Em meados de janeiro, uma publicação no Facebook dava conta de um vídeo onde a médica brasileira Raissa Soares afirmava que a vacina contra a Covid-19 era mais perigosa do que o vírus. Trata-se da médica que nos últimos meses se tornou conhecida no Brasil por ter um entendimento contra-corrente da Covid-19, ao defender que é o “tratamento precoce”, com cloroquina ou hidroxicloroquina, que previne a doença e trava o contágio. A mesma médica que, em julho, fez um apelo direto nas redes sociais ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, para enviar cloroquina para a região de Porto Seguro, onde opera, pedido esse que foi atendido.
A publicação foi amplamente partilhada no Facebook mas tem várias falhas que levam a que seja classificada como uma publicação falsa. Em primeiro lugar, apesar de toda a comunidade científica admitir que a vacina contra a Covid-19 foi desenvolvida em tempo recorde, e os seus efeitos a longo prazo ainda estão a ser estudados, não há nenhum estudo que prove que a vacina é perigosa, ou, menos ainda, que “é mais perigosa do que o vírus”.
Há, inclusive, dados em sentido contrário. No final de janeiro, o ainda presidente da task force para o plano nacional de vacinação, Francisco Ramos, dava conta aos jornalistas de que tinham sido registadas um total de 1.332 reações adversas à vacina, que começou a ser inoculada em Portugal (e na Europa) no dia 27 de dezembro. Um número que estava “dentro do previsto”, e que dizia apenas respeito a pequenas reações como “tumefação [inchaço] do braço ou dor de cabeça”. “São 0,65 reações adversas por cada 100 vacinados, o que é um valor que está em linha com os dados provisórios que conhecemos do resto da Europa”, dizia na altura Francisco Ramos.
Já quanto a mortes provocadas pela vacina contra a Covid-19, não há qualquer relação direta com a toma da vacina. Foi o que concluiu o estudo da Agência Europeia do Medicamento (EMA) no final de janeiro, um mês depois de ter sido iniciada a vacinação em toda a Europa. Nesse estudo, divulgado a 29 de janeiro, a EMA descarta qualquer ligação entre a vacina da Pfizer/BioNTech e as mortes que ocorreram após a vacinação, em vários países, e diz que os dados recolhidos ao fim de um mês são consistentes com “o perfil de segurança da vacina”, não tendo sido identificados efeitos secundários que não estavam previstos.
Segundo a Agência Europeia do Medicamento, os casos reportados de pessoas que morreram depois de receber a vacina contra a Covid-19 em países como a Noruega, Finlândia, Dinamarca, Islândia e Suécia “não levantam preocupações de segurança”, uma vez que as mortes estavam relacionadas com doenças anteriores e não foram associadas à toma da vacina. Foi o que se verificou na Noruega, por exemplo, onde mais de duas dezenas de idosos morreram depois de terem recebido a primeira dose da vacina — o país não associou os óbitos à vacina e os médicos concluíram que a saúde das pessoas em causa já estava debilitada, e que mesmo os efeitos secundários leves da vacina podem ser mais nefastos em pessoas com a saúde mais débil.
Fact Check. Seis voluntários mortos depois de receberem a vacina contra a Covid-19?
Em declarações ao jornal Expresso a respeito do caso dos idosos falecidos na Noruega após primeira toma da vacina, Paulo Paixão, presidente da Sociedade Portuguesa de Virologia e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, foi perentório: quanto mais pessoas forem vacinadas mais pessoas vacinadas vão falecer, o que não quer dizer que uma coisa esteja relacionada com a outra. As autópsias, nessa altura, vão ser “fundamentais”, diz. “Com a vacinação em massa, há uma probabilidade grande de alguém vir a falecer nas semanas a seguir, é praticamente inevitável”, disse o virologista àquele jornal, acrescentando que, “até ao momento, a relação entre a vacinação e a mortalidade ainda não está provada, pelo que vai ter que se monitorizar essa situação e aqui as autópsias são fundamentais”.
Se, por um lado, as mortes após vacinação não podem, ainda, ser relacionadas de forma direta com a vacina, há outro dado que pode ser tido em conta: quantas pessoas morreram a mais, devido à Covid-19, face a anos anteriores? E aí não há dúvidas: a Covid-19 fez disparar a mortalidade em Portugal. É o que diz um relatório do Instituto Nacional de Estatística, que apresenta os números globais de mortes em 2020 (e primeira semana de 2021), em Portugal, em comparação com o ano anterior e com a média dos 5 anos anteriores.
