São 12h20 de terça-feira. Pela urgência, no piso – 1 do Hospital de Santo António, no Porto, entra um doente com suspeita de Acidente Vascular Cerebral (AVC). Chega de ambulância e a equipa que o recebe já está avisada.
Da porta da urgência à sala de emergência são dois passos. Porta com porta, triagem feita, o homem de 79 anos conta o que se passou. Acordou bem, pouco depois sentiu uma “moedeira” no peito. Tomou o pequeno-almoço, a sensação passou, saiu de casa para uma reunião e sentiu a parte direita do corpo a adormecer. Começou pelos lábios, estendeu-se à perna, um formigueiro a descer. Alguém terá ligado para o 112.
Na sala de emergência, os médicos vão fazendo perguntas enquanto o sangue do doente é recolhido para análise. O neurologista Ricardo Varela pede ao homem para levantar os dois braços. Depois o mesmo para a perna direita. “Consegue manter a perna levantada?” Ele tenta, mas nada feito.
São 12h40. Uma maca com o doente está a caminho da sala da TAC. É preciso ver o que se passa no cérebro. Avisa-se o paciente para não mexer a cabeça, vai sentir calor. E surgem imagens em três ecrãs, que de imediato ficarão disponíveis na rede interna do hospital. Regresso à sala de emergência. Há suspeita de enfarte agudo do miocárdio e AVC isquémico, que acontece quando há uma obstrução e o sangue não passa para uma determinada região do cérebro – é o mais comum, representando 85% dos casos (os restantes 15% são AVC hemorrágicos, quando um vaso cerebral se rompe e sangue se espalha pelo crânio).
Analisam-se exames, entre eles um eletrocardiograma. A primeira suspeita não se confirma. A segunda sim. Uma artéria entupiu e o sangue não circulou da forma certa, deixando uma zona do cérebro não irrigada.
Prepara-se a medicação para administrar na veia e inicia-se a trombólise, o tratamento que torna o sangue mais fluído e permite dissolver o coágulo formado na corrente sanguínea. Fica assim uma hora, constantemente vigiado. Se a situação não se reverter, a mobilidade da perna direita pode ficar comprometida e é isso que se quer evitar. O homem fica internado em vigilância.
Foi a primeira situação do dia recebida pela equipa da Via Verde do Acidente Vascular Cerebral (Via Verde AVC) da Unidade Local de Saúde de Santo António, que abrange o hospital com o mesmo nome, o Hospital Magalhães Lemos e vários centros de saúde da região, servindo uma população de 350 mil pessoas. O turno é de 24 horas, das oito da manhã de terça às oito da manhã de quarta-feira. O que pode acontecer é incerto, os procedimentos clínicos estão estipulados, mas cada caso é sempre um caso. E este, parece, poderá acabar bem.
Em 2006, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) e a Direção-Geral da Saúde, através do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares, criaram a Via Verde do Acidente Vascular Cerebral, um protocolo de ações e exames que garante que as vítimas com sinais e sintomas de AVC são corretamente assistidas e encaminhadas para o hospital mais bem preparado para as receber. Atualmente, a Via Verde AVC está disponível em 34 hospitais portugueses, prontos a lidar com a principal causa de morte no país.
