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Como é que os vírus conseguem ser tão inteligentes? Uma desconcertante questão de sorte e azar

São partículas no limiar entre a vida e a ausência dela, mas estão sujeitos à seleção natural. Sofrem mutações por acaso, mas só as boas subsistem. Alguns entram mesmo no nosso ADN.

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Ninguém sabe a origem dos vírus. Uma teoria sugere que, nos primórdios da sua existência, eram células muito pequenas que invadiam células maiores, mas que por acaso perderam os genes que lhes eram inúteis à medida que evoluíam. Outra hipótese diz que os vírus são pedaços de informação genética que se soltaram de organismos maiores e ganharam a habilidade de saltar de célula em célula para se replicarem — também por acaso. Uma terceira proposta afirma ainda que os vírus são uma evolução de moléculas complexas que já existiam antes de a vida ter surgido no planeta e encontraram nos primeiros seres vivos a possibilidade de se multiplicarem. Como? Por coincidência.

Uma coisa parece contudo garantida para os virologistas: a história destas partículas, entidades que vivem no limiar entre a vida e a ausência dela, é feita de acasos. E o SARS-CoV-2, que atirou o mundo para a pandemia atual, não é exceção: a provar-se que surgiu naturalmente entre os humanos — a hipótese mais defendida neste momento, por oposição à teoria de que terá escapado acidentalmente de um laboratório chinês —, então sofreu mutações por acaso, saltou de uma espécie animal para outra por acaso; e deu origem a novas variantes, mais infecciosas, também por acaso.

E por mais desconcertante que seja, se surgir uma linhagem que escape ao ataque do sistema imunitário natural ou ao efeito das vacinas, isso também não passará de um mero acaso, garante o virologista Celso Cunha, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) da Universidade Nova de Lisboa.

Eis a razão de tanta coisa acontecer assim, ao acaso.

Vírus têm erros que os tornam mais aptos

Os vírus são parasitas: como não têm metabolismo, precisam de infetar uma célula e apoderar-se da sua maquinaria para se multiplicarem aos milhões. Acontece que, quando essas cópias são reproduzidas, podem ocorrer erros — que são tanto mais prováveis quanto maior for o número de novas partículas virais. Alguns deles, desses erros, podem ser prejudiciais para os vírus (tornando-o menos transmissível, o que faz com que desapareça rapidamente, ou demasiado letal, o que acaba rapidamente com os hospedeiros, por exemplo) e as partículas que os tiverem tendem a desaparecer antes até de serem detetados.

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Outros erros são benéficos para eles: dão-lhes maior capacidade de se esconderem do sistema imunitário, a habilidade de infetar mais tipos de células ou de serem mais transmissíveis. As partículas com esses erros tendem a continuar em circulação.

Os coronavírus, incluindo o SARS-CoV-2 e o vírus que causa as constipações, são diferentes: têm um genoma maior que a maioria dos vírus de ARN e, à conta disso, adquiriram uma característica semelhante que também lhes permite identificar mutações e corrigi-las. Só que a mesma seleção natural que permitiu às girafas terem pescoços compridos para alcançarem o topo das árvores também permite que as mutações benéficas se multipliquem na natureza caso escapem aos mecanismos de correção dos vírus, condenando as menos aptas ao desaparecimento.

Ora, não há nenhuma partícula química que extermine os vírus com más mutações e dê um empurrão aos vírus com erros bons, prossegue o cientista. É só uma questão de seleção natural: as duas versões do vírus estão numa espécie de luta pela sobrevivência, mas só aquela que estiver mais apta a resistir é que vai subsistir com mais prevalência. Por exemplo, um vírus que seja extremamente letal, matando os hospedeiros pouco tempo após a infeção, não é necessariamente o mais apto a prevalecer pelas regras da seleção natural: afinal, quanto mais tempo o hospedeiro permanecer vivo, maior o intervalo temporal que o vírus pode usar para se continuar a multiplicar.

