegan ou não.
As doenças metabólicas que se manifestam nos adultos, podem ter tido origem no desenvolvimento embrionário, refere o professor e investigador da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto. A carência ou excesso de determinados nutrientes durante a gestação influencia a expressão dos genes no bebé. Daí que seja tão importante que a mãe ingira a quantidade de proteínas, vitaminas ou energia ideal durante este período.
Após o nascimento, a Comissão de Nutrição da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) também defende o aleitamento exclusivo nos primeiros seis meses. Durante este período, as mães vegans devem ter o cuidado de usar suplementos ou alimentos fortificados para suprirem a necessidade de alguns nutrientes. “Assim, a dieta das lactantes vegans deve ser rica (suplementação ou fortificação) em vitamina B12, situação que não se coloca em amamentantes ovolactovegetarianas.” Estas mães devem ter também em atenção os níveis de cálcio, o ácido gordo docosahexanóico (DHA) e iodo, assim como a disponibilidade em zinco e ferro.
Claro que existem casos em que a mãe não pode ou não consegue amamentar a criança durante estes seis meses. Neste caso, Alejandro Santos recomenda que as mães recorram a um banco de leite materno, mas se esta opção não estiver disponível, a melhor escolha para as mães vegans alimentarem os bebés são as fórmulas adaptadas com hidrolisados de proteína de soja – ideais também para crianças alérgicas à proteína do leite. “As bebidas de arroz, amêndoa ou de soja [que não sejam as fórmulas adaptadas] não são bons substitutos do leite, mesmo que aleguem ser suplementadas com cálcio”, alerta o nutricionista. “As bebidas de arroz e amêndoa são pobres nutricionalmente.” Aliás, estas bebidas não devem ser introduzidas na dieta da criança antes dos 12 meses, refere a nutricionista Sandra Gomes Silva.
A partir dos seis meses (e nunca antes dos quatro) podem introduzir-se, faseadamente, alimentos sólidos, refere Alejandro Santos. Uma situação que é comum a qualquer criança saudável e não está dependente da opção de dieta. Os alimentos devem ser introduzidos um a um, para perceber se a criança faz algum tipo de reação ao alimento. A primeira seleção pode ser a maçã, pera, cenoura ou espinafres. Durante este período a criança pode continuar a ser amamentada e o aleitamento pode ser prolongado por quanto tempo seja confortável à mãe ou ao bebé, refere o nutricionista.
O importante nesta fase é “respeitar os ritmos e gostos do bebé”, refere Sandra Gomes Silva. Os pais devem procurar dar uma alimentação variada e o mais natural possível – devem evitar-se os alimentos processados que tenham quantidades altas de sal e açúcar -, acrescenta a nutricionista. O cuidado com as escolhas na alimentação são tão importantes para uma criança vegan ou vegetariana, como para uma criança omnívora, conclui.
Embora a Organização Mundial de Saúde também defenda o aleitamento até aos dois anos (ou até por mais tempo), depois dos seis meses este não deve ser o alimento exclusivo da criança. A alimentação exclusiva com leite materno levou à morte de uma bebé francesa, em 2008. Três anos depois, os pais foram condenados a cinco anos de prisão pela morte da filha de 11 meses que morreu com 5,7 quilogramas, quando deveria ter oito quilos. Além disso, os pais recusavam-se a fazer suplementação de vitaminas e rejeitavam a medicina tradicional, tratando a bronquite da filha com cataplasmas. A menina morreu de pneumonia, agravada pela carência das vitaminas A e B12.
O leite materno não é alimento suficiente para uma criança com mais de seis meses, mas mais do que isso, o leite de uma mãe vegan carece de vitamina B12. As mães ovolactovegetarianas ou as que comem carne ou peixe pelo menos uma vez por semana, podem conseguir uma boa quantidade da vitamina, mas as mães vegans não, alerta Alejandro Santos. Essas devem receber suplementação. E as crianças também.
“A Comissão de Nutrição da SPP refere que lactantes a efetuar dietas vegetarianas restritivas deverão efetuar suplementação com DHA, vitamina B12 e ferro e ainda que a suplementação do lactente deverá ser considerada não apenas nestes micronutrientes mas também em zinco, particularmente após os 5-6 meses”, refere o parecer da comissão enviado ao Observador.
É exatamente a “deficiência em zinco, ferro (do tipo contido na carne e peixe), vitamina D, vitamina B12 e ómega 3” nas crianças e adolescentes que a deputada Elvira Savino quer evitar com a proposta de lei. Não se opõe a que os pais e adultos sigam dietas mais restritas, mas não poderão impô-las às crianças. Como explicaram os especialistas contactados pelo Observador, adultos e crianças vegan podem e devem ser suplementados para evitar estas carências.
Vitamina B12
↓ Mostrar
↑ Esconder
“As únicas fontes veganas fidedignas de vitamina B12 são os alimentos enriquecidos (incluindo alguns leites vegetais, alguns produtos de soja e alguns cereais de pequeno-almoço) e os suplementos de B12”, refere o site Muda o Mundo.
Nuno Metello, presidente da direção da Associação Vegetariana Portuguesa, afirma mesmo que todos os vegans precisam de reforçar a ingestão de vitamina B12, seja com suplementos alimentares, seja com alimentos fortificados. E acrescenta que os alimentos que os veganos afirmam ser ricos em vitamina B12, não são, na verdade, boas fontes deste nutriente. “Não tomar suplementação [desta vitamina] é perigoso”, alerta Nuno Metello, vegan há 11 anos.
Há outra vitamina que Alejandro Santos lembra que todas as crianças – vegans ou não – devem receber como suplemento: a vitamina D, importante para uma formação óssea adequada, mas também para a regulação do sistema imunitário e cardiovascular. O Vigantol é o medicamento recomendado com frequência, mas uma opção pouco interessante para vegans, porque é de origem animal. No entanto, existem suplementos de vitamina D de origem vegetal que podem ser adotados. Nuno Metello afirma que ele próprio toma suplementos de vitamina D durante o inverno [mais sobre suplementos para vegans aqui].
Alejandro Santos alerta que “qualquer padrão alimentar que restrinja fortemente a seleção de alimentos [sejam eles quais forem] acarreta maior risco de carências nutricionais”. No entanto, o nutricionista que se assume não-vegan e não-vegetariano, afirma que não existem provas científicas de que a alimentação vegan seja prejudicial à criança. E lembra que uma dieta omnívora não é, só por si, garantia de boa alimentação. O que a alimentação vegan obriga é que os pais tenham mais cuidado na preparação de refeições variadas e equilibradas – um conselho que os pais omnívoros também devem seguir. Por isso, o nutricionista recomenda que os pais criem um menu diário de refeições para a criança e que tentem saber junto de um nutricionista se é equilibrado ou não.
Sandra Gomes Silva que acompanha nas suas consultas adultos, grávidas e crianças com dietas vegans ou vegetarianas afirma que “uma alimentação vegan ou vegetariana é possível desde o nascimento”, desde que sejam cumpridos os requisitos energéticos e nutricionais. As crianças com dietas vegans ou vegetarianas têm um bom desenvolvimento físico, mental e emocional, diz. “Verifico, nas minhas consultas, que as crianças vegans crescem dentro do padrão normal de desenvolvimento.”
Sobre a proposta de lei, a nutricionista diz que “carece de sustentação científica, sendo preconceituosa e discriminatória para com quem tem uma alimentação vegetariana”. A argumentação da deputada, como refere Sandra Gomes Silva, está baseada em casos de desnutrição e morte infantil “causados por uma alimentação desadequada, desequilibrada e incompleta, nada têm a ver com a alimentação vegetariana saudável”.
Nuno Metello concorda: “Penso que a proposta resulta de muita desinformação e preconceito da parte da deputada”. O presidente da direção da Associação Vegetariana Portuguesa considera que “se a deputada não fosse desinformada e preconceituosa, a proposta incidiria em dietas desequilibradas em geral, sejam elas vegans ou não, e não no facto de estas incluírem ou não produtos de origem animal”. Dietas mal planeadas não são exclusivas dos pais vegans, também acontecem entre os pais que não seguem dietas vegetarianas, afirma.
“Conselhos errados sobre a dieta vegan em crianças podem definitivamente colocá-las em risco. Mas não há qualquer dúvida de que, quando seguem uma dieta saudável, as crianças vegans desenvolvem-se bem”, refere a dietista Virgina Messina, citada pelo site da Associação Vegetariana Portuguesa.
A Comissão de Nutrição da Sociedade Europeia de Pediatria, Gastrenterologia e Nutrição, citada pela Comissão de Nutrição da SPP, discorda e “refere que se a amamentante tiver um regime vegan, é elevado o risco de alterações do desenvolvimento cognitivo do lactente, risco que aumentará se o lactente continuar com uma dieta sem alimentos de origem animal”. A sociedade recomenda que crianças e jovens ingiram produtos lácteos e que não sigam uma dieta vegan.
Pelo contrário, a Associação Dietética Vegetariana norte-americana defende que as dietas vegetarianas ou vegans apropriadas são saudáveis, nutricionalmente adequadas e podem ajudar na prevenção e tratamento de algumas doenças. “As dietas vegetarianas bem planeadas são adequadas em todos os estádios da vida, incluindo na gravidez, aleitamento, infância e adolescência e nos atletas.”
Acreditando neste princípio, três partidos italianos rivais da Forza Italia apresentaram também propostas de lei, mas no sentido de tornar as dietas vegans e vegetarianas mais comuns nas cantinas italianas, noticia a BBC. Em Portugal, a própria Direção-Geral de Saúde criou um manual para a “Alimentação Vegetariana em Idade Escolar”. Mas Elvira Savino prefere lembrar a Constituição e os direitos da criança para justificar uma lei que pretende “estigmatizar definitivamente comportamentos alimentares imprudentes e perigosos, impostos pelos pais, ou por quem exerce estas funções, em detrimento dos menores”. E pretende “sancionar a imposição de uma dieta alimentar desprovida dos elementos essenciais para o crescimento de uma criança”.
