Uma publicação no Facebook afirma que a variante Ómicron, recém-descoberta na África do Sul e Botswana, não existe e que é “uma reação do corpo humano com a proteínas spike contida nas vacinas”. O autor utiliza até um argumento de autoridade para suportar estas alegações, afirmando que o ministro da Saúde da África do Sul acusou o Reino Unido, a Europa e a comunicação social de estarem a mentir sobre a nova variante do SARS-CoV-2.

O facto de defender que a variante não existe e que ao mesmo tempo é “uma reação do corpo humano” não é a única incongruência desta publicação. A primeira é, desde logo, a declaração atribuída ao ministro da saúde sul-africano, Joe Phaahla, cuja fotografia aparece no conteúdo. O governante nunca negou a existência da Ómicron, mas criticou a abordagem do mundo ocidental quando a nova variante foi reportada às autoridades de saúde, classificando-a de “draconiana” e “mal direcionada”.

A publicação em análise.

Quem ouvir a intervenção de Joe Phaahla na conferência de imprensa da última na sexta-feira, citada pelo India Today, percebe o contexto em que as críticas foram feitas: o ministro referia-se às restrições de viagens que alguns países impuseram aos voos com origem na África do Sul, argumentando que vai “contra as normas aconselhadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)”: “Sentimos que algumas das lideranças estão a encontrar bodes expiatórios para lidar com um problema mundial.”

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Ao longo do discurso, Joe Phaahla põe sempre a tónica na evidência científica, garantindo que o governo sul-africano e os cientistas nacionais agiram “com transparência” e reportaram a descoberta da nova variante “de acordo com as normas e padrões prescritos pela OMS”. E, nunca recusando que a variante exista (pelo contrário), o ministro acrescenta: “Em nenhum momento [os cientistas] disseram ter evidências de que esse vírus é mais transmissível.”

“Eles simplesmente disseram que, como tem acontecido com outras mutações, algumas delas tiveram o efeito de serem mais transmissíveis, sem isso necessariamente significar também que em termos de sua gravidade tem mais impacto na gravidade da doença”, descreveu Joe Phaahla. E prossegue: “Em nenhum momento os cientistas que descobriram esta variante disseram que ela seria resistente às vacinas que estão a ser utilizadas neste momento.”

O surgimento de novas variantes do coronavírus não é um fenómenos estranho — na verdade, é mesmo expectável. Como não têm metabolismo, todos os vírus precisam de infetar uma célula e apoderar-se da sua maquinaria para se multiplicarem aos milhões. Acontece que, quando essas cópias são reproduzidas, podem ocorrer erros — que são tanto mais prováveis quanto maior for o número de novas partículas virais. No pico da infeção, cada pessoa transporta dentro de si entre mil milhões e 100 mil milhões de partículas virais, apontou o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, em declarações ao Observador. Todas elas são uma oportunidade para novas mutações.

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Parte da importância de atingir elevadas coberturas vacinais é a de precisamente travar o grande número de novas partículas virais. Sabe-se que as pessoas vacinadas e as pessoas não vacinadas, quando infetadas, produzem cargas virais semelhantes, tal como Manuel Carmo Gomes e o engenheiro Carlos Antunes descrevem num ensaio publicado na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Mas não só a vacina consegue, em muitos casos, evitar a própria infeção (quando não o faz, na esmagadora maioria das vezes evita os sintomas da Covid-19 e o desenvolvimento de quadros clínicos severos), como permite aos infetados vacinados que a carga viral diminua em menos tempo. E isso dá menos oportunidade ao vírus de entrar em mutação.

A maior parte desses erros são indiferentes para o funcionamento normal dos vírus. Muito são prejudiciais — tornam-nos menos transmissíveis, por exemplo —, condenando-os ao desaparecimento por seleção natural. Só que as mutações benéficas prosseguem, tendem a continuar em circulação e a manter-se, porque a natureza poupa as entidades biológicas (seres vivos ou não) melhor adaptados ao meio e elimina as que estão menos aptas a resistir, explicou ao Observador o virologista Celso Cunha, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa.

Os vírus cuja informação genética está guardada em moléculas de ARN — como é o caso do SARS-CoV-2 — sofrem mutações com mais facilidade porque essa cadeia genética é quimicamente mais instável do que as moléculas de ADN. A diferença do ARN para o ADN, a molécula que assegura o património genético dos seres vivos e de alguns vírus, é tão subtil quanto um átomo de oxigénio e outro de hidrogénio. No entanto, é quanto basta para estes vírus serem mais suscetíveis às tais mutações.

