Quem quer que tenha conhecido Vitor Silva Tavares, falecido segunda-feira, dia 21, sabe que todas as palavras que se tentem dizer sobre ele serão sempre insuficientes e, talvez mesmo, inúteis. Pois não há uma só que lhe faça justiça, não há uma palavra que possa traduzir o festim da sua inteligência, da sua ironia, da sua força ética, da sua expressão de miúdo rebelde, que por opção nunca trocou as ruas pelos palacetes.
Pior: sabemos que onde quer que seja o inferno que agora partilha com Luiz Pacheco e com Herberto Helder, ele há-de estar a ler este texto e a rasurá-lo com comentários impiedosos, e boutades cheias de referências literárias.
Como escrever sem ser circense, sem empolamentos ou falsos romantismos sobre um homem que odiava a feira de vaidades em que o mundo se tornou? Alberto Pimenta, poeta e amigo, dá uma sugestão: “Vamos falar sobre o quão bom cozinheiro ele é, não consigo falar dele no passado. As melhores coisas que comi na vida foram feitas por ele. Era um artista na cozinha como o era a fazer livros, por isso deixou-nos uma obra que é um monumento. Não, ele não era editor. Ele era um edificador de um grande monumento feito de pensamentos que se tornaram ações. E a sua grande ação neste mundo foi fazer livros.”
Mas quem era, afinal, este homem, perfeitamente desconhecido para a maioria dos portugueses, e que após a sua morte chegou a todos os jornais? Era tão somente o maior editor de livros do mundo. Do mundo? Alberto Pimenta confirma: do mundo.
&etc, a arte de ser sempre um editor subterrâneo
“Quando publiquei A Cona de Irene, de Louis Aragon, pedi a um rapaz que colaborava aqui comigo que fosse ali à livraria Bertrand ver se queriam alguns exemplares para pôr à venda. Resposta do diretor: ‘Pensas que isto aqui é uma casa de putas?’ Indignada, a minha boa amiga Luiza Neto Jorge pegou ao colo o seu filho ainda bebé e voltou lá. Pediu para falar com o diretor da loja e, enquanto embalava a criança, disse-lhe com voz cândida: ‘Queria o livro A Cona de Irene, têm?’; ‘Não, não temos, mas vou já encomendar’, respondeu logo ele todo solícito.”
Este é apenas um dos muitos episódios que fazem a história da &etc, a única editora que teve livros apreendidos e queimados em pleno tribunal da Boa Hora no pós-25 de Abril.
O caso da apreensão deu-se em 1980, após a publicação de O Bispo de Beja, um velho opúsculo que tinha servido para propaganda republicana no início do século XX. Era um poema satírico que envolvia um bispo de Beja, acusado de homossexualidade, que gerou a fúria da população. Setenta anos depois, um padre de Beja, como que sentindo-se na obrigação de vingar o tal bispo, fez uma denúncia contra a editora e, pasme-se, o processo chegou mesmo a tribunal, acabando os exemplares apreendidos regados a gasolina no pátio da Boa Hora. Quando tudo terminou, Vitor Silva Tavares fez o que lhe competia: reeditou o livro com uma capa ainda mais satírica do que a anterior.
Mas os livros da &etc não tinham só um propósito de provocação fácil. Cada um deles, lembra Alberto Pimenta, “é uma casa pensada desda as fundações até ao tecto, é uma casa pensada para ser única”. Por isso, nesta editora a forma e o conteúdo dos livros era inseparável. Para não se submeter à ditadura do livro retangular, Silva Tavares inventou o “falso quadrado” que acabou por se tornar uma das imagens de marca da editora. Dentro deste “falso quadrado” há um quadrado verdadeiro, e é dentro destas proporções perfeitamente harmoniosas que toda a literatura acontece.
Durante mais de 40 anos — a marca &etc surge em 1967 como suplemento de artes e letras do Jornal do Fundão, evolui em 1973 para revista autónoma, até se transformar, um ano depois, em editora –, a singular &etc publicou poesia, ficções, ensaios surrealistas, modernistas, futuristas, dissidentes, iconoclastas, rebeldes com e sem causa, gente que precisava de um motivo para viver.
A lista de autores é enorme e congrega grandes e inquestionáveis artistas mas também os seus detratores. A Vitor interessava sobretudo a liberdade e a inteligência intrínsecas a cada texto. Não havia dogmas, nem intocáveis. Tal como não havia reedições de nenhum dos livros publicados. O objectivo da &etc não era ganhar dinheiro, pelo contrário, era resistir a uma sociedade comandada pelo desejo de lucro.
Hoje, quando se olha para o catálogo da editora, certamente o mais luxuoso da literatura portuguesa, vemos autores fundamentais para a história do século XX que só conheceram tradução e edição em Portugal, porque existia por cá este senhor, que até nem queria ser editor, que até nem gostava que lhe chamassem editor, porque a sua grande paixão sempre foi o cinema.
O mundo criado por Silva Tavares numa cave da Rua da Emenda está deliciosamente retratado neste pequeno documentário de Cláudia Clemente. E era habitada por outras figuras tão marginais quanto fascinantes, como Luiz Pacheco, Herberto, Adília Lopes, Alberto Pimenta, Manuel João Vieira…
Um herói muito discreto
Talvez Vitor Silva Tavares esteja agora a cuspir impropérios ao romantismo deste pós-titulo. Mas a verdade é que neste século XXI, onde o epíteto de “maldito” passou a ser só mais um um ideal estético de jovens entediados, a coisa mais insultuosa que encontrámos para o descrever foi mesmo a palavra “herói”.
