Depois de este verão ter crescido a controvérsia em torno do Mundial de Futebol do Qatar, que excecionalmente vai decorrer a partir de 20 de novembro, altura do ano em que as temperaturas naquele país do Médio Oriente já são um pouco menos tórridas (as máximas continuam a rondar uma média de 29,5ºC), várias publicações no Facebook recuperaram o exemplo de Johan Cruyff , garantindo que em 1978 o “Flying Dutchman” se recusou jogar o torneio por “motivos políticos”.

O argumento é simples: se o holandês, considerado um dos melhores jogadores de futebol da História, abdicou, por princípio, da derradeira possibilidade que tinha para juntar o título de campeão mundial ao palmarés (a Holanda chegou à final e acabou por perder contra a anfitriã Argentina), por que não fazem o mesmo os craques atuais?

Na altura, a Argentina era liderada com a mão de ferro do ditador Jorge Rafael Videla, que morreu em 2013 na prisão de Buenos Aires para onde foi enviado depois de ter sido condenado a duas penas de prisão perpétua por crimes contra a humanidade. Exatamente no mesmo ano, o britânico Guardian publicou uma investigação a dar conta dos abusos cometidos contra os milhares de migrantes que o Qatar recebeu no país para construir as infraestruturas necessárias para o acolhimento de um evento desta envergadura — “Os ‘escravos’ do Mundial do Qatar” era o título da reportagem que revelava casos de trabalhadores que não recebiam salários há meses; casos de trabalhadores a quem era negada água, em pleno deserto; casos de trabalhadores cujos passaportes tinham sido retidos pelos empregadores; e casos de trabalhadores que tinham morrido de forma súbita, em pleno local de construção.

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Nove anos depois, e apesar de a lei laboral no emirado ter sido alterada, o cenário não é muito diferente e o número de mortes associada à construção dos estádios — 6.750 reportados no início de 2021 — nem sequer é o único fator que faz com que cada vez mais se levantem vozes contra o Mundial de Futebol, agora a pouco mais de um mês do apito inicial.

O sempre polémico Éric Cantona já garantiu que não vai ver nem um jogo: “Sejamos honestos, este Campeonato do Mundo não faz sentido. É uma aberração.” Também em França, o presidente da Câmara de Paris foi o último a juntar-se ao movimento de boicote que tem levado uma série de cidades a anunciar que não vão criar espaços para que os adeptos se reúnam para ver as partidas. A competição “transformou-se progressivamente numa catástrofe humana e ambiental, incompatível com os valores que esperamos que o desporto — e especialmente o futebol — promova”, justificou há dias o autarca de Marselha. Fazer o Mundial no Qatar foi “um disparate em termos de direitos humanos, ambiente e desporto”, já tinha dito antes o seu homólogo de Lille.

Em março, vários jogadores da seleção inglesa assumiram-se chocados com o histórico “chocante, dececionante e horrendo” de violações dos direitos humanos no Qatar; em junho, o País de Gales foi notícia ao revelar que alguns dos membros do seu staff não iam viajar para lá, em protesto contra a política para os direitos dos homossexuais no país; e no início de outubro a Federação Dinamarquesa de Futebol revelou que as famílias dos jogadores não vão estar no Mundial, também como forma de protestar contra o estado dos direitos humanos no Qatar, mas a verdade é que, pelo menos até agora, nenhum futebolista tomou a decisão de não participar na competição.

O que nos traz de volta a Johan Cruyff e àquela que foi uma das mais disseminadas teorias da história do futebol — que afinal não tinha qualquer fundo de verdade.

Não foi, como chegou a dizer publicamente o seu amigo Jordi Finestres, por não querer “visitar a Argentina em protesto contra a ditadura da Videla” que Cruyff, na altura no Barcelona, não jogou com a Laranja Mecânica.

E quem o garantiu foi o próprio futebolista — já com vários anos de atraso. Numa entrevista dada 30 anos depois desse mundial, em 2008, à Catalunya Radio, Johan Cruyff — pai de Chantal, Susila e Jordi, que também jogou no Barcelona e hoje é diretor desportivo do clube catalão — revelou que não quis viajar para a Argentina porque ainda estava em choque, depois de ter sido atacado e quase raptado, na casa onde morava, perante a mulher e com os filhos no quarto ao lado.

“Deve saber que tive problemas no final da minha carreira de jogador aqui e não sei se sabe que alguém me encostou uma espingarda à cabeça, amarrou-me e amarrou a minha mulher à frente dos filhos no nosso apartamento em Barcelona”, revelou o, à época, treinador, entretanto desaparecido em 2016, aos 68 anos. Apesar de, na altura, ter conseguido fugir, admitiu, o trauma ficou: “As crianças iam à escola acompanhadas pela polícia. A polícia dormiu em nossa casa durante três ou quatro meses. Eu ia a jogos com um guarda-costas”, recordou. “Todas estas coisas mudam o teu ponto de vista em relação a muitas coisas. Há momentos na vida em que existem outros valores. Queríamos parar com isto e ser um pouco mais sensatos. Era o momento de deixar o futebol e eu não podia jogar no Campeonato do Mundo depois disto.”

Anos mais tarde, em entrevista ao peruano “Deporte Total”, Cruyff voltou a falar sobre o assunto e a garantir que a sua decisão não teve nada de político: “Se tivesse sido por razões políticas, nunca teria jogado em Espanha durante a ditadura de Franco. Tinha anunciado a minha reforma do futebol internacional em 1977. Cansei-me, já tinha cumprido a minha pena. Inventaram muitas histórias sobre isso”.

Na sua autobiografia, “Johan Cruyff 14”, o avançado holandês não relatou uma versão diferente dos factos.” Os seis meses seguintes, mais coisa menos coisa, foram terríveis. Tivemos vigilância policial permanente. Quando ia de viagem, quando levava as crianças à escola, quando ia treinar ou jogar pelo Barcelona (…) Os agentes dormiam todas as noites na nossa sala de estar. Aquele ambiente era insuportável. Insuportável. O stress era tanto que eu não aguentava. Não consegui sequer aliviar-me um pouco falando sobre isso. A polícia não parava de dizer, vezes e vezes sem conta, por favor não diga nada, porque podes dar ideias a outras pessoas malucas”, recordou o jogador, que dedicou um capítulo inteiro àqueles tempos. “Nessa situação não se deixa a família sozinha durante oito semanas, por isso não havia maneira de eu ir para a Argentina com a equipa holandesa. Para jogarmos um Campeonato do Mundo, temos de estar totalmente concentrados. Se não estivermos, ou se tivermos distrações ou dúvidas ou o que quer que seja, não o devemos fazer. Porque não vai sair daí nada de bom.”

Conclusão

Não é verdade que Johan Cruyff tenha boicotado o Mundial de Futebol de 1978 em protesto contra o regime ditatorial na altura vigente na Argentina (Videla foi Presidente entre 1976 e 1981). O avançado holandês, um dos melhores futebolistas de todos os tempos, não alinhou pela seleção nacional do seu país porque ainda estava a recuperar do trauma de ser sequestrado em plena casa, perante a mulher e os filhos. “Não podia jogar no Campeonato do Mundo depois disto”, assumiu numa entrevista a uma rádio da Catalunha em 2008, trinta anos depois do campeonato que a Holanda perdeu para a equipa anfitriã.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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