E os números são estes: em 2020, morreram em Portugal 123.409 pessoas, mais 11.118 do que no ano anterior, e mais 12.220 do que a média dos últimos cinco anos. Um excesso de mortalidade que se começou a sentir sobretudo a partir de março, mês em que a pandemia chegou a Portugal. Só entre 4 e 10 de janeiro de 2021 morreram 3634 pessoas, mais 830 do que a média de 2015-2019 no mesmo período do ano.
Segundo o Jornal de Notícias, as 123.409 mortes registadas em Portugal no ano de 2020 traduzem o número mais elevado de mortes no país dos últimos cem anos, desde que foram registadas cerca de 154 mil mortes, em 1920. Nessa altura, vivia-se ainda o rescaldo da gripe espanhola, que matou milhões de pessoas em todo o mundo. Essa pandemia terá sido responsável pelo elevado número de óbitos de que há registo no país entre 1918 e 1920, e que, de acordo com o JN, foi de 253 mil (1918), 154 mil (1919) e 144 mil (1920).
Basta olhar para o passado dia 22 de janeiro, para ver que Portugal bateu um recorde: 721 óbitos em todo o país, o número mais alto em termos de mortes diárias desde que há registo e quase o dobro da média diária habitual durante o mês de janeiro. Destes 721 mortos registados nesse dia 22, 221 foram atribuídos diretamente à pandemia da Covid-19, o que leva a crer que o restante excesso pode ter a ver com a falta de recursos para o tratamento de outras doenças.
Por fim, quem é a médica que protagoniza o vídeo viral? Raissa Soares é formada em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais e exerce atualmente no Hospital Regional Deputado Luis Eduardo Magalhães, em Porto Seguro, na Bahia. A médica tornou-se conhecida nas redes sociais por ter feito um apelo, em vídeo, ao presidente brasileiro para enviar caixas de hidroxicloroquina para Porto Seguro, por entender que era nesse medicamento que estava a resposta para a Covid-19.
Jair Bolsonaro atendeu ao pedido, o que catapultou a médica para a ribalta. Raissa Soares continuou a usar as redes sociais para defender o que chama de “tratamento precoce” para a Covid-19 e a fazer aquilo que muitos entendem ser “prescrição em massa”. Segundo a Folha de São Paulo, o Conselho Regional de Medicina da Bahia (ao qual esta médica pertence desde março de 2019), condena a prática de prescrição em massa, através, por exemplo, das redes sociais, além de que o suposto “tratamento precoce” — com recurso a medicamentos como hidroxicloroquina, azitromicina, ivermectina, ou nitazoxanida, e de suplementos de zinco e das vitaminas C e D –, não é reconhecido pela Organização Mundial de Saúde nem pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças da Europa nem dos EUA, nem sequer pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), brasileira, nem pela Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Conclusão
Não é verdade que a vacina contra a Covid-19 seja mais perigosa do que o vírus. Dados recentes sobre a mortalidade em Portugal dão conta de que a mortalidade disparou no último ano (em comparação com o ano anterior e com a média dos cinco anos anteriores) devido à letalidade do vírus. Relatório que analisou os efeitos da vacina ao fim do primeiro mês de inoculação indica que vacina da Pfizer tem tido os efeitos secundários “esperados”, e mesmo os casos em que se verificou morte de pessoas semanas após a toma da primeira dose, não foram diretamente relacionados com a vacina, mas sim com a debilidade da saúde. Mais: a médica brasileira que protagoniza o vídeo é Raissa Soares, uma médica que tem sido acusada de fazer “prescrições em massa” através das redes sociais de “tratamento precoce” para a Covid-19 através do uso generalizado de hidroxicloroquina — cuja eficácia não está provada pela OMS.
Assim, segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
Nota 1: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.
Nota 2: O Observador faz parte da Aliança CoronaVirusFacts / DatosCoronaVirus, um grupo que junta mais de 100 fact-checkers que combatem a desinformação relacionada com a pandemia da COVID-19. Leia mais sobre esta aliança aqui.