Nascido na Madragoa em 1937, filho da cidade pobre, foi educado por uma avó analfabeta, mas que, percebendo a inteligência ímpar do rapaz, arranjou maneira de o pôr a estudar. Aos 6 anos escreveu o primeiro poema de amor para uma vizinha, aos 16 foi expulso do liceu por insultar um professor. Deixou a escola mas nunca deixou a cultura, os livros, a paixão pelas artes.
Trabalhou com Almada Negreiros na construção de cenários para teatro, foi jornalista em Angola e um dos primeiros a denunciar a escravatura encapotada que se escondia sob o “imposto indígena”. Em 1961 (ano dos massacres que deram origem à guerra em Angola), esta denúncia do regime esclavagista praticado sobre os negros faz com que Silva Tavares seja raptado e quase assassinado por colonos brancos. Mas a sua história como jornalista começara anos antes, como ele contou à revista brasileira K, Jornal da Crítica.
A minha estreia nos jornais foi da seguinte maneira: um jornal daqui de Lisboa, chamado Jornal do Comércio, abriu um concurso literário a que chamou “A oportunidade 202”. Quem ganhasse o prémio, além da publicação no jornal, recebia 202 escudos. Resolvi concorrer. Só que, em vez de mandar poesia, conto, enfim, literatura de ficção, mandei uma reportagem sobre pequenos delitos. Ali onde agora está a Biblioteca Camões funcionava o Tribunal dos Pequenos Delitos. Fiz uma reportagem sobre um dia de trabalho nesse tribunal. Escusado será dizer que ganhei os 202 escudos. Mais do que isso: ligaram do jornal para perguntar à minha mãe que idade eu tinha e se eu era bom estudante, ao que ela respondeu: “Não, é um vadio.” Quando publicaram o texto, fizeram uma pequena nota que revelava a minha idade (15, 16 anos), me aconselhava a prosseguir nos estudos e me dizia para não esquecer que eu tinha uma caneta de ouro. Abriram-me então espaço para eu continuar a escrever.”
Quando regressa a Portugal continua a escrever sobretudo crítica de cinema, na Flama e no Diário de Lisboa. É convidado para dirigir a Ulisseia, mas é com José Cardoso Pires, um dos seus mentores, que Vitor vai fazer o suplemento de artes e letras do Jornal do Fundão, do qual há-de nascer depois a &etc. Aqui ele põe em ação toda a sua inteligência, toda a sua ética, toda a sua vida. “O Vitor tinha uma prodigiosa vitalidade física e espiritual, que nós pensávamos que não acabava nunca. Habituámo-nos a vê-lo calcorrear Lisboa a pé a vender os seus livros”, lembra Alberto Pimenta.
Nunca teve carro, telemóvel, computador, nem outros objetos da vida moderna. Não pensemos que isso aconteceu por inépcia, ou por fraqueza (aqueles adjetivos que se convencionou aplicar a quem não faz da aquisição de objetos de consumo o seu objectivo de vida). Vitor não desconhecida nada deste mundo. Conhecia até muito bem. Conhecia tão bem que preferia não participar. “Poucas pessoas passam pela vida sabendo tão bem o que devem a si mesmas e o caminho que têm que fazer para se cumprirem”, diz o poeta e ensaísta Alberto Pimenta.
“Quando noutras entrevistas me perguntam: ‘Que linhas segue a &etc do ponto de vista do conteúdo?’ – tenho grande dificuldade em responder. O mais fácil é apresentar o catálogo e pedir que tirem as próprias conclusões. As linhas de força estão patentes no catálogo. Não é uma, serão várias. Então qual é o denominador comum? O modo de produção. Esse é exatamente o mesmo hoje, como quando nasceu. E é esse modo de produção que é político. Porque é fácil fazer catilinárias contra a exploração capitalista, contra a globalização das multinacionais. Eu, em qualquer café, posso estar a falar três horas sobre isso e entretanto, na minha vidinha, no meu comportamento, cá estou eu. Não é verdade? Ora, aqui temos outro modo de produção — aí está a resposta, a resistência, a resistência.”
O editor da Frenesi, Paulo da Costa Domingos, trabalhou durante várias décadas com Silva Tavares e foi o autor do volume Uma Editora no Subterrâneo (Letra Livre, 2013), sobre os 40 anos da &etc. Ele lembra que Vitor Silva Tavares foi “o último editor que fazia, de facto, livros como um gesto de resistência ética” e que por isso era também um exemplo de grandeza num tempo de homens moralmente fracos.
Com o seu habitual casaco de quadrados azuis, totalmente alheio ao circulo mediático da literatura e da poesia, resistindo à brutal pressão do mundo editorial baseado no lucro, cada vez mais ignaro e vil, resistindo às pressões interiores de estar cada vez mais só num mundo que se está nas tintas para quem com quase nada faz os mais belos livros, Vitor Silva Tavares morreu aos 78 anos como um herói da resistência poética.
E onde quer que esteja agora, Vitor há-de rir deste seu obituário, e indiferente virar-se-á para o lado e contará mais uma história: “Quer saber esta?”
“Sabe qual é o poema surrealista mais bonito de sempre? Foi escrito por um miúdo de 5 anos numa escola onde fui fazer uma sessão de poesia e diz assim: ‘eu gosto muito do sol, porque ele é tão azulito, tão azulito como um moranguito’.” (Vitor Silva Tavares em entrevista ao DN, em 2012)