Uma publicação realizada no Facebook sugere que os testes PCR, que se popularizaram ao longo da pandemia de Covid-19 para despistar uma infeção pelo SARS-CoV-2 e que a Organização Mundial de Saúde (OMS) também aconselha para detetar a presença do vírus monkeypox, são uma farsa e não podem ser confiáveis.

“Já se sabia que a falibilidade dos testes PCR para a chamada C0v1d [Covid-19] chega ao ponto de estes, potencialmente, ‘testarem positivo para tudo e um par de botas’“, arranca a publicação, citando “uma médica portuguesa”. E prossegue: “Com a oportuna aparição da maleita dos símios, é a mafiosa OMS que dita o uso dos testes PCR também para a varíola do macaco. Já estamos a (re)ver o filme dos ‘assintomáticos infectados’? Acorda, povo”.

A publicação em análise remete para um link verídico da OMS sobre o diagnóstico de varíola dos macacos.

Por detrás destas afirmações, no entanto, está um conjunto de informações falsas e descontextualizadas que ignoram por completo os princípios científicos por detrás da testagem com PCR. Desde logo porque não é verdade que os testes PCR que servem para diagnosticar uma infeção por SARS-CoV-2, o vírus que causa a Covid-19, testam positivo “para tudo e um par de botas”: a tecnologia em que essa testagem se baseia é adaptada para detetar apenas o SARS-CoV-2, não qualquer outro agente patogénico.

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Teste PCR não dá positivo “para tudo e um par de botas” porque é altamente específico

Vamos então por partes.  Como o Observador já explicou noutros fact checks, o teste PCR para o vírus da Covid-19 identifica a presença de partes únicas do material genético (condensado em moléculas de ARN, mais simples que as de ADN que existem noutros vírus e nas células humanas, por exemplo) do SARS-CoV-2.

Para isso, utilizam-se peças complementares às porções genéticas únicas que se pretendem encontrar — os primers. Quando uma amostra chega a um laboratório, os investigadores extraem o ARN do vírus e submetem-no a uma transcrição reversa seguida de reação em cadeia da polimerase (RT-PCR) — uma técnica laboratorial que usa uma enzima (a transcriptase reversa) para transformar o ARN em ADN e copiá-lo muitas vezes.

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Primeiro, o ARN é colocado em contacto com uma mistura que contém a transcriptase reversa, os primers para partes específicas do material genético do SARS-CoV-2 e nucleótidos. Se essas partes específicas do material genético do vírus estiverem presentes, então, os primers ligam-se a eles. Se não estiver, o processo que vamos agora explicar não acontece e o teste é negativo.

Quando o primeiro primer se liga, a transcriptase reversa sintetiza uma cópia de cadeia única de ADN que preenche o resto do gene — o ADN complementar ou cDNA. Neste momento, a temperatura é elevada para 95ºC, o que desnatura as moléculas e remove a cadeia de ARN viral que serviu de molde a este processo.

Depois, a temperatura volta a baixar. É então que um novo primer se liga ao lado oposto do ADN complementar e uma segunda enzima, a Taq polimerase, gera uma outra cadeia para produzir uma cópia de ADN da região específica da informação genética viral.

Esta nova molécula de ADN — que não é mais do que uma transformação do ARN viral — sofre então várias amplificações. As duas cadeias do ADN são separadas por um processo de desnaturação, os primers ligam-se às sequências específicas e a Taq polimerase volta a criar novas cadeias para dar origem a mais moléculas de ADN.

O processo é repetido até que se obtenham milhares de milhões de cópias do ARN viral. Com esta quantidade de ARN viral disponível na amostra, é possível analisá-lo através de outras técnicas, como a sequenciação do próprio material genético. Se não houver nenhum vírus na amostra recolhida, este processo simplesmente não ocorre e o resultado é negativo.

De acordo com o Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), a confirmação laboratorial de infeção por SARS-CoV-2 ocorre em duas circunstâncias. Uma delas é perante “um resultado positivo no teste de amplificação/deteção de genoma de SARS-CoV-2 para, pelo menos, dois alvos diferentes no genoma viral, dos quais pelo menos um alvo é preferencialmente específico para este vírus”.

Outra é perante “um resultado positivo do teste de amplificação/deteção para a presença de sarbecovírus [um vírus da espécie SARS-CoV], sendo que a identificação de SARS-CoV-2 é feita através da sequenciação total ou parcial do genoma viral, mas desde que o fragmento sequenciado tenha uma dimensão superior à do fragmento de amplificação obtido”.