Claro que a sorte dos vírus (que são, muitas vezes, o azar de quem está infetado por eles) é feito de truques na manga. Aqueles cujo material genético está depositado em moléculas de ADN — como o vírus do papiloma humano (HPV), do herpes, os adenovírus que causam gastroenterites e o da hepatite B — têm um mecanismo para corrigir mutações: umas enzimas que, não só copiam o material genético, como têm uma região capaz de sondar erros e substituir a informação genética errada pela correta. Este mecanismo inteligente permite emendar tanto as mutações prejudiciais para o vírus como as benéficas, mas as partículas que acabam por ficar com mais mutações benéficas para o vírus são aquelas que deverão continuar.

Os vírus cuja informação genética está guardada em moléculas de ARN são aqueles que sofrem mutações com mais facilidade porque quimicamente são mais instáveis. A diferença do ARN para o ADN, a molécula que assegura o património genético dos seres vivos e de alguns vírus, é tão subtil quanto um átomo de oxigénio e outro de hidrogénio. No entanto, é quanto basta para estes vírus serem mais suscetíveis de sofrer as tais mutações.

A maior parte dos vírus de ARN não têm a tal capacidade para reparar o próprio genoma — e, para esses tipos de partículas, não há segundas oportunidades. Mas os coronavírus, incluindo o SARS-CoV-2 e o vírus que causa as constipações, são diferentes: têm um genoma maior que a maioria dos vírus de ARN e, à conta disso, adquiriram uma característica semelhante que também lhes permite identificar mutações e corrigi-las. E a mesma seleção natural que permitiu às girafas terem pescoços compridos para alcançarem o topo das árvores ou às borboletas terem padrões nas asas para espantarem predadores, também permite que as mutações benéficas se multipliquem na natureza caso escapem aos mecanismos de correção dos vírus, condenando as menos aptas ao desaparecimento.

Parte do genoma do vírus da imunodeficiência humana (VIH) consegue incorporar-se no ADN das células que infeta, normalmente em regiões inócuas que não comprometem nenhuma função essencial do organismo. Inconsciente de que aquele pedaço de informação não pertence ao hospedeiro, as células copiam-na como se se tratasse de outra parte normal do ADN, produzindo novas partículas virais.

No caso da Covid-19, temos assistido aos efeitos da seleção natural uma vez atrás da outra. Quando a variante alfa, originalmente detetada no Reino Unido, foi identificada pela primeira vez, descobriram-se mutações que lhe conferiam um maior potencial evolutivo: agarrava-se melhor às células, originava cargas virais maiores e transmitia-se com mais facilidade sem causar doença mais grave. Essa variante — a dominante em Portugal até há pouco tempo — tinha um número anormal de mutações em relação à variante espanhola (a mais prevalente antes daquela).

Mas não foi isso que determinou o seu sucesso: foi, isso sim, o lugar onde essas mutações ocorreram — pontos críticos que alteraram de tal modo a estrutura do próprio vírus e que lhe deram vantagem no momento de infetar o hospedeiro. Se o mesmo número de mutações ocorresse noutros pontos quaisquer podiam ter condenado a nova variante ao desaparecimento; ou então simplesmente não tinham mudado em nada o curso do vírus — o que é, na verdade, o mais comum. Porque é que aconteceu assim? Adivinhou: por acaso.

Com a variante britânica em circulação, foi como se a seleção natural se tivesse tornado mais picuinhas: dali para a frente, só havia hipóteses de ser dominante uma nova variante que conseguisse chegar mais longe que esta. Foi o que aconteceu com a variante delta, mais transmissível que a alfa e com maior capacidade de fintar o sistema imunitário e as vacinas que as autoridades de saúde já estavam a administrar (elas continuam a funcionar, mas aparentemente com menos eficácia). E tudo porque, mais uma vez, as mutações aconteceram no momento certo à hora certa. Mas basta que um novo conjunto de mutações torne uma partícula mais transmissível, mais ágil a escapar ao ataque do organismo ou capaz de infetar mais tipos de células para que a variante delta seja destronada.

