Um vídeo publicado nas redes sociais mostra um médico, Ryan Cole, a sugerir que, desde 1 de janeiro deste ano, tem observado em laboratório um aumento exponencial de casos de cancro endometrial (que tem origem no revestimento do útero, o endométrio) e de outras doenças em pessoas que se vacinaram contra a Covid-19. Mas não há evidência científica que suporte as suas alegações.
Ryan Cole afirma que as pessoas que foram inoculadas estão a perder as chamadas “células T”, também conhecidas como linfócitos T ou glóbulos brancos, que protegem o organismo perante uma ‘ameaça externa’. Ou seja, diz Cole, a capacidade de o sistema imunitário reagir diminui para quem recebeu a vacina.
“Neste vírus, após a vacina, o que vemos é uma redução nas células citotóxicas [killer T Cells]. E o que elas fazem? Ajudam a manter todos os outros vírus sob controlo”, indica. Ryan Cole diz mesmo que observou, em pessoas vacinadas contra a Covid-19, um “aumento de [casos de] vírus da família do herpes”, do vírus do papiloma humano (HPV) e uma subida em 20 vezes do número de casos de cancro endometrial face a anos anterior. “Não estou a exagerar de todo”, conclui. O vídeo está a ser densamente partilhado levando a conclusões erradas de utilizadores como “VACINAS DA COVID MATAM!”.
Mas a única afirmação de Cole com base científica até à data é a ideia de que as células citotóxicas (ou linfócitos T citotóxicos) têm um papel importante na defesa do organismo. Essa defesa, segundo a Sociedade Britânica de Imunologia, exerce-se contra vírus, bactérias e até o cancro. Mas será que as vacinas fazem diminuir estas células, propiciando doenças?
Para analisar a afirmação de Ryan Cole, comecemos por perceber quem é o médico e como tem estado associado à disseminação de desinformação. Cole é um dermatopatologista norte-americano que integra uma associação chamada Médicos Independentes de Idaho. Na página da organização, pode ler-se que o grupo é composto por “médicos independentes” que têm “as suas próprias práticas médicas” e “a liberdade de diagnosticar e tratar sem a sobrecarga de interesses potencialmente conflituantes”.
Ao longo dos últimos meses, Cole tem feito declarações sobre os supostos “riscos” das vacinas contra a Covid-19, veiculando informação incorreta, sem evidência científica. As suas declarações — tanto estas como anteriores — já foram analisadas e contrariadas por vários sites de verificação de factos, como FactCheck.org, a AFP FactCheck ou a HealthFeedback (neste caso, uma rede composta por cientistas).
Em relação ao vídeo em causa, o projeto Comprova, uma iniciativa liderada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), dedicou-lhe uma extensa análise. E concluiu, com base em estudos científicos e dados oficiais, que, ao contrário do que Ryan Cole alega, as vacinas são seguras e até aumentam a produção de células T (são ainda conhecidas como células da memória). De uma maneira geral, as vacinas fazem aumentar o ‘stock’ de linfócitos T, para memorizar que vírus devem ser combatidos, e linfócitos B, que sabem de que forma esse combate deve ser feito.
“Não há indicações a partir dos estudos científicos e estudos clínicos ou ainda do monitoramento [monitorização] de notificações de que as vacinas contra a Covid-19 possam afetar a capacidade do organismo humano em responder contra outras doenças”, afirma ao Comprova a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa, entidade equivalente ao português Infarmed).
Numa declaração anterior, Ryan Cole já tinha estabelecido uma ligação entre as vacinas e o cancro, que foi alvo de uma análise por parte do portal FactCheck.org. O médico alegava que ensaios clínicos com vacinas mRNA (como a da Pfizer e a da Moderna) em mamíferos “levaram a cancros estranhos” e a “doenças autoimunes, não imediatamente, [mas] seis, nove ou 12 meses depois”. Segundo informação transmitida pelo próprio, Cole baseava esta afirmação num estudo de 2018 publicado na revista Nature Reviews Drug Discovery, que procedeu à revisão de ensaios e estudos de várias vacinas mRNA (antes da Covid-19). Só que, conclui o portal, esse estudo não sustenta as declarações de Ryan Cole.
O autor principal, Norbert Pardi, referiu ao FactCheck.org que “nenhuma publicação demonstra que as vacinas mRNA causam cancro ou doenças autimunes”. O estudo faz uma referência a uma “possível preocupação” em relação a efeitos sobre a autoimunidade, mas “não há evidência científica que tenha confirmado que esta preocupação é real”, adianta Pardi.
Já a Health Feedback, a rede de cientistas que combatem a desinformação e que já dedicou vários artigos a contrariar as afirmações de Cole, pediu ao médico um outro “estudo da Alemanha”, que o próprio cita para defender que há perda de imunidade. Mas não obteve resposta. A plataforma também sublinha que não existem dados que confirmem o aumento de casos de cancro.
“As autoridades de saúde pública não relataram um aumento repentino de cancro desde o início da campanha de vacinação contra a Covid-19 nos EUA, em dezembro de 2020. Além disso, o aumento que Cole alega também teria sido observado em todo o mundo, se fosse verdade. No entanto, não há relatórios que corroborem a afirmação de Cole de que as pessoas estão a desenvolver cancro em níveis recorde”, lê-se no artigo de análise. Além disso, comparar a ocorrência de cancro este ano com os anos anteriores implica que os cientistas “reúnam e analisem dados epidemiológicos”, um processo que “leva tempo”. “A alegação é puramente anedótica, não tem nenhuma evidência a apoiá-la”, criticam.
Em Portugal, a plataforma Imune, uma iniciativa do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, escreve que “as vacinas conseguem desencadear uma reação no sistema imunitário para criar anticorpos, mas sem o risco de provocar doença”. “Este risco também é inexistente nas vacinas de tecnologia mais recente, constituídas por ARN-mensageiro do agente patogénico (caso das vacinas Covid-19 desenvolvidas pela Pfizer e Moderna)”.
Conclusão
Não há evidência científica que comprove que as vacinas contra a Covid-19 diminuem a capacidade de o sistema imunitário reagir. Aliás, a informação disponível é que as vacinas não só são seguras como ajudam à reposta imunitária. Da mesma forma, não são conhecidos estudos que demonstrem um aumento significativo de casos de cancro e de outras doenças associadas à vacinação contra o SARS-CoV-2, como refere Cole.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:
FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.
Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook