No início de janeiro, o Papa Francisco foi notícia depois de se tornar viral um vídeo em que é possível vê-lo a perder a paciência com uma mulher quando cumprimentava alguns fiéis na Praça de S. Pedro, no Vaticano, na noite da passagem de ano. Francisco irritou-se quando a mulher lhe puxou o braço com força, fazendo com que perdesse momentaneamente o equilíbrio. Para se soltar, o líder da Igreja Católica deu-lhe uma palmada na mão. O Papa pediu desculpas publicamente pelo incidente no dia seguinte, admitindo que tinha sido um “mau exemplo” e explicando que “muitas vezes perdemos a paciência” e que isso também acontecia consigo.

O blogue “Amigo de Israel 2.0”, gerido por “patriotas portugueses e amigos de Israel”, deu conta do sucedido, apontando que se dizia “que a mulher era uma católica chinesa que queria sensibilizar o Papa para a perseguição dos cristãos no seu país”, uma informação que não surgiu em nenhum dos principais órgãos de comunicação internacionais que deram conta da situação (a agência de notícias Reuters escreveu mesmo que a fiel não tinha sido identificada). A confirmar-se o boato, o blogue afirmava que a atitude do Papa estaria então em “linha com toda a sua atuação, sempre de braços abertos para o comunismo e o islamismo”.

Imagem da entrada de 1 de janeiro de 2020 em que o “Amigo de Israel 2.0” deu conta do sucedido na Praça de S. Pedro, no Vaticano, na passagem de ano

Prova disto é, segundo o “Amigo de Israel 2.0”, uma frase alegadamente proferida pelo Pontífice — Francisco terá defendido que os “cristãos assassinados por muçulmanos são testemunhas do plano de Deus para a coexistência pacífica de cristãos e muçulmanos”. Mas será que o Papa disse mesmo isto?

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A frase em causa foi retirada de um outro site, o “Ecoando a Voz dos Mártires”, o blogue de uma organização sem fins lucrativos com o mesmo nome sediada em São Paulo, Brasil, e que, de acordo com a informação disponibilizada no sua página de Facebook, “ministra palestras e eventos gratuitos em instituições religiosas e educacionais sobre o antissemitismo e a perseguição religiosa a cristãos e minorias no mundo muçulmano” com o objetivo de “promover a conscientização necessária para o engajamento da sociedade brasileira quanto ao financiamento de ações humanitárias para socorrer as vítimas da perseguição e o apoio às iniciativas de combate à intolerância religiosa nos foros nacional e internacional”.

A 11 de dezembro de 2018, o “Ecoando a Voz dos Mártires” publicou uma tradução de uma publicação do Jihad Watch, um site dirigido pelo autor e blogger norte-americano islamofóbico Robert Spencer que o “Amigo de Israel 2.0” também segue de perto, que citava uma notícia do Catholic News Service, uma agência norte-americana de notícias sobre a Igreja Católica, onde a declaração alegadamente proferida pelo Papa surgia. Publicada no dia antes, 10 de dezembro, esta dizia respeito à mensagem papal lida durante a cerimónia de beatificação de 19 religiosos (seis mulheres e 13 homens) que morreram durante a guerra civil argelina, que opôs o governo a grupos islamitas. O primeiro parágrafo da notícia dizia na íntegra: “As vidas dos 19 homens e mulheres religiosas martirizadas durante a guerra civil argelina são um testemunho do plano de amor e coexistência pacífica entre cristãos e muçulmanos, disse o Papa”.

Outra imagem do mesmo blogue em que se refere que o Papa terá dito que os “cristãos assassinados por muçulmanos são testemunhas do plano de Deus para a coexistência pacífica de cristãos e muçulmanos”

No restante texto era explicado que, com a beatificação dos 19 cristãos assassinados entre 1994 e 1996, “a Igreja desejava testemunhar o seu desejo de continuar a trabalhar para o diálogo, a harmonia e a amizade”, valores que levaram à morte dos religiosos. “Acreditamos que este evento, sem precedentes no vosso país, irá desenhar um grande sinal de irmandade no céu argelino para o mundo inteiro”, declarou o líder da Igreja Católica, de acordo com o Catholic News Service.

Segundo a Vaticano News, o canal de notícias do Vaticano, o Papa Francisco instou, na mesma mensagem, os argelinos a curarem as feridas do passado e a cultivarem uma coexistência pacífica. Ao mesmo tempo que celebrava “a fidelidade destes mártires ao plano de Deus para a paz”, o líder da Igreja Católica admitiu que rezava pelos “filhos e filhas da Argélia que, como os mártires, se tornam vítimas da mesma violência por terem vivido com respeito pelos outros e fidelidade para com os seus deveres enquanto crentes e cidadãos”.

Em nenhuma destas notícias é possível encontrar a ideia divulgada pelo “Amigo de Israel 2.0” e pelo “Ecoando a Voz dos Mártires” de que o Papa defendeu que os cristãos assassinados na Argélia faziam parte do “plano de Deus para a coexistência pacífica de cristãos e muçulmanos”, mas antes que estes morreram por defenderem a paz e o diálogo, os mesmos valores que a Igreja Católica procura fomentar. É neste sentido que os mártires argelinos são um testemunho do plano de Deus para um mundo pacificado.

Conclusão

A publicação do “Amigo de Israel 2.0” trata-se de uma distorção das palavras escritas pelo Papa Francisco para a cerimónia de beatificação de 19 cristãos argelinos e da notícia do Catholic News Service, com origem num outro blogue, o brasileiro “Ecoando a Voz dos Mártires”. Tirado do contexto original, o primeiro parágrafo da peça da agência de notícias norte-americana foi usado para provar a ideia defendida pelo blogue português de que o líder da Igreja Católica tem defendido os islamitas.

Assim, segundo o sistema de classificação do Observador este conteúdo é:

Errado

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact-checking com o Facebook.

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