Mas esta formulação da lei está a preocupar os especialistas, como refere a BBC. Um uso incorreto das palavras pode levar a que não sejam só os pais vegetarianos e vegans a serem penalizados, mas um leque muito maior de pais, como os que têm crianças obesas. Para outros especialistas é o próprio conteúdo da proposta que é posto em causa quanto à sua validade, como referiu o jornal britânico.
Alejandro Santos reconhece que os casos das crianças subnutridas suscitam preocupação, mas “convêm recordar que a negligência dos pais no que toca à alimentação dos filhos não se limita apenas este grupo de pessoas [vegans]”. “Se é compreensível a criminalização da negligência parental quando é quebrado com dolo o direito da criança a uma alimentação equilibrada, já me parece mais difícil de sustentar a criminalização de uma prática alimentar que sendo bem feita não pode ser considerada negligente”, disse o nutricionista num comentário à proposta de lei. Sendo pai e nutricionista declara que nunca adotou ou recomendou uma dieta vegan, mas parece-lhe que este talvez seja “um exemplo extremo da aplicação do princípio da precaução”.
Para os pais que quiserem seguir um regime vegan ou vegetariano, a Associação Vegetariana Portuguesa pode fornecer informação sobre alimentação vegan e vegetariana, mas não faz recomendações, nota Nuno Metello. Os pais que desejem adotar este tipo de dieta para os filhos (ou para si) devem procurar ajuda de especialistas, refere. O presidente acrescenta ainda que: “A associação só promove informação credível baseada na Ciência”.
Uma dieta com todos os nutrientes, ainda que vegan, teria, provavelmente, evitado que um bebé italiano fosse internado no hospital em estado de subnutrição e com baixos níveis de cálcio. Quando deu entrada, levado pelos avós, o bebé de 14 meses pesava tanto como um bebé de três, cerca de cinco quilogramas. Os pais, que seguiam uma alimentação vegan estrita, arriscam-se agora a perder a custódia da criança.
Alejandro Santos diz que uma criança vegan, depois dos seis meses, e desde que continue a beber leite materno ou uma fórmula adaptada pode alimentar-se de purés de legumes ou tofu. Importante será a suplementação em ferro – a partir dos seis meses – e a adição de óleos vegetais, como o óleo de canola ou linhaça. A dieta rica em fibras dá uma sensação de saciedade muito rapidamente, mas o conteúdo energético é reduzido, o que pode ser compensado pelos óleos. Os cereais integrais, as leguminosas e, mais tarde, os frutos gordos (frutos secos ou de casca dura), também são alimentos densos energeticamente, refere Sandra Gomes Silva. A partir dos 12 meses, e desde que não haja problemas de saúde, a criança vegan pode começar a comer o mesmo que os adultos.
Todos os bebés e crianças, mas também os adolescentes e adultos, devem ter uma dieta equilibrada e diversificada que forneça todos os nutrientes e energia necessários ao crescimento e à realização das tarefas diárias. Os regimes alimentares omnívoros, ovolactovegetarianos ou estritamente vegans podem consegui-lo, ainda que possam ter de recorrer a suplementos alimentares ou alimentos fortificados. Cabe aos profissionais de saúde, sejam pediatras ou nutricionistas, ajudar os pais a realizar as melhores escolhas alimentares para essas crianças.
Alejandro Santos não promove dietas que sejam restritivas na seleção de alimentos em crianças saudáveis, mas também não tem fundamentos científicos para afirmar que a dieta vegetariana ou vegan na criança é errada. “Os profissionais de saúde que tentam desviar os pais deste tipo de alimentação [vegan] tem uma boa intenção, mas ir contra convicções fortes leva ao afastamento destes profissionais”, alerta o nutricionista. “Se os pais deixam de ser acompanhados e não encontram boa informação correm riscos muito maiores.”
Pais e profissionais de saúde têm de manter-se atualizados sobre as dietas vegans e vegetarianas, lembra Sandra Gomes Silva. A nutricionista deixa um conselho aos colegas nutricionistas e aos pediatras: “Os profissionais de saúde devem procurar acompanhar os pais, mesmo que não defendam o regime alimentar, de forma a garantir que são tomadas as melhores opções para a saúde da criança”. A nutricionista, que também pratica uma alimentação vegetariana, afirma que as pessoas que frequentam as consultas de nutrição ficam satisfeitas por encontrarem profissionais de saúde que as compreendam e as consigam acompanhar.
Os nutricionistas “têm um papel importante na prestação de assistência durante o planeamento de dietas vegetarianas saudáveis àqueles que desejem iniciar este tipo de alimentação ou que já o pratiquem e devem ser capazes de fornecer informação correta sobre a nutrição vegetariana”, refere a Associação Dietética Vegetariana norte-americana. No entanto, Alejandro Santos admite que há muitos profissionais de saúde que não estão preparados para esta situação.
Veja em anexo as recomendações da Direção-Geral de Saúde para dietas vegetarianas no adulto e nas crianças em idade escolar.