Os 34 hospitais portugueses com Via Verde AVC
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- Hospital de Bragança (ULS Nordeste)
- Hospital de Chaves (ULS Trás-os-Montes e Alto Douro)
- Hospital de Santa Luzia, Viana do Castelo (ULS Alto Minho)
- Hospital de Braga (ULS Braga)
- Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães (ULS Alto Ave)
- Hospital de São Pedro, Vila Real (ULS Trás-os-Montes e Alto Douro)
- Hospital Padre Américo, Penafiel (ULS Tâmega e Sousa)
- Hospital Pedro Hispano, Matosinhos (ULS Matosinhos)
- Hospital de Santo António, Porto (ULS Santo António)
- Hospital de São João, Porto (ULS São João)
- Hospital Eduardo Santos Silva, Vila Nova de Gaia (ULS Gaia/Espinho)
- Hospital de São Sebastião, Santa Maria da Feira (ULS Entre Douro e Vouga)
- Hospital de São Teotónio, Viseu (ULS Dão-Lafões)
- Hospital Infante D. Pedro, Aveiro (ULS Região de Aveiro)
- Hospital Sousa Martins, Guarda (ULS Guarda)
- Hospital Pêro da Covilhã, Covilhã (ULS Cova da Beira)
- Hospitais da Universidade de Coimbra (ULS Coimbra)
- Hospital da Figueira da Foz (ULS Baixo Mondego)
- Hospital Amato Lusitano, Castelo Branco (ULS Castelo Branco)
- Hospital de Santo André, Leiria (ULS Região de Leiria)
- Hospital Hospital Doutor Manoel Constâncio, Abrantes (ULS Médio Tejo)
- Hospital de Santarém (ULS Lezíria)
- Hospital Beatriz Ângelo, Loures (ULS Loures-Odivelas)
- Hospital Fernando Fonseca, Amadora (ULS Amadora/Sintra)
- Hospital de Santa Maria, Lisboa (ULS Santa Maria)
- Hospital de São José, Lisboa (ULS São José)
- Hospital de São Francisco Xavier, Lisboa (ULS Lisboa Ocidental)
- Hospital Garcia de Orta, Almada (ULS Almada-Seixal)
- Hospital de São Bernardo, Setúbal (ULS Arrábida)
- Hospital do Espírito Santo, Évora (ULS Alentejo Central)
- Hospital do Litoral Alentejano, Santiago do Cacém (ULS Litoral Alentejano)
- Hospital José Joaquim Fernandes, Beja (ULS Baixo Alentejo)
- Hospital do Barlavento Algarvio, Portimão (ULS Algarve)
- Hospital de Faro (ULS Algarve)
Embora o Hospital Central da Madeira (Funchal), o Hospital do Divino Espírito Santo (Ponta Delgada), o Hospital de Santo Espírito da ilha Terceira (Angra do Heroísmo) e o Hospital da Horta tenham unidades preparadas para atender e tratar AVC, não existe, atualmente, Via Verde do Acidente Vascular Cerebral pré-hospitalar em articulação com o INEM nos Açores e na Madeira.
O circuito está definido desde o primeiro sinal, seja suspeita ou confirmação perante a dificuldade em falar, boca ao lado (face) ou falta de força num membro do corpo. São os “3 F” de alerta para AVC e basta que ocorra um para poder tratar-se de um episódio destes. O que se deve fazer? Ao mínimo sinal de alerta, contactar imediatamente o número nacional de emergência, 112.
Desobstruir a artéria
Por volta das 14h30, depois de uma viagem de duas horas de ambulância, chega um doente transferido de outro hospital, onde chegou a fazer uma TAC cujas imagens estão disponíveis online. A equipa tem acesso aos exames feitos ao cérebro do paciente. Um homem de 90 anos, nada de grave no historial clínico.
O filho encontrou-o às 8h30, com dificuldade em falar e em mexer uma das pernas. Ligou para o 112, o INEM foi ativado e, depois de uma avaliação de sintomas no Hospital de Vila Real, foi decidido que seria melhor ser transferido para o Santo António.
Ricardo Varela é informado de que não houve alterações significativas do estado do doente durante o transporte. O neurologista faz algumas perguntas ao paciente, pede-lhe para levantar a perna direita. Não há resposta. Depois de analisadas as imagens, o resultado: obstrução na artéria cerebral média esquerda. Diagnóstico: mais um AVC isquémico. O doente é algaliado e levado para a sala de angiografia no serviço de neurorradiologia. Maca pelo corredor da urgência, elevador, um piso abaixo.
Há dois tratamentos possíveis para lidar no imediato com um AVC: a trombólise para dissolver o trombo (coágulo) formado na corrente sanguínea, através das veias, e a trombectomia que vai desobstruir a artéria cerebral e remover coágulos com a ajuda de um cateter que entra pela virilha.
É esta a abordagem seguida para o doente. Dois neurorradiologistas, um técnico de radiologia, um enfermeiro, uma anestesista e uma enfermeira de anestesia estão a postos. Não é necessária anestesia geral, o homem está tranquilo, apenas uma leve sedação. Nos ecrãs do computador segue-se o trajeto do cateter, a subir. Não demora até chegar ao cérebro. O coágulo é sugado, aspirado para um recipiente transparente. O doente está estável, verifica-se em que serviço do hospital pode ficar internado.