A técnica “Cavalo de Tróia” que explica o sucesso do vírus da sida

Mesmo que isto coloque mais dificuldades ao sistema imunitário para travar a infeção (e às autoridades de saúde para travar a pandemia), a tarefa continua menos complexa do que enfrentar a sorrateira técnica de infeção do vírus da sida, que lhe permitem multiplicar-se durante anos no organismo do hospedeiro sem fazer soar alarmes. É que, como descreve o virologista Celso Cunha, parte do genoma do vírus da imunodeficiência humana (VIH) consegue incorporar-se no ADN das células que infeta, normalmente em regiões inóquas que não comprometem nenhuma função essencial do organismo. Inconsciente de que aquele pedaço de informação não pertence ao hospedeiro, as células copiam-na como se se tratasse de outra parte normal do ADN, produzindo novas partículas virais. Escondido nos núcleos das células, como os gregos dentro do Cavalo de Tróia, o vírus da sida passa despercebido às células do sistema imunitário.

O vírus do herpes pode deixar o sistema imunitário ocupado durante toda a vida, mas também o estimula a estar alerta para outros agentes infecciosos. "São vírus que mantêm o nosso sistema imunitário acordado", resume Celso Cunha. Mais: como não costuma causar doenças graves, o vírus do herpes encontrou um equilíbrio na convivência com os humanos.

E não se fica por aqui: o VIH adquiriu a capacidade de infetar precisamente as próprias células do sistema imunitário, em particular os leucócitos — um tipo de células brancas que são extremamente resistentes a ataques, até mesmo às células do próprio organismo concebidas para exterminar outras células que estejam infetadas. Isto não só dificulta a ação dos medicamentos (atualmente as pessoas com sida são tratadas com um cocktail de fármacos, mas que não curam a doença), como deixa o sistema imunitário mais suscetível de ser derrubado por doenças oportunistas, causadas por outros parasitas.

Ora, o vírus da sida já existia antes de ter sido detetado em humanos pela primeira vez nos anos 80, mas saltou dos chimpanzés e gorilas após ter sofrido mutações que lhe permitiu infetar novas espécies. Por acaso? Sim, mas este é um daqueles casos onde a humanidade pressionou a natureza para que assim fosse: a teoria mais aceite para explicar como o VIH chegou às pessoas diz que, após ter sofrido essas mutações, o vírus encontrou mais oportunidades para chegar à nova espécie por causa do aumento da caça furtiva. Bastou um caçador ter sido cortado ou mordido por um chimpanzé ou gorila durante um ataque em que o sangue de um esteve em contacto com o do outro para o vírus da sida ter encontrado o seu momento.

Os vírus que resistem por não fazer mal a (quase) ninguém

O vírus do herpes é considerado o mais bem sucedido de todos: a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que quase 70% da população mundial tem herpes oral e que cerca de 11% tem herpes genital. O sucesso do primeira é explicado por dois motivos. Em primeiro lugar, é extremamente fácil de se transmitir: a maioria de nós é exposto ao vírus do herpes oral antes de atingir os cinco anos de idade, recebendo-o através dos beijos. Em segundo lugar, o vírus do herpes consegue multiplicar-se sem provocar sintomas ao hospedeiro: viaja até às células do sistema nervoso próximas à espinal medula e esconde-se lá. É assim que permanece até que, por algum motivo (como o stress, a falta de energia ou a exposição a demasiada luz solar), se reativa, manifestando-se com erupções cutâneas na região oral.

Nem tudo é mau e isso é outra das formas como os vírus podem ser inteligentes na sua interação com os humanos. O vírus do herpes pode deixar o sistema imunitário ocupado durante toda a vida, mas também o estimula a estar alerta para outros agentes infecciosos. “São vírus que mantêm o nosso sistema imunitário acordado”, resume Celso Cunha. Mais: como não costuma causar doenças graves, o vírus do herpes encontrou um equilíbrio na convivência com os humanos. As pessoas ficam infetadas para toda a vida, possivelmente dependentes de medicação caso o vírus alguma vez se revele, mas em contrapartida mantêm o sistema imunitário ativo sem provocar grandes transtornos.

Outros vírus são simplesmente bons: vivem dentro do corpo humano e infetam bactérias que, se não forem mantidas sob controlo, podem provocar doenças aos hospedeiros. Os bacteriófagos — assim se chamam esses vírus — são a entidade biológica mais abundante do planeta e não se importam com a carga de trabalhos: como infetam colónias inteiras, conseguem multiplicar-se aos triliões. E aos humanos dá jeito: as bactérias morrem depois de ser transformadas em fábricas, impedindo o surgimento de doenças.

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