Corria o ano de 2004 quando Yulia Tymoshenko se tornou uma personagem política conhecida em todo o mundo. Apoiante de Viktor Yuschenko nas presidenciais ucranianas, liderou com ele aquela que ficaria conhecida como a Revolução Laranja, contestando os resultados eleitorais e forçando uma repetição de eleições. Desde então, tornou-se uma figura incontornável da política ucraniana: foi primeira-ministra por duas vezes e negociou diretamente com Vladimir Putin durante a crise do gás de 2009.
O Putin que conheceu nesse momento não é muito diferente do atual, garante, em entrevista ao Observador, à margem das Conferências do Estoril. “Ele já estava a fazer o que está a fazer agora, no fundo, só que a arma que usava era o gás natural”, diz Tymoshenko. O resultado, afirma, foi que os principais líderes europeus “colocaram-se de joelhos perante Putin para salvar os seus países”.
Posição que considera ter sido um erro e que a par de outros, como a recusa da Alemanha e da França de que a Ucrânia pudesse aderir à NATO, contribuíram para a guerra que se vive atualmente. “O medo e a fraqueza do Ocidente produziram um monstro”, sentencia, exigindo força “igual ou maior” à da Rússia para enfrentar Putin, porque ele “não entende outra linguagem”. O seu objetivos, diz, é refazer a ordem mundial e “criar um novo império no século XXI”.
Desde 2009, Tymoshenko afastou-se de Yuschenko e passou a tentar correr em pista própria. Concorreu à presidência em 2010, mas foi derrotada por Viktor Yanukovich. Durante a liderança do adversário, próximo do Kremlin, foi condenada a uma pena de prisão num processo que denunciou como político. Mais uma vez, uma revolução na Ucrânia mudaria a sua vida: após a EuroMaidan, em 2013, foi libertada.
Por mais duas vezes voltou a concorrer à presidência (2014 e 2019), mas não conseguiu ser eleita — a última vez em benefício de Volodymyr Zelensky. Atualmente, garante que não tenciona mover-lhe qualquer tipo de oposição: “Já não temos política na Ucrânia”, afirma, dizendo que todos os líderes políticos do país formam agora “uma única equipa”. E no futuro, depois de a guerra terminar? “O meu horizonte temporal não chega ao ‘Depois da guerra'”, assegura. Por agora, o objetivo é apenas um: vitória no território ucraniano e integração plena do país na Europa e na NATO.
Quando a guerra começou, em fevereiro, fazia parte da oposição ao Presidente Volodymyr Zelensky. Desde então, o que vos separa? Ou a situação é tão dramática que deixou de haver oposição?
Desde o início da guerra, quase tudo mudou. Há basicamente uma linha que divide a vida antiga, antes da guerra, da vida de agora. Já não temos política na Ucrânia. Todos os líderes políticos formaram uma única equipa, a equipa ucraniana. É claro que podemos achar que algumas coisas poderiam ser feitas de forma melhor, mas agora a nossa prioridade é fazer tudo para garantir a vitória. Depois da vitória, poderemos então voltar a apresentar as nossas diferenças, mas nunca antes de a guerra terminar.
No passado, e sobretudo desde a Revolução Laranja, tem sido defensora da ideia de uma Ucrânia mais próxima do Ocidente, que faça parte da NATO, mas ao mesmo tempo sem antagonizar abertamente a Rússia. As suas ideias mudaram desde então?
Nunca quis um compromisso com a Rússia à custa da integração europeia da Ucrânia. Quando era primeira-ministra, assinei uma carta para o secretário-geral da NATO com o pedido de um plano de ação para aderirmos à NATO. Infelizmente, nessa altura, em 2008, a França e a Alemanha bloquearam isto. Penso que isso foi um erro tremendo, tremendo. Se a Ucrânia tivesse sido aceite na NATO à altura, estou confiante que não teríamos esta guerra agora. Por isso, este é um exemplo de um erro cometido no passado que produziu uma catástrofe. A ideia de compromisso com a Rússia nunca foi o meu maior objetivo, o meu objetivo principal era conseguir o desenvolvimento europeu da Ucrânia.
O que acha das posições adotadas agora pela França e a Alemanha em relação à Ucrânia?
Depois do início desta guerra de larga escala contra a Ucrânia, nem a França nem a Alemanha podiam manter a sua política. Era óbvio que era altura de a alterarem, porque a velha política de apaziguamento em relação ao Kremlin foi exatamente o que nos levou a estas consequências difíceis. Portanto, estou muito feliz que tanto a Alemanha como a França tenham mudado e estes eram provavelmente os países com mais dificuldade em mudar de posição, porque eram interdependentes da Rússia. Mas agora estão a tornar-se uma parte sólida da coligação anti-Putin.
A retórica de Putin e do Kremlin em relação a esta guerra caracteriza-a como uma libertação da Ucrânia de leste e fala numa perseguição aos ucranianos que falam russo. A Yulia também é uma ucraniana falante de russo. Como reage a estes argumentos?
Há muitos países onde as pessoas falam português para além de Portugal e isso não significa que os portugueses tenham de os ir proteger ou libertá-los de uma escravatura noutros países (risos). Estas ditas razões para justificar a guerra são mentiras. As verdadeiras razões pelas quais começaram a guerra foram quase abertamente anunciadas por Putin no ultimato que fez ao Ocidente antes da guerra. Está escrito num documento: fazer a expansão da NATO recuar às fronteiras de 1997, reconhecer as antigas repúblicas soviéticas como sendo parte da esfera de influência da Rússia e muitas outras exigências que, se fossem seguidas, arruinariam o mundo.