Nessa terça-feira, nessa escala de 24 horas, entram seis suspeitas pela Via Verde AVC no Santo António. Quatro confirmados, um deles com necessidade de internamento em cuidados intensivos. Vão somar-se aos cerca de 500 que o hospital recebe todos os anos.
Tempo ganho, tempo perdido
Uma semana antes, na sala de angiografia, João Xavier, diretor do Serviço de Neurorradiologia, analisava as imagens da TAC de um doente assistido no Hospital de Chaves. Viu sombras no cérebro, poderia não ser grave, o transporte estava a ser tratado para ser feito de helicóptero. Havia ainda outro caso em Bragança, uma mulher que chegaria de ambulância. Enquanto isso, uma equipa de médicos estava na sala a tratar um aneurisma de uma mulher que teve um AVC em setembro e a quem foi detetado o problema.
No Porto, às segundas, terças e quartas-feiras, a Via Verde AVC funciona no Santo António. Às quintas e sextas no Hospital de São João. Aos fins de semana é alternada entre as duas unidades de referência. No Santo António, a equipa da Via Verde AVC é gerida por neurologistas e inclui também anestesistas, radiologistas, neurorradiologistas e intensivistas. A cada alerta, os especialistas reúnem-se na sala de emergência, enquanto cada um se dedica ao serviço hospitalar onde trabalha habitualmente.
Às quartas-feiras, o neurologista Rui Felgueiras é o responsável de equipa Via Verde AVC do Santo António. “Preparamos as coisas para sermos mais rápidos, avisamos a sala de emergência, avisamos a sala da TAC, a neurorradiologia para ver os exames que são lidos de imediato.” Agiliza-se o processo e a abordagem é feita em equipa.
As boas práticas do tempo “porta-agulha”, ou seja, da porta da urgência até receber tratamento, estão estipuladas em uma hora. No Hospital de Santo António conseguem fazê-lo em menos de trinta minutos. Do início dos sintomas ao tratamento, o que se recomenda é não passar as quatro horas e meia. Depois disso, começa a ser tarde.
“Desde que o doente entra, todos os segundos contam e há um dano neurológico que está a acontecer, dependendo da zona do cérebro afetada”, diz Carlos Correia. “Tempo é cérebro”, reforça o diretor do Departamento de Neurologia do Hospital de Santo António. “Da porta de entrada do hospital à sala de TAC, devem ser vinte minutos no máximo.” E faz-se o que é preciso naquele momento: médicos que empurram macas, procedimentos médicos realizados na sala de emergência para aproveitar todos os segundos. Quanto mais depressa, melhor. “A equipa é como uma orquestra, tudo afinado.”
A Via Verde AVC do Santo António pode receber dois doentes em simultâneo, com equipas distintas em ação. Mais do que isso é complicado, pode ser necessário transferir alguém para outra unidade de referência, apta para fazer trombectomias – que, no norte do país, apenas se realizam nos hospitais de Santo António e São João, no Porto, na Unidade Local de Saúde de Braga e na Unidade Local de Saúde Gaia e Espinho. Além destes, só o Hospital Universitário de Coimbra, os hospitais de Santa Maria e de São José em, Lisboa, e o Hospital Garcia de Orta, em Almada.
Carlos Correia lembra que há doentes que têm hemorragias e fazem uma TAC cerebral em hospitais de média dimensão antes de ali chegarem. “O doente, ou quem esteja ao seu lado, tem de desconfiar que pode tratar-se de um AVC e acionar os meios de emergência para o transporte necessário.” Essa pode ser a diferença entre a vida e a morte ou sequelas para sempre, mas nem sempre é fácil ter e perceção do que está a acontecer. “Como não dói, vamos ver se isto passa”, pensa muita gente. O problema é que, entretanto, “os danos neurológicos podem ser irreparáveis”.