Mas, “sempre que forem obtidos resultados discordantes, deve ser colhida uma nova amostra do mesmo indivíduo, repetido o processo de deteção molecular e, se possível, associá-lo à sequenciação de, pelo menos, parte do genoma viral”, indica o mesmo instituto.

Todo este processo não exclui o surgimento de falsos positivos, mas esses casos são extremamente raros e normalmente estão associados a uma contaminação de amostras ou à má realização do teste — não à tecnologia em si. A especificidade dos teste está mesmo próxima a 100%, como repetiram as autoridades de saúde ao longo da pandemia.

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Tal como o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) chegou a explicar ao Observador, os falsos positivos podem ocorrer dependendo do “desempenho dos testes, má prática de colheitas ou do procedimento laboratorial”. No entanto, como a “especificidade dos testes que estão registados no Infarmed é elevada”, “não é expectável que os falsos positivos venham a ocorrer”.

Varíola dos macacos não “apareceu”: já existia e os testes PCR para o vírus também

A vantagem da tecnologia por detrás do teste PCR é que ela pode ser adaptada para detetar não apenas o vírus da Covid-19, mas também outros invasores — basta que as tais peças que se ligam ao material genético sejam trocadas para serem específicas para outro vírus. É um mecanismo que existe desde meados dos anos 80, como conta a farmacêutica Hoffmann–La Roche, que em 1991 comprou os direitos sobre a testagem PCR aos criadores desta tecnologia, a Cetus.

Por exemplo, é com uma testagem PCR que se despista uma infeção pelo vírus do papiloma humano (HPV) ou casos de clamídia, gonorreia, dengue, zika, fibrose quística e até cancros como a leucemia mielóide crónica. Os cientistas sabem as partes destes vírus, bactérias e células que são específicas para eles e não podem ser encontrados em quaisquer outras partículas ou agentes biológicos. Por isso, recorrem a primers que só têm capacidade para se ligarem a essas partes e a mais nenhumas.

A tecnologia também pode ser utilizada para analisar a compatibilidade de um doente com um órgão doado, identificar potenciais suspeitos que deixaram material genético nos locais em que foram cometidos crimes e até autenticar bens como caviar ou vinho, especifica a La Roche.

Quando o SARS-CoV-2 foi identificado pela primeira vez, foi preciso criar primers específicos para este vírus porque ele nunca tinha sido detetado e não havia testes PCR adaptados exclusivamente a este coronavírus. Não é uma dificuldade que se tenha com o vírus monkeypox, responsável pela varíola dos macacos, porque, ao contrário do que sugere a publicação em causa, esta doença não é nova.

A varíola dos macacos é endémica em alguns países africanos e até já provocou surtos ao longo dos anos em países ocidentais, como os Estados Unidos e Inglaterra. A novidade é meramente o surgimento desses surtos em países que nunca os tinham registado (Portugal é um deles); e em várias nações ao mesmo tempo.

Mas como a variante em circulação já era conhecida dos cientistas, também já havia testes PCR para detetar a presença destas partículas virais. Por exemplo, um estudo de 2008 descreve como é feito o “diagnóstico e avaliação da infeção pelo vírus da varíola dos macacos por ensaio quantitativo de PCR”, nomeadamente para diferenciar as duas variantes do monkeypox — a do Congo e da África Ocidental, que é a que está em circulação em Portugal.

Outro relatório, sobre um caso de varíola dos macacos detetado em Israel em 2018, confirmou que “o vírus foi detetado em swabs de pústulas por microscopia eletrónica de transmissão e PCR; e confirmado por ensaio de imunofluorescência, cultura de tecidos e ELISA”. Graças a esta experiência, a OMS confirmou que essa tecnologia, altamente específica e fiável, é a preferencial para confirmar uma infeção pelo vírus monkeypox.

Conclusão

Não é verdade que os testes PCR resultem positivo “por tudo e mais um par de botas”: a tecnologia que utilizam é que pode ser adaptada para detetar a presença de características genéticas específicas. Por isso é que os testes PCR tanto podem ser ajustados para detetar o SARS-CoV-2, como o vírus da varíola dos macacos.

Aliás, a testagem PCR já era utilizada para confirmar a infeção pelo vírus monkeypox antes do surgimento dos mais recentes surtos de varíola dos macacos em países onde a doença não é endémica. O conselho da OMS veio apenas reiterar que esse é o meio preferencial para obter um diagnóstico fiável.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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