O objetivo real é ter controlo sobre parte do globo. O segundo objetivo é minar a liderança do Ocidente na ordem mundial e tornar o mundo novamente bipolar, fazer de certa forma uma nova edição da Guerra Fria. O terceiro objetivo é redesenhar fronteiras pela força e criar um novo império no século XXI. Aquilo que ele está a fazer ao atacar a Geórgia, a Síria e agora a Ucrânia são passos para objetivos muito mais ambiciosos. Este é um pedaço de conhecimento que é importante o Ocidente ter. Quando perguntam ‘Porquê esta guerra da Rússia contra a Ucrânia?’, deviam perguntar: ‘Porquê esta guerra contra nós?’. Porque o objetivo de Putin é arruinar a ordem mundial e obter poder. Ele já é maior do que a Rússia, a sua ambição é muito maior.
Acha que há o risco de a Rússia invadir outros países, como a Moldávia?
A sua pergunta recorda-me o momento em que a Rússia começou uma guerra contra a Geórgia, em 2008. Alguns dos meus amigos, muitos deles políticos ocidentais, encontravam-se comigo e diziam ‘Vocês são os próximos’. E eu dizia ‘É impossível. Não temos disputas de território com a Rússia, temos relações mais ou menos normais — à altura —, não há motivos para uma guerra’. Não acreditava que nós éramos os próximos. Mas passa-se o mesmo agora. Há muitos líderes que também não acreditam que são eles os próximos, mas o certo é que aconteceu com um país pacífico e soberano como a Ucrânia. É por isso que considero que a Finlândia e a Suécia tomaram a decisão certa ao juntarem-se à NATO. Esta é a única forma de estarem protegidos e de proteger a Europa desta guerra de expansão.
A NATO tem de deixar de ser mais ou menos um clube seleto de alguns países. A estratégia mais forte para conter e prevenir a guerra não são as armas nucleares, são os sistemas de defesa coletiva. E a lição que devemos aprender é que, se queremos proteger a Moldávia, então a Moldávia deve entrar na NATO. Se queremos impedir um novo ataque à Ucrânia depois da guerra, então a Ucrânia deve entrar na NATO. Os países que não estão protegidos é que provocam os ditadores e os regimes autoritários e os levam à guerra. Não é a força que provoca a agressão, é a fraqueza. É por isso que a minha mensagem é a de que não conseguiremos travar este mal no território da Ucrânia se não alterarmos a nossa arquitetura de segurança. E aí a guerra pode chegar a qualquer país.
Conheceu pessoalmente Vladimir Putin. Acha que ele passou por uma transformação ou à altura já tinha os mesmos projetos imperalistas?
A partir de uma certa idade as pessoas não mudam, acabam apenas por demonstrar a sua essência real com o tempo. Quando eu era primeira-ministra ele já estava a fazer o que está a fazer agora, no fundo, só que a arma que usava era o gás natural. Lembre-se que, em 2009, ele impediu o fluxo de gás russo para a Europa quando estavam 20 graus negativos, em pleno inverno. Não se preocupou com o facto de haver crianças sem aquecimento em hospitais ou famílias em crise severa na Europa. A única coisa que lhe importava era que os principais líderes europeus estavam a vir ter com ele. Em termos figurativos, colocaram-se de joelhos perante Putin para salvar os seus países. E ele sentiu-se mais poderoso.
A força de Putin não vem de uma economia forte, de uma sociedade democrática ou da proteção dos direitos humanos. A sua força vem de um ultrapassar consciente das linhas vermelhas. E a sua mensagem é a força, portanto a única resposta que entende é uma força igual ou maior. Putin não entende outra linguagem. Neste momento, ele ainda acredita que o Ocidente está com medo de lhe responder e de usar a força necessária. O medo e a fraqueza do Ocidente produziram um monstro. E é por isso que pedimos a todos os líderes ocidentais e países do mundo livre para alcançarmos a vitória no campo de batalha e terminarmos isto hoje no território ucraniano, não permitindo que se espalhe para lá da Ucrânia. Quando Roosevelt assinou a lei do Lend-Lease [programa de apoio dos EUA a Reino Unido, França e URSS durante a II Guerra], disse: “A água deve extinguir o fogo no ponto em que ele começa”. A situação agora é esta.
Foi primeira-ministra, esteve presa durante a presidência de Viktor Yanukovich, concorreu várias vezes à presidência. Ainda acha que há hipóteses de ser Presidente da Ucrânia, depois de a guerra terminar? Continua a ser um objetivo para si?
A guerra mudou significativamente a nossa consciência. Em tempos normais, era natural ter este objetivo de ganhar eleições e ter uma oportunidade de mudar o país para melhor. Mas, agora, todos os dias rezo pela vitória e faço o que posso, dentro das minhas capacidades. O meu horizonte temporal não chega ao ‘Depois da guerra’. Depois da guerra, a vida irá mostrar quem é o melhor líder para revitalizar a Ucrânia como parte natural da Europa. Mas, por enquanto, a nossa vida é a vitória, o nosso objetivo é a vitória, o nosso sonho é a vitória. De certa forma, a política já não existe. Quando se veem crianças ucranianas a serem mortas, mulheres a serem violadas, velhos a serem mortos… Não podemos pensar na competição política. O desejo é o da vitória e de responsabilizar os criminosos de guerra, aqueles que tomaram decisões e deram ordens para começar esta guerra e aqueles que estão a matar ucranianos. Esta é uma tragédia da esfera global no centro da Europa. Temos de travá-la. E depois construir a vida.