Um processo dinâmico
“Os casos são-nos apresentados, o contexto clínico e as imagens chegam-nos dos hospitais de origem”, explica João Xavier. “É assim que ficamos a saber qual a extensão da lesão cerebral e o ponto de oclusão da artéria.” Por vezes há AVC em pontos estratégicos a que não se consegue chegar. Outras vezes, “a remoção do trombo não garante, só por si, um bom prognóstico, embora aumente muito a possibilidade deste, apesar de possíveis danos cerebrais irreversíveis”.
“É um processo que tem muitos intervenientes e muitas variáveis do início ao fim”, diz Gabriela Lopes, neurologista, responsável pela unidade AVC Dr. Castro Lopes, do Hospital de Santo António, com seis camas para doentes mais agudos. “É um conjunto muito grande de pequenos pormenores que fazem toda a diferença.” Com tudo o que uma Via Verde AVC implica, receber o doente, ter uma equipa à espera, espaços preparados, prioridade nos exames. “O circuito tem de estar oleado”, diz a médica.
Os doentes ficam internados e avalia-se a necessidade de um plano de reabilitação. Há enfermeiros especialistas, fisiatras, nutricionistas, assistentes sociais. “Os mais pequenos pormenores interessam”, garante a neurologista. Há casos em que é necessário trabalhar a autonomia para as capacidades que se conseguem recuperar, outros em que é preciso encaminhar para uma unidade de cuidados continuados. Há idosos sozinhos que não têm para onde ir, incapacitados e sem recursos para tratar competências perdidas. Todas as semanas são feitas reuniões para analisar o plano traçado para cada paciente que sofreu um AVC e está internado. Por um lado, há todo o tratamento clínico, por outro, as respostas na comunidade e o apoio das famílias.
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Número de AVC diários registado pelo INEM
As 8.796 ativações da Via Verde AVC registadas pelo INEM em 2023 representam mais 1.920 do que em 2022 (6.876), o que se traduz numa média de 24 por dia. Metade homens, metade mulheres, com uma média etária de 73,9 anos. Foi no distrito de Lisboa que se registou o número mais elevado de casos, com 1.665 doentes ao todo, seguindo-se o Porto com 1.639 e Setúbal com 640. Em 2022 houve mais 1.060 suspeitas do que em 2021, com uma média de idade de 73 anos.
Gabriela Lopes chama a atenção para uma questão: o transporte entre hospitais não é feito pelo INEM; por vezes, não há ambulâncias disponíveis e o trânsito na cidade do Porto tem momentos difíceis. Já tiveram de pedir batedores da polícia para abrir caminho num caso de urgência extrema, com os doentes transportados de helicóptero a aterrar na Foz e ainda terem alguns quilómetros de estrada até ao Santo António ou São João.
Aumento do número de casos
O aumento do número de casos anual (8.796 em 2023, mais 1.920 do que em 2022) deve-se a uma nova ferramenta de registo clínico que permite reunir mais dados e otimizar a cadeia de transmissão de informação clínica, desde o evento até à chegada do doente no hospital. Isto não significa necessariamente mais casos de AVC. Significa que estão mais sinalizados através da Via Verde AVC.
Depois de confirmar a suspeita, o Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do INEM — enquanto central de emergência que coordena e gere um conjunto de meios de socorro — ativa a Via Verde AVC e envia uma ambulância. Entretanto, o médico do INEM transmite toda a informação ao médico responsável da equipa no hospital mais próximo. Passam-se dados pessoais, sintomas apresentados, hora, circunstâncias, medicação que eventualmente esteja a ser feita. Por sua vez, o médico no hospital alerta a equipa para a chegada do paciente de forma a garantir máxima rapidez dos procedimentos. Ficam todos em sentido como os músicos da orquestra antes do concerto. Todos sabem que “tempo é cérebro” e o que devem fazer.
Na manhã daquela terça-feira, de um minuto para o outro, dois homens sentiram o corpo de forma diferente. Um estava mais perto, o outro mais longe, mas ambos chegaram ao Hospital de Santo António. Foram tratados, medicados, vigiados. Uma semana depois, estarão melhor ou pior. Mas nunca iguais.
Reportagem atualizada às 11h55 de 26 de março de 2024 com informação sobre as unidades de referência para realização de trombectomia no norte do País.
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