No passado dia 15 de janeiro, sexta-feira — em pleno estado de emergência e depois de o Governo apertar as regras de confinamento da população e restrições ao comércio —, o restaurante Lapo, situado na zona do bairro da Bica, em Lisboa, publicou na sua página de Facebook um comunicado com o título “Estranha forma de vida”. No texto, os responsáveis pelo restaurante assumiam a recusa de cumprir com a ordem de encerramento de espaços de restauração (exceção feita para funcionamento em regime de take-away ou entrega ao domicílio) prevista no Decreto-Lei n.º 6-A/2021 de 14 de janeiro. Como justificação, António e Bárbara Guerreiro, os proprietários do espaço, invocaram o artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa — Direito de Resistência.
A referida tomada de posição depressa ganhou mediatismo e tornou-se conhecida de forma geral — a publicação mencionada, por exemplo, teve mais de 200 partilhas. Começaram, inclusivamente, a circular pelas redes sociais relatos de clientes que visitaram o dito restaurante no mesmo dia em que foi tomada a decisão de não fechar portas.
Apesar de esta segunda-feira, 18 de janeiro, o Lapo ter emitido outro comunicado onde anunciava que, “após profunda análise e ponderação”, decidira não reabrir “por respeito à sensibilização dos agentes da PSP” [o espaço foi visitado por agentes da Polícia de Segurança Pública na sexta-feira], uma dúvida ficou no ar: existe fundamento legal na invocação do 21º artigo da Constituição Portuguesa, que reserva aos cidadãos “o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”? Segundo os constitucionalistas consultados pelo Observador, o veredicto é unânime: não, não é viável utilizar o direito à resistência para justificar a recusa de encerramento.
Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”
Artigo 21º da Constituição da República Portuguesa
“A meu ver, esta interpretação é manifestamente improcedente” — é desta forma que Paulo Mota Pinto, que foi juiz do Tribunal Constitucional entre 1998 e 2007, caracteriza esta invocação do direito à resistência. Ao Observador, explica que o que está em causa “não é uma ofensa ilegítima [aos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição], é uma “ofensa” necessária. O que está aqui em causa é um conflito entre o direito à saúde e estas restrições — que estão legitimadas pela declaração do Estado de Emergência”. Ou seja, não há ilegalidade no ordem de encerramento porque ela é legitimada pela declaração de Estado de Emergência.
E Pedro Bacelar de Vasconcelos, outro dos constitucionalistas consultado pelo Observador, também reforçou que o direito à resistência só é aplicável perante ordens ilegais. “O direito de resistência é invocável como resposta a uma ordem ilegal […] Uma criança não pode invocar o direito de resistência para não comer a sopa toda”, exemplifica o ex-presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais da Assembleia da República.
O artigo 21º da Constituição também é claro ao dizer que o direito à resistência só é invocável “quando não seja possível recorrer à autoridade pública”. Paulo Mota Pinto menciona isso mesmo: “É importante perceber que este direito também só é invocável quando deixa de ser possível recorrer à autoridade pública. E, neste caso, os donos do restaurante podem fazê-lo. Podem iniciar um processo de providência cautelar, por exemplo.”
Pedro Melo, especialista em Direito Público e Regulatório com mais de 25 anos de carreira, também está em linha com este veredito e justifica-o invocando o artigo 19º da Constituição, que fala sobre a suspensão do exercício de direitos. “A aplicação do artigo 19º da Constituição é a credencial constitucional que permite ao governo (juntamente com o Presidente da República) decretar o Estado de Emergência”, logo, “a invocação desta norma [o tal artigo 19º] permite uma compressão de direitos fundamentais em prol de outros”. Segundo Pedro Melo, “quando há um conflito entre direitos fundamentais — neste caso poderia ser o direito à liberdade de circulação ou a livre iniciativa económica privada, por exemplo –, pode haver uma compressão, desde que ela não atinja o seu núcleo essencial (ou seja, eliminá-los), por força de ser necessário assegurar outros direitos como o direito à saúde pública”.
“Se não estivesse a decorrer esta pandemia que deu origem a um estado de emergência, um particular (o dono de uma empresa) poderia invocar o direito à resistência para impedir que o Estado fechasse o seu restaurante”. Estando o mundo a viver “num quadro de exceção” à conta da pandemia, “existe base constitucional — a que está prevista no artigo 19º — para permitir que o Governo atue da forma como tem atuado”, aponta o constitucionalista.
Conclusão
Não há dúvidas de que o setor da restauração é um dos que mais tem sofrido nos últimos tempos à conta dos efeitos diretos e indiretos da crise pandémica. Contudo, por muito que não sejam consensuais as medidas aplicadas para conter o avanço da Covid-19 em Portugal, não há legitimidade legal para invocar o direito à resistência (previsto no artigo 21º da Constituição Portuguesa) como justificação para não acatar uma ordem de encerramento.
De acordo com os especialistas consultados pelo Observador, há pelo menos dois motivos fortes que invalidam esta situação: 1º) a ordem à qual se resiste tem de ser ilegal para que o direito à resistência seja válido, algo que não se verifica porque a ordem de encerramento é legitimada pela declaração de Estado de Emergência; 2º) o recurso ao direito à resistência só pode ser feito “quando não seja possível recorrer à autoridade pública”, algo que neste caso era possível, já que os proprietários do restaurante em questão podiam ter instaurado um processo cautelar.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.