Mesmo assim, o coronavírus tem um truque na manga, prossegue o especialista: um genoma maior que a maioria dos vírus de ARN com uma característica semelhante à que existe em vírus de ADN que lhes permite identificar mutações e corrigi-las. Mas a mesma seleção natural que permitiu às girafas terem pescoços compridos para alcançarem o topo das árvores ou às borboletas terem padrões nas asas para espantarem predadores também permite que as mutações benéficas se multipliquem na natureza caso escapem aos mecanismos de correção dos vírus.

A variante Ómicron pode ser mais um exemplo disso. Quando a variante alfa veio destronar a variante espanhola (que era já por si uma evolução da variante descoberta originalmente na China) como a dominante na pandemia de Covid-19, fê-lo porque, graças às suas características genéticas, conseguia agarrar-se melhor às células, originava cargas virais maiores e e transmitia-se com maior facilidade sem causar doença mais grave.

Por sua vez, a variante delta revelou-se  mais transmissível do que a alfa e com maior capacidade de fintar o sistema imunitário e as vacinas que as autoridades de saúde já estavam a administrar — elas continuam a funcionar, mas aparentemente com menos eficácia. Tudo porque, mais uma vez, as mutações aconteceram no momento certo à hora certa. Por acaso. E a proeza pode estar a repetir-se (mas ainda não há certezas) com a variante Ómicron.

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Que ela existe, disso não há dúvidas: a primeira pessoa a alertar o mundo para a identificação da nova variante foi Angelique Coetzee, presidente da Associação Médica de África do Sul, que a 18 de novembro reparou que os sintomas exibidos por sete dos doentes que acompanhava na clínica privada onde é médica eram diferentes dos típicos quadros clínicos de quem estava infetado com a variante delta. Tinham sintomas leves, mas queixavam-se sobretudo de fadiga, dores corporais e dores de cabeça.

“Os sintomas neste estágio estavam muito relacionados à infeção viral normal. E como não vimos muito Covid-19 nas últimas oito a 10 semanas, decidimos fazer o teste“, explicou a médica à Reuters, acrescentando que a experiência adquirida durante a terceira vaga da pandemia serviu para estar mais atenta aos sinais de alerta agora: “Isto [os quadros clínicos dos infetados com a variante Ómicron] não encaixava no perfil clínico” típico da variante Delta.

As amostras recolhidas nos doentes a 14 de novembro foram enviadas cerca de uma semana depois para o Instituto de Doenças Comunicáveis da África do Sul, que por sua vez avisou a Organização Mundial de Saúde. Dois dados confirmam que esta variante é diferente da Delta: em primeiro lugar, tem um número anormal de mutações, algumas das quais em locais críticos (por exemplo, na proteína que o vírus utiliza para se conectar às células ou nos pontos em que os anticorpos se ligam para neutralizar as partículas).

Em segundo lugar, os testes PCR, que são os mais fidedignos de todos os testes de diagnóstico disponíveis, não conseguem detetar um dos genes que tipicamente são procurados para confirmar uma infeção — tudo porque uma das características genéticas específicas da variante Delta (o gene S, que contém a informação relativa à proteína S) está modificada para uma nova configuração, própria e exclusiva da nova variante. Os testes PCR funcionam confirmando a existência de três genes-alvo, únicos da Delta. Um deles falhou em todos os testes, explicou a OMS, pelo que se procedeu à sequenciação genética e se confirmou que se estava perante uma nova variante.

Provada a existência da variante Ómicron, também está errado afirmar que qualquer reação do corpo humano à vacina foi provocada pelas proteínas S que ela contém — simplesmente porque nenhuma vacina contém proteínas S. Todas as vacinas contra a Covid-19 que estão a ser ou já foram administradas em Portugal contêm a informação genética relativa à proteína S (não a própria proteína) e simulam uma infeção para obrigar as células a produzirem-na, estimulando o sistema imunitário a reagir às moléculas. Assim, perante uma infeção real, o sistema imunitário saberá como reagir mais depressa e servir-se-á dos anticorpos e da memória celular produzidos após a vacinação.

Porque é que demora tanto produzir em escala uma vacina como a da Pfizer?

Conclusão

Não é verdade que o ministro da saúde da África do Sul tenha acusado o Reino Unido, a Europa e os media de mentirem sobre a existência da variante Ómicron: Joe Phaahla argumenta que as medidas tomadas por esses país na sequência da identificação da nova variante não são congruentes com a melhor evidência científica e que transformaram a África do Sul, que a detetou, num bode expiatório.

Mas que a nova variante existe, disso não há dúvidas: é o que mostram os resultados dos testes PCR feitos em território sul-africano e a sequenciação genética efetuada às amostras positivas. E não se trata de uma reação do corpo às proteínas S existentes nas vacinas, desde logo porque as vacinas não contêm a proteína S na sua composição.

Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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